terça-feira, janeiro 23, 2018

As ilhas Far Away 10: A morte em Vidareidi


Talvez porque o passado e o encadeamento de acontecimentos sempre me fascinaram, os cemitérios exercem sobre a minha infantil curiosidade e os meus olhos um fascínio e meios que estranho. Nas primeiras visitas ao meu pai depois de morto, dedicava sempre alguns minutos e cirandar pelas campas, imginando que entre as basilares datas de nascimento e morte, principalmente de indicassem um desaparecimento precoce, se esonceria uma história estranha, trágica, famílias deixadas para trás. O meu prazer em ter por fim encontrado a mais antiga morada defunta do cemitério de Ceira foi talvez exagerado para qualquer pessoa comum, mas não para mim, detectivesco na estupidez. No entanto, a necrópole de Ceira tem qualquer coisa de pouco poético e seco, sebes que rodeiam passagens de calçada e embora o enquadramento da paisagem seja até acolhedor, o meu mórbido coração sempre buscou qualquer estímulo mais para dar o passo seguinte na obsessão. Encontrei-o em Vidareidi, uma pequenina aldeia na ponta mais a norte do arquipélago faroês. Um conjunto de casas assoma num istmo rodeado de pequenas montanhas, o mar distende-se até um horizonte longínquo e ali está ela. Hoje temos sorte, as nuvens devem ter pedido uma folga, quiçá sem mais água para nos atirar, e o sol brilha entrecortado. Não está calor, ainda assim. Na paragem para almoçar, alguns incautos saem do carro para comer, mas rapidamente uma ventania capaz de fazer batidos melhor do que uma Bimby alerta que o dia não está para tal.

Vidareidi tem pouco de destaque aparte a sua posição geográfica. Existe, à entrada da povoação, uma divertida e estúpida gincana a fazer por entre canteiros de flores colocados no meio da estrada; mas a vista do promontório é incrível: a água, reflectindo o céu, carrega-se de uma cinza escura de agouro, como se monstros habitassem sem dificuldades os seus domínios numa respiração de noite e quando a luz solar dança no verde dos montes, a erva fustigada pelos sopros do céu, os humores do clima, é como se uma filme de animação acontecesse em tempo real e projecção inegável. Até onde vejo, possuo, e o que não é meu passou a ser neste momento em que, sentado na estrada de alcatrão, fotografo em redor. Nas minhas costas, uma pequena igreja, simples como todas as daqui, contempla a mesma vista que eu e não treme nem abana, pelo menos daquilo que vejo. As minhas pernas levantam-me, mais uns metros e entrei num pequeno cemitério. Está coladinho ao mar, uns vinte passos separam-me do muro que o limita e cai sobre o mar. O número de habitantes é baixo. No século XVII, uma tempestade engoliu o cemitério e levou a maior parte dos caixões consigo. Alguns foram recuperados nas praias das ilhas mais a sul e viajaram de regresso; no entanto, aqui o mais antigo morador data de 1789. Fazendo aqui o mesmo exercício que pratico na minha própria terra, encontro indícios de vidas desfeitas pela morte: os Jansen perdem três filhos em cinco anos, o mais velho com três de idade e uma pessoa só pode imaginar como naqueles tempos de escuridão e isolamento dignos da filmografia Bergmaniana os pais de podem ter sentido. As campas são simples, muito, o que existe de mais elaborado crava enferrujadas cruzes de ferro para se dar como presente. Não conheço estas pessoas, e muitos menos as suas dores, mas não tenho como não sentir qualquer coisa por quem morreu há mais de duzentos anos. Não sei se é pena, talvez nem seja empatia, mas em momentos breves sinto a morte de filhos meus que ainda não nasceram. Tem algo de desolador e de catártico e até de sentimental, mas pafraseando Saramago, de quem nem gosto por aí além, é intermitente quanto a morte.


O solo irregular é um mar que reflecte o verdadeiro e não consigo passar mais tempo aqui, por muito que o verde brilhe ainda mais com a luz solar e que não haja nada de particularmente tenebroso no ar livre, no sal que vem do oceano e como que tempera a morte com algo a que muitos destes habitantes, pescadores certamentes, gente de barcos, se habitou em vida. Assinaram um pacto com o mar e este trata dos seus com proporção. Retiro-me pois sinto-me a invadir um qualquer tipo de par na qual não devia mesmo tocar. Estou a mais e mesmo tocado pela morte de algum tempo para cá, não sou deles, nems equer digno de tentar entender como se pode implodir por dentro numa simples vaga furiosa de emoções que rasgam a carne com verdadeiros dentes. Prefiro percorrer um pouco mais da estrada e ficar próximo do mar. As fotos tentam lidar com algo para o qual eu não estou ainda equipado como pessoa e ao longe, num pequena elevação, um só círculo de sol é um Olho de Sauron que me vigia. As imagens traduzem-me e tiro aqui uma das daquelas fotografias que estará sempre entre uma das melhores que já tive capacidade de produzir.

Sinto alguma satisfação, no meio de tudo o mais e quando chega a altura de vir embora, já os meus colegas de viagem trataram das suas curiosidade, volto novamente o olhar para as ondas que nos têm acompanhado todos os dias, mas ali, batido por qualquer coisa de também violento, sinto que não estou de fora a espereitar, mas sou parte de tudo aquilo, mais um dos caixões que não foram recuperados e recordo o meu pai, recordo um pouco de morte, mas venho à tona puxado pela memória de pessoas que me tornam muito mais do que julgei sentir ou ser. Acho que é por isso que gosto de visitar cemitérios: por muito mais morte que contenham ou que a dor seja antecâmara de desolação, o momento em que atravessamos o portão para sair e a vitória da nossa existência enquanto a hora final também não toca para cada um de nós. È sinal de sair e viver, de abraçar e beijar, de afirmar que se as emoções nos fazem, a pele nos requinta e tudo o mais entre o útero e a cova é o que devemos a nós mesmos. Ou qualquer coisa do género. O que me lembro mesmo é de me ter metido num carro para visitar Saksun.

Sem comentários: