Há uns meses, prometi-vos que me dedicaria à escrita de um livro. Não pensem que o projecto tem sido esquecido, apenas avança mais lentamente do que desejaria. A história está delineada por completo (o que, acreditem, não é de somenos), mas colocá-la de facto na realidade tem-se revelado uma assombração. Pensei que o isolamento alentejano contribuísse para a questão, mas enganei-me. No entanto, e para provar, que as minhas intenções, como as de um cavaleiro em busca de cálices míticos, são reais e puras, deixo-vos aqui dois pequeninos parágrafos que tenho para já e que provarão duas realidades: uma é o possível tema desta empreitada; a outra é o claro equívoco de alguns de vocês quando me encorajaram a escrever um livro, convencidos de que teria talento para tal. De qualquer forma, espero que apreciem.
"Foi num livro roubado que Paulo descobriu o que era uma experiência de
quase morte. Tudo o que lhe ensinaram na faculdade tentou empurrá-lo para nem
acreditar que, confrontado com a finalidade da existência, algo mais se
levantasse, um eu indefinido, a tal alma de que falavam os que julgam saber um
pouco mais sobre a vida. Mas leu o tal livro no segundo ano académico, quando ainda
prestava atenção às aulas, e na sua cabeça ficou a leitura da pesquisa feita
por uma doutora canadiana. Vestindo um chamamento de algures, dedicara toda a
sua carreira a estudar e a conviver com a morte, sob a forma daqueles que, no
fim da linha, lhes desvelaram o novelo dos medos, das ansiedades e do
desconhecimento daquilo que existe para lá epílogo da maior obra de todas. Não
cabia no entendimento de Paulo que alguém passasse tanto tempo perto do agouro
e da previsão certa do futuro, de escrever, minuciosamente, um retrato do que a
esperava. Mas essa doutora canadiana, que explicava ter perdido um filho para o
cancro e que se intrigava com espiritismo e fantasmas, embora nunca tivesse experimentado nem um nem outro, concluía o contrário: deslindar a Morte, deslindar o que está
para lá do temor, era a melhor maneira de enfrentar tudo isso com calma e
serenidade, de aceitar os factos e assim valorizar muito mais o ar que se
respira. Na sua pesquisa, recolhera então alguns factos surpreendentes.
Morrer atrapalhava o corpo, e no momento em que morres, ambos têm um
diálogo. O corpo não percebe o que se passa, e a Morte, generosa mas pouco
paciente, faz-lhe perceber os factos muito depressa, o que atrapalha o corpo,
que não concebe outra realidade que não seja viver. Habituou-se a ser sólido, a
existir, a ser matéria e tudo o que compreende é absorvido na pele e pela
experiência dos sentidos. A vida não é senão um conto sussurrado pelo mundo onde
vivemos, um mundo exterior que nos estimula e agarra, cheio de sons e visões,
cheiros e sensações, que nos desenham e tomam a forma bípede com que tentamos
dominá-lo. A missão imediata da Morte é convencer-nos de que a realidade é a
percepção de tudo. A retórica é convincente no seu tom habitual, e então a
respiração diminui, o coração pára e somos pó de memória algures nas
frinchas da nossa identidade. Perde-se a visão, o movimento e até a dor, sobram apenas a calma e o silêncio. No entanto, para espanto de quem espreitou para lá
da cortina, ficamos nós também. Tudo parece ser mais natural, até não respirar,
muito muito mais, e o mais estranho é que a vida não termina com tudo isto.
Continuamos a pensar, a dizer piadas, a perceber, a pressentir, e a confusão
inicial é essa: sempre nos disseram que se vive no mundo, e afinal a Morte nada
mais é do que despir o corpo como se fosse um casaco. És mais tu sem o teu
corpo, este é uma jaula, um caixote onde vives, e abandoná-lo dá acesso a
uma liberdade que nunca pensámos. Morrer é como trocar de casa; ou melhor, é
como mudar a estação de rádio que estamos a ouvir. Clica-se no botão, recebe-se
o AM em vez do FM, e a nossa consciência segue, vagueando."
1 comentário:
Mal posso esperar por ver o livro acabado nas bancas. ☺
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