quinta-feira, dezembro 14, 2017

As Ilhas Far Away 7 : Visita a Tórshavn


Então, algures no século IX, uns Vikings altos e brutamontes chegaram a uma península, a de Tinganes, e pensaram "Vamos montar aqui um entreposto de cenas". Barracos ao alto e na altura de baptizar, recorreram a alguém que estariam longe de pensar que alguma vez pudesse exprimir-se com sotaque australiano: Thor. Ali descansava uma baía, bem boa para atracar o drakkar, e tudo junto, ficou Tórshavn: a baia de Thor. Muitos séculos e transformações históricas depois, ainda lá paira. Treze mil habitantes, a capital do arquipélago (e quando pedes que te falem sobre as ilhas, os faroeses dizem sempre "Oh, my country...", como se não pertencessem à Dinamarca e fossem mesmo independentes... Fazem dos madeirenses uns meninos do separatismo) e basicamente um porto de mar com umas casas agarradas. Podes chegar aqui de barco, camioneta e até helicóptero, e se viveres num ponto isolado destas ilhas, Tórshavn significa entretenimento, com os seus cafés e restaurantes que cabem bem em duas mãos de dedos. Quando visitamos a cidade, é para saber o que significa movimento faroês e que paradoxo evidente: as pessoas não surgem, apenas um ou outro transeunte passeando o cão. O clima põe-se frio, mas aguenta-se, e o mar sustenta barcos que tombam de cá para lá, um berço de coloridas embarcações e também das brancas monocromáticas. O chilrear das gaivotas soa menos irritante quando o sol se põe e o reflexo das águas é brilhante.


Um passeio junto ao porto traz-me um cheiro esperado, o de óleo de motor misturado com peixe. As casas são coloridas, despojadas, geometricamente desenhadas com triângulos sobre rectângulos, janelas múltiplas, um destaque para os olhos. Na água, medusas roxas passeiam-se em todos os cantos, atraídas talvez por restos de comida. Há vários edifícios do século XIX e esta é claramente a zona histórica da cidade, e alguns pormenores são uma delícia adocicada, como uma caixa de multibanco dentro de uma pequena casinha de madeira rústica e pitoresca, torneada de azul e amarelo. Caminhamos junto ao mar e mais habitantes surgem: um par de garotas circulam em bicicleta e estacam juntos a umas rochas, desafiam-se, saltam e não caem à água. O cabelo é mais louro do que uma seara, mas sem vento, a seara permanece parada.  Quando entramos nas ruelas, os séculos vão recuando e ao passarmos por uma zona onde todas as casas são encarnadas, um letreiro anuncia que estamos precisamente no ponto de origem de Tórshavn, o bairro de Tinganes. Há aqui casas com mais de 500 anos, com tectos de relva. Num deles, encontro uma ovelha que pasta alegremente. Isto no meio de uma capital europeia. É impossível não sorrir. A cidade velha é labirítinca e escura, agora que o sol se pôs e a noite nos invade. Os andares mais elevados permitem passagens e aberturas que por vezes nos deixam espreitar a baía, mas apesar das ruas largas, o chão de pedra e as moradas próximas fecham-se sobre mim e se ao início me sinto apertado e capturado, lentamente acho catita esta pequenina aldeia mesmo no interior da anã cidade, como se fosse um pequeno coração que guarda um tesouro de sangue faroês. A madeira das paredes é encarnada cobre, forte, o bairro vai-se transformando nas paredes de um coração e passo de um ventrículo para outro. Os passos acumulam-se e cruzo-me em ocasião com alguns colegas de viagem, que fotografam como eu. Cada rua é o seu passado, em semelhança e os momentos são uma repetição em ciclo É estranho, como se Tinganes fosse um loop e em simultâneo, uma imitação da Terra Média, cada casa uma morada em Hobbiton.


E assim de repente, é hora de jantar. Os restaurantes em Tórshavn são pequenos e caros e estão cheios, uma tripla combinação inimiga da fome. Depois de alguma voltas, paramos no Sirkus, uma espécie de buffet internacional. Ainda rondámos uns restaurantes locais de bom aspecto e comida a puxar à modernice, mas os preços, por agora, assustam-nos. Opta-se então por algo acessível e com uma ementa alargada o suficiente para que agrade a todos. O interior é algo despojado, mas convidativo, largas janelas deixam ver a baía e a música ambiente é tão inofensiva quanto um cruzamento de André Almeida. São bem jovens as moças que aqui são empregadas de mesa, não sei se alguma delas terá 18 anos. É o pesadelo da Autoridade para o Trabalho, mas em qualquer estabelecimento do género onde paramos nos dias seguintes, parece ser prática comum. O esparguete à bolonhesa é a minha escolha, mas há comida latina, asiática e até mais faroesa para quem se quiser atrever. Nunca aqui estive, mas tudo me é familiar. Não sei o que raio fazem os nórdicos com a arquitectura, mas resulta, como é que um povo com fama de frio consegue criar espaços interiores que nos fazem sempre sentir acolhidos. Nem me apercebo que terminei a minha refeição e todos se preparam para regressar à base de operações. Pagamos e deixamos gorjeta. A rapariga que recolhe sorri, agradece. Mais tarde, está à saída para nos dizer adeus e subtilmente faz um aceno e pisca-me o olho, deve ter uns 15 anos, talvez 16 e sinto-me imediatamente criminoso. Encolho e penso em como sou professor às vezes e isto é errado, mas que fazer? Agradecer, sorrir e seguir. O charme dos cabelos brancos, afinal não é mito, mas estes são também sinal de maturidade. Dizem. Nunca a senti.

Estrada fora rumo a Eidi, penso nisto e na minha ideia, chegar a casa e alongar-me na cama é o melhor dos tónicos. Claro que nesta altura não fazia a mínima ideia que nessa mesma noite estaria estendido sim, mas sobre a erva, com as estrelas por cima de mim e bem instalado a ver a primeira aurora boreal da minha vida.


1 comentário:

Gil disse...

Chorei a rir com esta "música ambiente é tão inofensiva quanto um cruzamento de André Almeida". Abraço