segunda-feira, janeiro 08, 2018
As ilhas Far Away 9: Kunoy
Há duas grandes certezas naturais no território Faroé: o mar nunca está muito longe de nós e no dia em que a dança das sementes polinizou todos os belos território deste mundo, as árvores chegaram a estas ilhas, suspiraram um "não" colectivo e ramificaram noutras freguesias. Não existe, em nenhuma ilha, qualquer floresta nativa. Quando os Vikings aqui se instalaram, dando-lhes o desejo de madeira, o melhor que tinham a fazer era trazê-la consigo da Escandinávia continental. Por isso, a única floresta da ilha foi plantada por um senhor que, fartinho do verde rasteiro, decidiu criar levar demasiado a sério aquela ideia de que plantar uma árvore faz de nós seres humanos mais completos. É um dos pontos de interesse da pequena vila de Kunoy, situada na ilha com o mesmo nome. Pequenina, com a já familiar arquitectura quintal de relvado, torna-se acolhedora com um passeio na rua. Kunoy é pequena, quase ridiculamente pequena mesmo para os padrões faroeses. É o principal centro habitacional da ilha, mas tem apenas 64 habitantes, naquilo que alguns designariam "paraíso na Terra", principalmente se forem seguidores de Sartre. Kunoy traduz-se por "ilha da mulher", nem sei bem porquê. Quero acreditar que tem a ver com uma história que li algures, de que em 1913 uma aldeia vizinha perdeu praticamente toda a sua população masculina quando sete homens morreram num acidente de pesca. Sobraram um velhote de 70 anos e uma criança de 14. O resto eram mulheres. Uma aldeia só de mulheres. O sonho de alguns movimentos feministas, certo? Pois as mulheres devem-se ter fartado umas das outras: passado seis anos, pegaram nas suas trouxas e mudaram de morada, para outro local ali perto. Os Faroeses devem habituar-se à solidão de séculos, mas há solidões e solidões, e quando o mar ruge e feroz bate nas rochas, nas ervas, na têmpora, há frios mais crus do que o gelo e a neve polares.
Um passatempo popular em Kunoy é o alpinismo: esta é a ilha de maior altitude do arquipélago, e estas impressionantes montanhas só espantam que acho que 800 e tal metros são coisa de estalo. No ano passado, descansei a coluna na base de um monstro de sete milenas. O que me impressiona não é altitude, mas a violência do recorte rochoso, a sedosa caminhada das nuvens que lambem os socalcos quase punhais destes montes; e a permanência sempre monótona até que nos encanta de um verde húmido, fresco. Hoje está vento, mas olho os montes a partir do centro da aldeia. Não são altos, mas encantam e sei que, inevitavelmente, me aproximarei. Mas por agora, sou coscuvilheiro, cada casa tem janelas do tamanho dos olhos de personagens de anime. É impossível desviar o olhar e vão ficando pormenores - bules azuis, flores crescendo dentro de sapatos, espanta-espíritos brancos, a possibilidade de ver o mar através do interior de uma casa, como se a realidade se multiplicasse e eu vivesse no interior e no exterior em simultâneo. Há habitações sólida,s outras parecem desfazer-se a qualquer altura quando o vento despeja mais forte. Existe uma só estrada a atravessar a aldeia e caminho-a, estando de for,a imaginando o interior de todas as casas. Existe um pequeno carreiro que vai dar ao mar. Avanço e passo por um casebre de madeira húmida. escura, onde estão pendurados pedaços de baleia a salgar. Lá dentro, instrumentos de pesca baralham-se e misturam-se. Mas sigo para o mar. A areia é cinzenta e negra muito fina. A água salgada envolve-me as mãos e não está frio, não me congela o sangue. É tépida e penso como o Pólo Norte está tão perto e já mergulhei em águas mais frias a norte do Douro. Deixei para trás a marca dos meus passos, mas já lá não estou. É como se um fantasma me acompanhasse e não penso que sejam de um morto. Na minha cabeça, alguém que vive noutro ponto está comigo e nem veio de viagem, mas é como se aqueles passos lhe pertencessem, que também tem os pés grandes. O mar marulha quando olho para trás e imagino quem não está mas permanece. Do outro lado, a ilha de Boroy testemunha e deve perguntar-se, porventura, se a minha sanidade mental alguma vez teve lugar no meu corpo.
Os montes que tanto me interessaram estão defronte de mim. Aquela neblina que cobre o granito quase lhes dá mais uns cem metros. Cinquenta, vá lá. Criam um anfiteatro natural onde as ovelhas actuam numa peça que repete sempre a qualquer hora nas Faroé. Chama-se "Lã e Ordem". Nem se prestam ao rebanho, anda um por ali e outra por acoli, coisas que eu vi. O grupo fica para trás, discute-se a qualidade da comida faroesa e também se o Porto será campeão nesta época. Salto um pequeno riacho, calmíssimo a murmurar ditongos, e vou fotografando até reparar num cavalo que enquanto pasta se espicha de quando em vez pela proximidade de uma malhadiça bovina. A minha memória reconhece no animal cornudo intenções que já encontrei em gado madeirense, nas vezes em que me perdi nas veredas daquele arquipélago. Não são particularmente subtis: se virem um bicho deste porte a olhar constantemente em redor, inquieto e se este acelerar o passo em investida, a melhor solução mesmo é desviarem-se da rota, procurarem um ponto alto e não perderem a alimária de vista. È simples descrito, mas quando a relva humedecida faz do chão um papel de alumínio besuntado margarida e temos uma centenas de euro agarrados ao pescoço por uma fita, já um equilíbrio a ser jogado; e a vaca lá corre, mas na direcção oposta à minha. Um magote de portugueses apercebe-se da situação um pouco tarde e do meu ponto privilegiad, tenho a oportunidade de assistir às festas de S. Fermin sem meter um pé em Pamplona. Há um pouco de rumba na maneira como o grupo se desmobiliza e cada um por si tenta escapar. Apenas o Joaquim a táctica de esperar para ver, confiante de que qual Alan Grant, a imobilidade o livre de um predador. Mas a vaca não é um T.Rex: a proximidade que estabelece com o Joaquim é de romance e vai cabeceando lentamente o assédio, enquanto o rapaz reza secretamente a uma divindade qualquer que o livre da ameaça. Nos segundos até desmobilizar, quase juro que a vaquinha troca um linguado com o moço, tal é a proximidade das cabeças, mas felizmente desmobiliza e vai à sua vida.
A prometida floresta é pequena, mas ilusória, a construção de um só homem. Não sei se a sonhou, ou se olhando para a bela paisagem tenha pensado "Posso ser um deus"e assim deu num, ofereceu aos faroeses algo que não encontram fora das cidade,s por muito estúpida e paradoxa que a afirmação pareça. Não existe a ilusão do mundo natural selvagem: há cercas de arame por todo o lado conduzindo o visitante, encaminhando-o para os locais que o dono deseja, mas apenas uma cancela limita a entrada no local e está sempre fechada, um respeito que os anteriores visitantes têm para com o espaço. Penso em como este povo de marinheiros nunca terá sentido a profunda solenidade de um grande espaço arbóreo, a sensação de estar sentado entre troncos centenários e frondoso verde a perder de vista, vermelho outonal quando a época chega, folhas amarelas no chão. Não me faz esquecer que é no mar, no cheiro salino que se escondem os tesouros maiores destas ilhas. Admiro esta pequena obra humana, o labor e a paciência, o planeamento, a convivência e aliança com o tempo contado em anos, mas nunca sai de mim a sensação de que só a Natureza esmaga, só ela consegue reduzir-nos, ainda que com montanhas pequenas, à nossa medida plena: uma insignificância que encerra em si um ego disposto a provar o contrário; e penso que sempre quem quem se atreve a ser arrogante perante uma árvore, merece cair na floresta e que sejamos surdos ao seu baque.
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