quarta-feira, novembro 29, 2017

As Ilhas Far Away 5: Funningur


É uma serpente, a estrada. O mar acompanha-a, em cada curva e silvo, pouco azul e demasiado cinzento, um espelho que reflecte o céu. As Ilhas Faroé, à luz do dia, revelam uma pintura de duas cores, verde molhado e fresco, forte e inebriante, sempre presente em domínio do olhar; e um cinza alado, tapando o sol e tudo o mais, policiando o nosso olhar que pode bem procurar o bom tempo, mas nunca o encontra. Em Portugal, deixámos sol e calor. Neste arquipélago quase polar, fomos recebidos por vento forte, chuva ocasional, temperaturas que apertam os casacos. Começou cedo, o dia. Há que aproveitar as horas e o plano hoje passa por percorrer a ilha de Estremoy de uma ponta à outra. No banco de trás, a paisagem afaga-me e o interior do carro, onde somos cinco, é preenchido por conversa ocasional e acima de tudo, a rádio local, pródiga num estranho tipo de country nórdico cujo idioma não identifico. Parece norueguês, mas não garanto. As escolhas musicais faroesas dividem-se entre esta melíflua e pungente cantilena e também tudo o que é canção anterior ao ano 2000. Tipo M80, mas sem ter de aturar promoção a concerto dos Scorpions com a "marca M80". O Paulo vai contando das suas viagens por aqui, o roteiro que elaborou e os pontos de fotografia potenciais. Chover atrapalha, mas não estraga.


Apesar das esplêndidas cascatas onde paramos pelo passeio, da erva que como um cabelo achatado cobre os montes e as falésias, o primeiro ponto que me impressiona é Funningur. É uma aldeia entalada num fiorde, um braço de mar que se acotovela em terra buscando de gente. De um ponto alto, conseguimos ver casinhas mesmo pequenas na boca aberta da estrada serpente em balanços e retorcidas curvaturas, uma estrada que não é de tijolos amarelos, mas sim alcatrão prateado da água. Quando chegamos, há um silêncio que é assustador de início. Procuramos e ninguém se apresenta na rua. Estas são estreitas, encaminham-se para o mar e cada casa de madeira é um mistério de solidão. À volta, as sempre presentes ovelhas garantem um qualquer tipo de vida, mas nada em duas patas nos saúda. No pequeno porto de abrigo, fotografo o mar e pela lente, observo um pequeno cemitério que rodeia uma humilde e muito austera igreja. Feita de pinheiro e branca, não apresenta nenhuma outra decoração que não uma cruz solitária que no topo, vigia mais a aldeia do que a protege. Uma porta aberta convida-me e o vento e a chuva somem num qualquer local dos meus ouvidos, um silêncio gabardine empurra-me para o interior. A promoção religiosa é mínima, um sinal convida a deixamros o barulho onde ele merece estar, fora de nós, e tons sépia banham a nave central. Que pequena é, para servir a aldeia não precisa de mais. Tudo é em madeira, bancos e altar, decorações esculpidas, móveis utilitários. Reparo então num velhote que em silêncio, quase fundido com uma das paredes, vai envernizando um do banco corrido. Meio abananado, pergunto se posso estar. Sem sorrir, mas com o ar bonacheirão que apenas se pode encontrar nos que se focam num qualquer ponto em si para fugir da azáfama do mundo, anui, sem falar uma palavra de inglês. Ao mostrar-lhe a máquina, convida-me a estar como em casa, com um gesto de mão e braço.



A minha relação com Deus é... queria dizer nula, mas não sou materialista. A versão católica é um pouco como um personagem mal escrito em dois argumentos diferentes, mas com o tempo aprendi a aceitar que cada um crê no que quer, se for feliz com isso. Nestas ilhas, é-se luterano em maioria, gente muito rígida. Não é à toa que o cinema nórdico se pervade de uma moral forte e rigorosa, de pessoas cuja consciência ressoa badaladas de um sino de pecado. Este templo despojado, a relação entre pescadores duros, rudes homens de simples hábitos, e uma natureza que convida ao desespero existencial e à clemência perante o Cosmos, puxa-me a sentar e faço-o, sem medo nem preconceito. Não sou o único. Alguns dos meus companheiros de viagens também o fazem. A luz escasseia e pequenas lamparinas atificiais oferecem pontos de referência para os olhos, mas não vemos nada. Se alguém pediu a divinas entidades respostas ou saudações, não chegaram. Só o velhote lá continua o seu trabalho, de vez em quando mirando os visitantes inesperados. Limpa as mãos ao avental, que protege uma camisola de lã azul, e talvez se interrogue o que nos leva a visitar igrejas. Nada, se calhar, ou então a monotonia de Elduvik destacou ainda mais o edifício. Não me fascino. Quando saio, percorro as campas que rodeiam a igreja, quase todas recentes. O mar bate nas rochas e chega a encharcar uma, dominada por uma cruz de ferro ferrugenta e salificada. Bela vista para um morto, penso enquanto fotografo. A aldeia não está morta, mas é como se estivesse Como se o mar, única testemunha, fosse a outra casa, como se os faroeses fossem um povo de tritões que durante o dia regressa ao seu elemento e à noite volta a terra para cuidar das ovelhas, guardas do seu cioso património de simplicidade. Quero imaginar isso, que estou aqui junto ao mar e algum vai sair e saudar-me, mesmo que rudemente, que reentra em casa e lá dentro uma panela ao lume puxa num caldo de peixe a oportunidade de sentar e numa conversa ficar maravilhado com as descrições do fundo do mar.


Aldeias sem gente perturbam o cérebro, convidam-no a preencher espaços em branco, histórias que não existem mas que forçosamente devem aparecer, como se não tolerássemos, neste mundo agitado, a ausência só e pura. De fora do meu corpo, vejo-me como um ponto na imensidão marinha, rodeado verde, um boné enorme de cinzento que chega até onde os meus olhos perdem a meada do fio do horizonte. Não se está mal e a solidão é apenas uma maneira de garantir a companhia do que mais conta e do que mais preenche. Começo a perceber o velhote que se embeiçou por vernizes e madeiras sem prestar contas a ninguém.

1 comentário:

Gil disse...

Essa sepultura isolada passou-me desapercebida.