terça-feira, novembro 21, 2017

Ilhas Far Away 4: O urso chega ao Círculo Polar


A onze mil pés de altitude, o mundo é uma cama. A tentação é dormir, mesmo não estar deitado, mas se não sou pássaro, se as únicas asas que ganhei são metafóricas e roubadas a um beijo, fechar os olhos é pecado por negligência. A altitude é um ponto de vantagem privilegiado, tudo se vê e tudo se alcança. O sol escorrega lentamente, como se o horizonte vestisse cola com prazo de validade limitado, e a tarde chega ao fim em tons de folha seca. Entre a Dinamarca e as Ilhas Faroé, o mar é a realidade, ocupando a cama, alagando-a, apenas permitindo que ocasionais rochedos ilhéus quebrem a sua consistência. Serve de espelho, mas mais do que isso, serve de olho do mundo, um olhar que brilha um pouco como o meu na antecipação de mais um território desconhecido. Viajar de avião nunca me deixou confortável, talvez por demasiado tempo a ser primata de pés no chão, mas esta paisagem arrebata-me, é um golpe de mão mágico, este de me colocar no céu para assistir ao seu processo. Nos ouvidos, num completo acaso, escuto "No surprises", tema dos Radiohead que sempre associarei a uma surpresa cujo nome brilhou em mim como este sol, e a memória mistura-se com o movimento solar, com o ocaso deste dia no acaso da canção. Thom Yorke vinca que a pequena banalidade é romântica e que as convulsões do mundo não interessam quando abrimos a gabardine mostrando que as surpresas só existem nos interstícios das esquinas dos dias. Mas aqui, no céu, não há esquinas, nem curvas, nem esguelhas. Existe o sol que se põe, as ondas disfarçadas por baixo e um avião que, segundo o ecrã de informação, se aproxima rapidamente do arquipélago que procuro. Este surge por fim na minha linha de olhar: primeiro uma ilha, depois as restantes. Umas são bem grandes, outras meras amostras residuais de rocha. Vejo lagos e pequenos montes, estradas rasgando o verde, falésias a pique onde a espuma marinha rebenta e grita ordens. É o meu primeiro contacto com este rebanho que se perdeu entre a Islândia e a Escócia e à medida que a escuridão toma conta das horas e o avião inverte por completo a rota para abordar a aterragem, sinto aquele formigueiro estranho de infância, quando saí ao intervalo da Primária para comprar peta-zetas na mercearia do Ti Júlio nas Vendas: o raio dos doces crepitavam, mas mas não tanto quanto a antecipação.

A altitude diminui drasticamente entre gargantas de rocha, o avião atravessa-as certeiro abandonando as nuvens (que são bem baixas por aqui) e o breu é completo, insofismável. Lá ao longe, as luzes do aeroporto asseguram-me que não atravessei dimensões e ainda me encontro por este planeta. As hospedeiras, talvez das mais antipáticas que encontrei num voo comercial, riem e conversam e tudo é normal, são faroesas, sabem bem que nenhum troll ou demónio marinho impedirá este avião de nos entregar ao solo com todo o conforto que elas tanto se esforçaram por não nos proporcionar; e quando saio do avião, sinto frio, sinto vento, sinto-me terrestre. A escuridão é ainda mais intensa respirada no solo. Entre a pista e a saída do aeroporto, não são 150 metros. Pequeno é favor e a realidade que conhecerei na próxima semana, uma comunidade onde a noção de tamanho é proporcional ao que dele se necessita. Práticos, estes nórdicos. Formalidades tratadas, malas resgatadas e o grupo divide-se por dois carros alugados para rumarmos a um qualquer sítio onde se possa dormir. Toma-se conhecimento pela primeira vez das serpentes de alcatrão das Faroé, estradas que contornam os fiordes e espreitam um mar que não se vê à noite. Olho o céu, consigo ver tanta poeira de estrelas que tenho a ilusão de ter ficado turvo da vista. Não consigo parar na minha mente, quero começar a absorver e sou incapaz, porque procuro tudo de uma vez sem saborear o que aos poucos me aparece. É assim que funciono, é por isso que nunca ocnsigo ser mesmo feliz também. A preocupação do amanhã desassossega-me mais o corpo do que a convulsão banho-maria de um sorriso hoje; e aqui, onde tudo parece mais lento, onde tudo é, de facto, um relógio a quem proibiram de respeitar o tempo contínuo, noto-o ainda mais.

O carro mete então por uma... rua, vá lá. Há um punhado de casas, alguns barracões, um tosco e artesanal porto de cimento. Quando paramos, ouve-se com clareza o vento a esbofetear o carro. Mandamos piadas sobre o calor e o Paulo sai, em busca da dona da habitação onde nos instalaremos. Enquanto isso, saio e mesmo à noite, distingo contornos de um monte e uma ilha mesmo em frente, ao meu lado o mar dividindo-nos. Uma luz solitária de um poste luminoso dá a tudo um ar de "O exorcista" e sinto-me também possuído mas não por demónios, antes tomado numa experiência fora de corpo que me conduz o volante sempre que viajo. As Faroé não são tão alienígenas quanto o Quirguistão, consigo entrever os meus dias além também aqui, mas não é, de facto, o meu sítio. Sou tão preso a tudo que às vezes irrita e nem quando o prazer do deslocamento é total e demolidor consigo deixar de ser tão eu. Tem dias que me frustra, Hoje, aqui à beira do mar, os elementos totalmente mudados e o céu em trezentas bóias luzentes, só penso. O regresso do Paulo faz-me voltar a tudo e a ser parvo e humorístico, no que se pode considerar humor. Estamos todos cansados, vamo-nos conhecendo e rapidamente nos dividimos por dois andares da casa. O meu corpo acompanha tudo isto, a minha mente permanece à sombra daquela luz, molhando os pés no mar, procurando-se no que não conhece. Nunca chega a encontrar nada, mas pelo menos entretém-se.

2 comentários:

Gil disse...

Muito bom, como sempre

luminary disse...

E eu agradeço a gentileza, como sempre :)