terça-feira, agosto 01, 2017

O mergulho



Mesmo em dias de sol ardente, ou menos escaldante pelas brisas que o mar sopra em alívio de quem à sua beira se instala, obediente, noto em primeiro a areia nos meus pés. É um passo do degrau de madeira para a revolução do solo, um número contínuo e separado de partículas que afirmam a liberdade de se prenderem onde querem, a quem querem. É como não pisar sequer, uma imensa ilusão que do castanho ao amarelo, no espaço do brilho do sol, da intensidade da luz, pode parecer um campo de girassóis sem caule. Se um dia puder caminhar sobre nuvens, será assim, se ao menos as nuvens aquecessem a minha base. O que eu procuro, no entanto, está para lá das nuvens, mas também sob elas. A minha mochila descai desconfortável, um tombo que arranha. Do interior, a toalha estende-se quase sozinha, mas eu acabo sempre por dar uma ajuda. Em redor, quando há gente, morrinham na invariável preguiça do calor; quando não há, um milagre acontece e não precisa de senhoras e anjos. Surge, precisamente, por uma não existência, quando um vento sopra ao longe, um murmúrio roncando pelo areal, uma miragem de deserto lambido pelas águas, qualquer mentira que sinto nos olhos como verdade, mas tantas vezes os meus olhos me enganaram que a percepção é o engano da certeza. Mas hoje, aqui, há gente, chapéus coloridos, bolas em movimento agarrando pedaços de areia na superfície do divertimento.

A água chega para a carícia gelada, os meus pés aceitam e encolhem-se um pouco. Amar tem mar lá dentro, porque como este arrepia sempre ao toque inicial, nunca estamos preparados para a onda, para o torvelinho. Na Costa Vicentina, não sinto a gélida sensação do sangue que congela. O meu corpo está preparado. Um passo à frente do outro e cada onda estabelece uma nova marca nas minhas pernas. A frescura sobre gradualmente, um ou outro arrebatamento marítimo obriga-me sempre a saltar e o confronto com a espuma do mar transforma as gotas líquidas em alpinistas que por mim trepam. Primeiro passam o joelho, atrevem-se a chegar à cintura, na garantia de que mantenho a minha fertilidade intacta, e no momento em que o meu umbigo deixa de cuidar apenas de si e aceita que está entregue ao mar que o solta, a caminhada pela densidade da água já se torna mais leve, mais imediata: a pele aceita que a temperatura é a melhor, sem arrepios ou hesitações. O mundo é o mar, só. Dou saltinhos para escapar a uma ou outra onda, mas chega a altura de me entregar num salto de fé: é quando eles enrolam como se o mar fosse uma carpete e alguém estivesse a arrumá-lo. É nessa altura que me atiro. As mãos vão juntas, palma com palma, abrem caminho para a cabeça que não hesita. Um mergulho é atravessar um portal e do outro lado, encontra-se a delícia. Reergo-me, o corpo renovado, como se toda a superfície fosse nova. Limpo os olhos da água remanescente e quando os abro, a prata ondulante marca as vagas. Quase entrevejo uma pista de descolagem.

Faço-me de avião e levito sobre a água, braços abertos. Quando os fecho, mudo e sou um barco agora, esforço-me numa tentativa quase infantil de boiar e suportar assim, a minha solidez robusta, pesada desaparece e sou leve como me sinto poucas vezes. O que desaparece é o excesso de praticamente tudo e o mar é uma amnésia ondulante, cada vaga lava-me a memória. O oceano é traiçoeiro, ainda assim: uma distracção pode levar-nos para onde não queremos, correntes que disputam a nossa posse como se fôssemos valiosos, mas é então que me percebo que apenas me querem desgraçar. Aqui em baixo, as praias assumem uma componente rochosa por demais evidente e o banho aqui não é recomendado a cegos com pouca sensibilidade. No seu equívoco, pois o mar é apenas um génio de temperamento fogoso disfarçado de água, as ondas balouçam-me no embalo da dúvida, umas vezes puxa para um lado, noutras empurra para o outro. Os meus fincados no fundo marinho apenas tentam acompanhar a indecisão, onde não tenho nenhuma outra coisa a fazer que não esperar e resistir. Quando tudo passa, o processo de mergulho recomeça e dá-se sempre que quero; mas tudo o que é bom, termina e a toalha espera-me. Gosto de sair a caminhar com passos largos, espalhando água quando ninguém me rodeia, faço questão de brincar com uma força de muitas milhas de energia e largo, uma embocadura que rodeia continentes e amarra barcos enormes ao seu fundo. Agora, a areia congrega-se nos meus dedos, nos meus tornozelos, em cada fronteira de osso dos meus pés. Tombo como um morto cheio de vida, limpo a face sem outra ajuda que não a da toalha e num suspiro de prazer que nunca contenho, que não prendo por ser a expressão mais livre a que me permito no meu medo de ser feliz, de me sentir bem, finjo que me enrolo e que rio às gargalhadas cá dentro e que cada gota que escorre por mim nas estradas da minha carne, na minha forma que se pode descascar e a gargalhada continuaria na mesma, é um baptismo. Não todas as gotas: cada uma, individual, marca de um mergulho separado, de uma onda individual.

Não gosto de praia, mas o mar é-me fundamental. Hoje, que vou embora de Colos, sinto que a minha presença por aqui foi um pouco como entrar nas ondas e entregar-me. Levo coisas que não trouxe quando cheguei, deixo algumas nesta casa que deixo, ruminações principalmente, umas uma experiência de viver só, de reaprender os fundamentos do isolamento, de não adormecer o nervo exposto que é a minha sensibilidade e a desorientação de quem ainda não percebeu o que anda a fazer por cá. Mas no fim de contas, há a toalha onde me estendo e descanso, onde o suspiro é o que me agarra à vida, onde o meu corpo é repouso e a alma não se atreve a desassossegá-lo. Não sei o que me espera quando regressar a outros mares.Deste levo uma segunda pele, de sal e de pó, daquilo que o calor molda em nós quando deixámos. Um calor seco, uma luz do sol, ser eu quando não há mais ninguém. Levo um pouco mais do que é viver no quotidiano. No meu colo, de Colos.

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