Ora, começo já por desmentir que a Guerra Civil Americana, porventura o o verdadeiro evento fundador da identidade actual deste país, não acabou. A divisão dos EUA entre Norte e Sul durou quatro anos, e curiosamente começou e acabou no mesmo estado: a Virginia, esse mesmo onde Charlottesville fica situado. A Virginia é assim uma espécie de fronteira limite entre as duas Américas, uma com capital em Washington e outra em Richmond. Apesar da ideia generalizada de que tudo se sucedeu por conta da escravatura, outros motivos mais práticos e menos morais precipitaram esta guerra fratricida. para além de questões económicas, a ideia sempre presente de que estes Estados Unidos eram um acordo e não um casamento eterno levaram sempre alguns estados do Sul a crerem que, se assim o quisessem, podiam simplesmente separar-se da chamada União e seguir o seu caminho. Um conjunto de eventos e guerra independentistas noutras federações europeias deram mais credo a esta ideia e as diferenças entre um norte industrializado e cosmopolita e um sul feudal e com base em mão de obra manual e esclavagista levava a crer que se assistiam a diferenças incontornáveis. A Independência em 1776 envolvera na sua maioria estados localizados a Norte, que valorizavam essa conquista de uma maneira diferente. Pensando que a Norte ninguém se importaria muitos, sete estados do Sul decidiram declarar uma nova confederação poucos dias depois da eleição do rpesidente Abraham Lincoln, que tinha fama de pragmático e anti-escravatura. Mas o norte estava decidido a não quebrar a ligação entre todos os estados e desse conflito, surgiu a Guerra Civil.
Como se sabe, o Norte venceu teoricamente a guerra; no entanto, e apesar de os termos de rendição não terem sido particularmente humilhantes - Lincoln evitou sempre julgamentos sumários e considerar como traidores aqueles que haviam secedido - a situação posterior a 1865 não foi exactamente a que o Sul tinha na ideia. Ainda que alguns estados fossem periféricos, outros como o Louisiana, o Kansas e a própria Virginia possuíam grande peso populacional e económico e acalentavam a esperança de discutir a rendição como uma conversa entre dois países diferentes, que algo que Lincoln colocou imediatamente de lado. A reentrada na União fez- se a contragosto e o preço a pagar foi quase um século de pobreza permanente na região e uma divisão económica clara dentro dos EUA. Por esta ideia de destino não cumprido, de traição nortenha e dos intelectuais à causa sulista de viver de acordo com os seus valores e preceitos, a guerra nunca terminou realmente. A animosidade entre ambos os lados permaneceu durante décadas e a única coisa em comum era o ódio que tinham uns pelos outros e por outra ideia que tem sempre solo fértil em pós-conflito: o Ouro, o Diferente, o Estrangeiro. Carregando este espírito de desprezo por todo aquele que não é americano ( uma definição que não incluía necessariamente todos os brancos: irlandeses, italianos, polacos e outros emigrantes europeus foram tão mal vistos e mal tratados tanto quando os negros ou os judeus nos finais de século XIX e inícios do século XX), o Klu Klux Klan (KKK) surge no ano em que a Guerra Civil termina, 1865, e com períodos áureos e de ocaso, permanece hoje como uma organização.
O século XX é charneira em muita coisa nos Estados Unidos, mas com este caldinho todo preparado, acabou por ser, acima de tudo, uma era de nós contra eles, independentemente de quem eram eles. O elemento racial era importante, mas também o religioso e político. O Diferente assustava e a única maneira de tratar dele era através da violência. Um supremacista branco ou um nazi não encaram outra forma de contemplar o problema, porque isso pressupunha que se dispusessem a ver o mundo de outra maneira. Não vêem, não podem: há amigos e inimigos, nada mais, apenas essa categoria. As décadas de 20 e de 30 são de um particular nojo: não só a política a nível nacional abraçava abertamente ideias eugénicas e racistas de uma forma perfeitamente relaxada - afinal, foi nos EUA, e não na América, que estas surgiram e foram aplicadas em larga escala, de maneira oficial, principalmente entre comunidades de negros - como aplicava um desprezo por raças diferentes, mulheres e até termos inocentes (a New Yorker, hoje grande bastião do intelectualismo liberal de Esquerda, não usou a expressão "papel higiénico durante anos, porque vários editores a consideravam nojenta) apanhavam por tabela. Os nossos amigos do Klan viveram uma era de furor, jogando inteligentemente com ódios específicos das regiões onde se queriam instalar e a sua popularidade era de tal forma que chegaram a ter, segundo alguns, oito milhões de membros a nível nacional, não apenas campónios e plebeus, mas também gente em lugares muito importantes, como governadores, senadores ou congressistas. Eram não apenas um grupo de terror, mas uma estrutura social: faziam piqueniques comunitários (chamados Klonklaves...) e na cidade de Detroit organizaram uma tradição natalícia em que um Pai Natal vestido de klansmen destribuía brinquedos aos petizes. A paranóia chegou a tal ponto que no Indiana, estado onde o Klan era particularmente numeroso, acreditava-se com seriedade que o Papa elaborara um plano secreto que mudaria a sua base de operações a partir do Vaticano para o Indiana. Imagine-se. Notícias loucas, notícias exageradas. Por outras palavras, notícias falsas.
A ideia de uma raça superior como elemento presente no espírito norte-americano vem também deste período. Um grupo de académicos e cientistas, levados a sério, apresentaram uma preocupação: demasiados norte-americanos estavam a nascer defeituosos ou inferiores e sucessivas vagas de emigração obrigavam o país a acolher também a inferioridade estrangeira. Uma chatice. Os genes condenavam praticamente todas as raças e nacionalidades. Se acham que isto foi apenas uma teoria doida que mais tarde viria a encontrar eco na Alemanha, repensem: estas ideias levaram a restrições de deloscação, impedimentos de emigração, deportações massificadas, suspensão de liberdades civis e a esterilização voluntária de milhares de pessoas inocentes. Não surpreende saber que um presidente norte-americano, Herbet Hoover, era abertamente racista e considerava negros e asiáticos como valendo um quarto de produtividiade - ou nem isso - de qualquer homem branco. Não surpreende que os principais adeptos destas teorias fossem, como Hoover, ricos e possuindo um desprezo tremendo por qualquer pessoa em situação de pobreza. As relações entre os EUA e a Alemanha nazi foram por isso, nos primeiros anos, previsivelmente cordiais, ainda que a subida ao poder Franklin Roosevelt tenha colocado um outro tipo de político e de mentalidade na Casa Branca, que fez dissipar lentamente a influência da eugenia, mas não do racismo. A existência de vários partidos de inspiração nazi na América do Norte, dos quais os "Flechas prateadas" são os mais destacados, e vergonha que foram os campos de detenção de asiáticos no período pós-Pearl Habrour, juntamente com a continuação de testes médicos e experiências científicas não autorizadas em negros marcaram os meados do século XX neste país. A partir da década de 50, os Direitos Civis das minorias entram num periodo de enorme crispação do qual ainda não saíram, podemos dizê-lo com grande segurança.
Ora, um país com este historial não ganhou qualquer direito a surpreender-se com os eventos em Charlottesville, nem sequer a etiqueta de bastião da decência, da liberdade, do que quer que seja. A primeira Revolução Americana foi, de facto, uma luta para pagar menos impostos, algo que se vê pouco em livros de História e não tão inspirador quanto os eloquentes discursos de Ben Franklin e Thomas Jefferson. O mundo actual vive um período estranhamente familiar, mas em medidas diferentes. A comparação com o período do fascismo europeu na década de 30 é um logro, assim como a ideia de que estas forças de intolerância não são um reaparecimento do que seja. Sempre lá estiveram, sempre andaram por cá, este desprezo pela normalidade e pelo respeito mútuo é uma constante em vários países ocidentais e tomou proporções bem mais assustadoras em tempos recentes (como é o caso, por exemplo, de toda a Operação Gladio na Europa). A ideia da diferença como problema manifesta-se em todos os regimes ditatoriais ou democráticos e é sempre o ponto de partida de todas as atrocidades e atropelos do normal funcionamento democrático. No entanto, enquanto a deixarmos à margem, será sempre um corpo estranho e rejeitado por todos aqueles que desejam um bem comum. Mas nesta marcha, revelou-se que este período de vergonha e njo acabou: andar às claras já é permitido, assumir um comportamento racista é algo equivalente a qualquer posição conciliadora e tudo não passa de uma questão de liberdade de expressão a aceitação. Um presidente dos EUA recusou-se a condenar de livre vontade um acto de ódio, algo que não me lembro de ver acontecer em qualquer democracia da Europa ou do Norte da América depois da Segunda Guerra Mundial. Isto sim, é grave: não a existência de grupos de ódio, não a quebra da especialidade norte-americana, mas principalmente a normalização do que é, por natureza, anormal e errado em todos os sentidos.
Mais do que com Le Pen e os seus discursos ou o fantasma da extrema-direita europeia, este é um ponto mental importantíssimo na nossa História como espécie e como sociedade. O momento em que se aceita esta comparação é deitar ao lixo a nossa decência, o que esta dela. Os Estados Unidos não são um farol para o mundo, mas inevitavelmente tornaram-se num exemplo que dita regras e faz estender ou encolher os tentáculos da boçalidade violenta. Infelizmente, e para mal dos nossos pecado,s perante o fantasma do racismo viramos os olhos para a América. Como devem calcular pelo historial que enumerei, estes tremores que sinto são tão reais quanto a vossa estupefacção.
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