sexta-feira, agosto 11, 2017
Sorriso
Vi-a pela primeira vez no último ano em que trabalhei no prédio. Não gostava particularmente do edifício, uma daquelas relíquias da mania arquitectónica no início de século cheia de transparências e curvas pretensiosas; mas gostei logo dela e da maneira como num sorriso, reescrevia quase todas as linhas. Acho que nem nunca tinha pensado como o simples acto de uma boca que se desenha em esplendor tendo pena e misericórdia pelo mundo real pode, de facto, mudar um dia, e nem sei quem ela era, como se chamava, apenas que tinha uma hora para almoço muito definida, que já nos cruzáramos várias vezes no elevador e no hall de entrada, e se calhar tanto tempo defronte de um computador, fiz uma perninha como programador durante esses meses para ganhar uns cobres, tanto tempo defronte de um computador tornou-me insensível ao mundo. Acontece, não pensem que não, a vida real é mais do que toque, é visão e audição e tudo o mais que existe lá fora quando nos dobramos por dentro. Mas ela, a sorrir, e nem devia ser para mim, ninguém me sorriria, revelava um novo tipo de linguagem que nunca aprenderia numa formação. Baqueei, estaquei e enquanto ela desapareceu na rua, até me esquecera de que a fome mordia. Era como se, de súbito, eu houvesse partido de mim mesmo.
Não tive coragem para descobrir mais sobre ela, nem sequer o nome ou a empresa em que trabalhava e encontrei-a poucas vezes mais antes de mudar de emprego uns meses depois. Cansei-me de computadores e li no jornal uma curiosa oferta de fotógrafo num parque natural. O meu irmão mais velho ensinara-me fotografia, mas era eu um feto comparado com ele. Robusto, com mais dez anos do que eu, agigantava-se em tudo, até carácter, e sei que se aquela moça pretendia resposta ao sorriso, obviamente oferecera-o ao irmão errado. Também ele escondia um desses pormenores que altera um dia, no caso um tique de camaradagem involuntário que se manifestava pela presença calmante da mão no ombro. Não era preciso motivo, só pretexto. Sempre que eu tirava uma boa foto ou que me levantava depois de cair ou que levava um calduço desprevenido, estranho era se não sentisse a presença digital sobre mim, mas real, mais real do que uma fotografia. Quando lhe contei acerca daquele sorriso, de como pode transformar tudo apenas e só por surgir, ouviu-me mudo e mudou parte de mim desafiando-me "E porque não fotografaste? E porque não fotografas tudo o que nos pode mudar, ainda que pareça mais pequeno do que a mudança?". No dia seguinte li a oferta do jornal e quando me contrataram, nem pensei em mais nada. Continuo a olhar para ecrãs, mas desta vez participo, sem querer, quando observo os outros do lado de cá sou sentido como uma espécie de rede de segurança, de que alguém se expõe e mostra, mas porque a minha máquina os protege; e se capto algum pormenor transformador, capturo-o. Neste momento, tenho mais de 500: sorrisos, olhares, gestos e tiques, afirmações de estilo e de carácter, a Humanidade quando se oculta da descoberta de que pode ser tanto, mesmo quando todos nós, em conjunto, nos esforçamos por ser tão pouco.
Virou obsessão, devo confessar. Passo bastantes fins de semana pelas ruas da cidade, caçando e perseguindo, não há como disfarçar o que faço. Peço licença, não apanho ninguém desprevenido, mas sinto sempre que roubo pedaços de gente e fico com eles, que nem os mereço porque não tenho essa magia dos dias, esse triunfo sobre a mediocridade; e tenho sempre vontade de perguntar sobre pessoas, de perceber como é que alguns podem tanto e outros não têm poder algum. Se são boas ou más, se essas coisas contam quando se é especial, se apenas se limita a ser e a estar. Se abrem o peito ao mundo ou se carregam o mesmo às costas e é o sacrifício que lhes concede o dom dos nos mostrar o que há para além do que somos. Não encontro isso com a máquina, nem em ficheiros e fotos, e e me assusta as noites, tento que não me ensombre os dias e que nem tudo tem de ter motivos, que algo pode existir por si só e causar prazer assim mesmo, redimir e mostrar, que um sorriso largueirão como um mar serve para nos lavar da tristeza, que um par de olhos verdes pode ser uma nascente de murmúrios secretos, que a tua presença, e tu és alguém que nunca vi, ausenta-me a falta de sentido e tudo o mais. Por isso pego na armadilha de imagens e acordo todas as manhãs. Isto, lembro-vos, porque um sorriso foi rastilho. É coisa pequena, sim, mas é assim que todas as explosões começam.
E não fazem, ainda assim, um barulho desgraçado?
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
Sem comentários:
Enviar um comentário