quinta-feira, novembro 02, 2017

As ilhas Far Far Away 3: Copenhaga


Um sótão em Copenhaga é um local talvez demasiado trendy para se acordar de manhã, mas foi assim que começou o dia. Por uma janela colocada no tecto, a luz espreita-me os olhos e as manhãs em Copenhaga são assim, um sol tímido entre as nuvens, o refastelo na cama e na brancura do quarto, do espaço, a ideia de visitar uma cidade sobre a qual só li uns bitaites. Encaixam-se ali quase oitocentos mil habitantes, o que num país que tem pouco mais de 5 milhões de almas é apreciável. Desde o século XV que é capital da Dinamarca, fundada quinhentos anos antes, mas uma grande parte da sua arquitectura é posterior ao século XIX, quando foi reconstruída após um pequeno desaguisado com os britânicos; e quando me meto num táxi para reencontrar os meus colegas de viagem, a cidade observa-se como um pequeno filme documental, as influências neo-clássicas visíveis no uso abusado de um tijolo escuro, pouco vermelho, com um desenho de linhas direitas, mas usando o ferro como referência. Copenhaga é um misto temporal de séculos, a era industrial encontra as transparências e reflexos da arquitecura contemporânea, utilitária, simples, prática, mas sem nunca desrespeitar o espaço. Agrada-me isto na capital dinamarquesa, esta noção de cronologia da alma urbana, a ideia de avançar mas sem rasgar com o que a constrói e faz, a certeza de que um espaço sem memória ou alma está morto, mas que um conjunto de edifícios pode mostrar a sua vida. Volta e meia, o taxista (indiano, como todos os que encontrarei por aqui) vai perguntando direcções, como se soubéssemos nós o melhor caminho para o destino. O Paulo fala, mas volta e meia olha para mim como intérprete de inglês.

Lá chegamos. No grupo de despertos turistas portuguesas, recebo um abraço do António e da Teresa Gil, companheiros de outras expedições à Ásia Central. Enquanto rimos, a recordação do Quirguistão está presente, damos por nós gracejando com a nossa opção urbana desta vez, de como aquele local dentro e fora deste mundo em simultâneo é tão diferente, mas nunca no sai do berço da língua. Ambos chegaram no dia anterior e já cirandaram pela urbe. O prazer da visita é óbvio e conseguem fazer até um roteiro de locais usados nas séries dinamarquesas transmitidas pela RTP2 . O edifício usado como esquadra de polícia de uma delas é mesmo à porta do hotel e passamos por ela antes de começarmos o roteiro. Caminha-se com gosto pela cidade, os passeios são largos e um pormenor destaca-se logo: vias para bicicletas bem definidas, com as suas regras e sinais de trânsito, semáforos incluídos. Ibéricos que somos, é fácil esquecermo-nos que existem e nalgumas alturas, quando tento tirar fotos, um conjunto de urros assertivos arranca-me da concentração do olhar e é um ciclista, que me vê um pouco como os lisboetas vêem os turistas, enquanto obstruo a via. Copenhaga pertence tanto aos carros como aos velocípedes, os peões arranjam o seu nicho nas praças e nas pequenas ruelas onde nem um nem outro se cruzam. Passo pelo Ny Carlsberg, um museu de escultura criado pelo filho do fundador da destilaria Carlsberg (cujo museu é aqui perto também), onde pontifica também alguma pintura impressionista francesa e dinamarquesa; antes de atravessar a estrada, descubro os Jardins Tivoli, que são o segundo parque de diversões mais antigo do mundo e o mais visitado actualmente em toda a Escandinávia. O entretenimento pinta-se em cores garridas e motivos estilizados, por trás de grandes e sebes entrevêem-se montanhas-russas e rodas gigantes., para além do Dragão, da Aquila  e do Dyrekarussellen, uma atracção que está aberta desde 1920! O nome é facilmente reconhecível e inspirou o baptismo de outras salas de espectáculos e hotéis em Portugal. 


Um dos principais pontos de interesse é a Rundetarn, um antigo observatório astronómico que possui a distinção de ser o mais alto edifício do mundo sem escadas (bem, tecnicamente). Sobe-se quase tudo numa longa rampa que vai dando a volta à torre. Cola-se a uma igreja e do interior, podemos observar a sua nave central, e também uma biblioteca que serve de museu. O principal, no entanto, está no seu topo, onde uma dominadora vista pelas cabeças de tijolo e betão de Copenhaga é bem agradável. Destaca-se no imediato, ao longe na fusão com o azul do céu, uma longa ponte, a Oresund, que inspirou a série "Bronn". São oito quilómetros de faixa viária e caminho de ferro que nem a capital dinamarquesa a Malmo, passando por debaixo do mar a certo ponto. Mas o colorido das casas, os pináculos neo-clássicos das igrejas e a oportunidade de apreciar a capital de cima são ponte para outros prazeres. Depois de descermos, rumamos de imediato a Nyhavn, a famosa rua portuária de Copenhaga, com o seu arco-íris de casas, um canal quase totalmente obstruído por barcos turísticos, outros com uma falsa autenticidade e um cheiro a óleo permanente. A rua estende-se até à praça do Teatro Real e é um local ainda assim estranho, onde se cruzam imitações do século XVII e uma antiga fábrica que virou instalação artística dedicada aos emigrantes que morrem no Mediterrâneo: cada janela, e são dezenas, vomita coletes salva-vidas cor-de-laranja, como se o espírito das vítimas se abrigasse ali, onde lhes dão um asilo sentido. 

O caminho vai alargando e um passeio marítimo vasto oferece uma vista imensa sobre o mar aberto, uma paz quebrada apenas por uma fábrica de reciclagem soprando um fumo branco que contamina a paisagem. Combinamos entre todos que é obrigatório ver ao vivo a famosa estátua da Pequena Sereia, mas antes fazemos um desvio pelo Palácio Real de Analienborg, onde está para acontecer o render da guarda. Soldadinhos com fato azul escuro parecem perguntar uns aos outros autorização para beber um café, sem pompa e na circunstância sinto que é melhor admirar antes a praça de traço Renascentista onde tudo isto decorre. Devo admitir que me impressiona mais do que a famosa estátua a que aludi atrás, um anão de bronze que não deve medir metro e meio. O seu principal encanto é talvez a localização e originar um divertido jogo onde fazemos apostas sobre se afoitos turistas que se aproximem demasia para tirar uma selfie, e para isso têm de saltitar de calhau molhado em calhau molhado, tombam na água para assim sim, nos darem algum contentamento. Não acontece, mas por duas vezes torcemos com malícia pela desgraça alheia. Um costume da cidade, aparentemente, é mutilar a estátua regularmente, uma catarse para os habitantes de Copenhaga que não entendem por certo o afã dos visitantes em relação a algo tão banal e mundano. Ali ao lado, observando uma ilha artificial em forma de estrela, a fonte de Gefion enrijece os seus músculos perante a Igreja Anglicana de St. Alban, a água jorrando com violência, garantindo a manutenção da virilidade escandinava no nosso imaginário. 


Apesar de capital, Copenhaga até é pequena, acolhedora e regressamos ao ponto inicial. Antes, desenrascamos um almoço. No meu caso, é numa feira de rua, um mercadinho onde várias bancas vendem comida do mundo: frutos secos italianos, fish n'chips britânicos, um toque de caril indiano e eu opto, na minha pouca apetência por aventura gastronómica, por um singelo esparguete à bolonhesa. Sai-me a 15 euros do bolso e sim, é carote, mas já com coroas dinamarquesa na carteira (e o cálculo de conversão para euros bem sabido), admiro em redor a qualidade de vida, o tom informal da pessoas, gente que veste fato e vai de bicicleta para o trabalho, onde se vê pouco lixo no chão e um sentido de humor corrosivo nos cartazes de espectáculos, onde Mads Mikkelsen não surge, mas é possível ver uma genuína vontade em desenhar e mudar, onde se observam ninhos de artistas em qualquer local, onde a cidade se vira para as pessoas e estas vivem de facto, recebem um recreio e em troca enchem-no de vida. Sinto a cidade, e isso não se consegue com aeroportos fantasma ou com Agências Europeias do raio que o parta. As autárquicas são daqui a uns dias e quando assisto a tão pouco folclore nestas terras nórdicas, só me apetece perguntar se posso inserir o meu próprio candidato no boletim de voto. Não sei como se chama, mas o nome acaba em -iksen ou em-son. 

2 comentários:

Gil disse...

Bela descrição desta cidade tão acolhedora. Vai já para o álbum de recordações. Abraço

luminary disse...

Obrigado, caríssimo! :) Tive de puxar pela memória e de algumas fotos para recordar um ou outro pormenor, mas é para isso que servem os caderninhos :) Abraço!