terça-feira, janeiro 30, 2018

As ilhas Far Away: Saksun seguro


Uma lareira e um livro. Isso do exotismo é muito bonito, mas há alturas em que vou de viagem e procuro lugares que combinem bem com este pequeno prazer. Uma lareira e um livro. Trago um na mochila enquanto ando de um lado para o outro nas Faroé e embora a oportunidade de me dedicar com a devida atenção aos seus prazeres ("Crónicas americanas", de Sam Shepard; acabarei por lê-lo no avião em trânsito para Copenhaga) não surja, a grande qualidade de todo este arquipélago é a perfeição de qualquer lugar para nos refastelarmos ao calor na companhia das palavras. O Quirguistão era a evidência de que certos países são bons para a aventura e o reboliço, pegarmos em nós para vários lados, vários locais, a procura do próximo ponto que nos deixe de boca aberta, a próxima montanha ou lago, o que vem a seguir e não pode mesmo ficar para depois, tem de ser agora. Certas viagens precisam da vertigem porque algumas maravilhas são demasiado altas para que lidemos com elas na devida segurança. As Faroé, no entanto, são um vôo rasteiro que aprecia a a calma e o verde constante, as nuvens baixas em ameaça de chuva que, ao concretizar-se, convidam ao interior, a serenidade da paisagem de mar e terra, convidam ao sofá e à contemplação: parar e suspirar entre frases, e mesmo sem elas, estar só por isso mesmo, por esse motivo. Ao contrário do Quirguistão, aqui passaria semanas em calmaria, um porto seguro, eu e a minha companhia e de livros e filmes, a permanência em casa como as férias que só saboreia quem se sente estrangeiro mesmo entre quatro paredes.


Se escolhesse um local para isso, podia ser este, Saksun. É uma daquelas aldeias sem saída: a estrada aqui acaba e quem quiser seguir só a pé. Ainda antes de chegarmos, tiro uma foto fetiche, estendido no alcatrão e apanhando os meus pés com a recta travessia rodoviária como um tapete. Chove, mas importo-me pouco, sou o único demente que o faz. Se seguirmos o caminho, ainda antes de estacionarmos, saúdam-nos ovelhas que, e juro que não brinco, vestem casacos. Os Faroeses tosquiam os bichos e depois, como quem rouba e tem pena, substituem-lhes a protecção natural contra o frio. Se isto parece surreal, combina bem com o cenário que nos espera. Uma baía seca está lá, no fundo de uns penhascos, apenas com uma amostra de mar. Saksun é um conjunto de casas que a rodeia, um braço de mar dependente dos caprichos das marés, que nega beijos aos pescadores exauridos enquanto não se decide a encher e a dar-lhes passagem segura até aos seus. Nem sempre foi assim: esta abertura é um excelente porto natural e até uma tempestade, em raiva irracional, bloquear a passagem com areia, tudo funcionava bem. Mas a Natureza é essa amante caprichosa. Talvez por redenção, decidiu rodear a baía de cascatas, que em dias de chuva como o de hoje transformam tudo isto num cenário de fábula. Surgem em todos os veios dos montes, caminhos na rocha que a água abriu na paciência dos tempos e caem assim sobre a baía quase seca, como pingos que molham mas não amontoam. A vontade é a de descer por um trilho improvisado e caminhar nas margens de areia, numa praia que só existe durante algumas horas por dia e sentir-me assim parte do fundo do mar, como um tritão. Não há tempo.


Enquadrado no cenário, um cemitério instala-se ao lado de um igreja. Depois da experiência em Vidareidi, os meus sentidos ainda estão despertos para a morte, mas não me sinto com estrutura suficiente para deduzir mais tragédias alheias. Dentro da igreja, funciona um museu, que está fechado e não percebemos muito bem qual é o tema. O edifício, no entanto, tem uma história curiosa. Originou noutra vila, Tjornuvik, mas em 1858, talvez porque Tjornuvik é uma daquelas vilas tão perto do mar que este a considera um quintal privado, foi considerado mais seguro desfazê-la e instalar o edifício noutro ponto, neste caso uma encosta remota e desabitada a mais de dez quilómetros em linha recta. Sem estradas, o material apenas aqui chegou pelo esforço de transporte no topo dos montes e em oblíquas encostas que devem ter desafiado a gravidade das pernas de quem se entregou a esse esforço. Não se percebe bem a razão, os Faroeses devem gostar do isolamento: habitam 14 pessoas em permanência. Mas imagino-me aqui no Inverno, o verde dando lugar ao branco da neve, esta vista incrível para um mar seco, uma baía com humores e os meus olhos cobiçam qualquer uma destas casas de telhado de erva, a madeira que as compõe, o isolamento para a minha lareira, uma estante de leitura à minha espera para deslizar no ócio dos olhos enquanto lá fora os flocos embaciam os vidros da janela e eu sei que o mar me espera e vagueia, que as mulheres aguardam os pescadores, que não estou neste século e no passado tudo era mais difícil, eu sei, mas eu que, tantas vezes temo a solidão, ganho apetite de aqui ficar e assim estar comigo. Os lugares que nunca foram nossos têm este estranho poder de nos tornarem em pessoas que nunca fomos.

Antes de sair de uma Saksun que está fora da realidade, cruzo-me com um oriental que debaixo de um chapéu de abas deixou crescer uma horta grisalha. Quase que vejo vegetais, mas quando os nossos olhos se confrontam, sorrimos por instinto e reparo então que ele é igualzinho ao físico teórico Michiu Kaku. Tira fotos a tudo, claro, e eu não consigo fotografar nada sem me tocar e sem verificar que isto é a minha realidade, que continuo no meu corpo e no meu espaço e que as cordas da minha teoria não me sentaram numa poltrona devorando páginas. A minha realidade é o regresso à nossa casa nas Faroé e já no carro, divago para outros calores e outras lareiras, dentro de mim, dentro de quem fui mais do que uma baía seca. Tambéms se arde bem assim.

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