quarta-feira, fevereiro 14, 2018

Ilhas Far Away 13: Tjornuvik


Tornou-se inevitável, depois de comentar com amigos que pensava em viajar até às Faroé, perguntas sobre a matança de baleias. O arquipélago tem uma tradição de secular de limpar ocasionalmente o sebo a uns cetáceos - e é literal - e já desde o famoso hino ambientalista de Roberto Carlos que se tornou pouco popular desejar a morte a baleias. Em pequeno criava-se em mim uma incandescente raiva quando via na televisão imagens de caça a baleias. No meu pequeno entendimento de garoto, não me consegui caber que aqueles homens brutos pudesse desejar o aniquilamento daquelas nobres bestas, pacíficas e largas, comandantes dos oceanos; e de facto, a caça a partir de gigantescos barcos com arpões, redes eléctricas e todo o tipo de dinamite e munições é só bárbaro, cruel e cobarde. Os japoneses, por exemplo, que deram ao mundo a honra dos samurais, bem podiam aplicar a espada e não qualquer um dos métodos "científicos" que usam. No entanto, eu, comedor de carne assumido, não posso colocar-me num pedestal e criticar os faroeses. Visitei Tjornuvik, pequena aldeia piscatória que se tornou famosa em todo o mundo por ser umas das baías deste arquipélago onde anualmente se reúnem grupos de baleias com o único propósito de lhe cessar a existência; é difícil, estando aqui, não imaginar a água do mar carmesim, e escutar, ainda que entrecortado com o marulhar das ondas nas pequenas pedras que as recebem, os guinchos dos animais aflitos, o resfolegar dos homens, a azáfama das facadas. Para mais, a carne de baleia tem vindo a ser considerada pouco indicada para o consumo humano, ainda mais da espécie caçada pelos faroeses, a baleia-piloto.


Há ainda assim o cuidado de tudo regular e controlar: os locais escolhidos para estes eventos são restritos e apenas caçadores certificados podem alinhar. Não se torna tudo num massacre indiscriminado e mesmo dentro da barbárie, há algum cuidado em pelo menos introduzir uma ordem. Claro que cada um julgará para si se é o suficiente, e apesar de tudo não me sinto nada confortável em imaginar-me aqui, num local onde acontece tanta morte, e a minha criança presente, que só cresceu em altura mais vive aqui em mim, calca Tjornuvik e não esquece. Mas esta aldeia tem os seus encantos, claro. Situa-se no extremo norte da ilha de Streymoy, aquela onde temos a nossa base de operações. Nesta que é uma das mais antigas povoações do arquipélago, moram 65 pessoas, o que para os padrões faroeses é uma multidão. Todos os dias acordam com uma vista incrível de mar calmo, falésias rodeando as casas e ao fundo, uma ponta da ilha que parece uma rampa de lançamento de parapente. No entanto, sofre dos problemas de isolamento da maior parte dos povoados aqui: Tjornuvik é o fim da estrada, e é bem longa esta. Na pesquisa que fiz antes de vir, cruzei-me com o relato de um casal que fez um trilho de Saksun até aqui, 11 kms debaixo de chuva cacimba, e com toda a esperança de aqui chegados encontrarem algo de semelhante a um táxi. Esperaram uma hora e nada. O desespero apoderou-se de ambos e começaram a tocar a todas as campainhas, para implorar que alguém lhes facultasse um telefone. Felizmente, uma simpática senhora ofereceu-se para levá-los, sem cobrar nada, de volta a Skasun. Um anjo. 


Vale a pena vir aqui por duas razões. A primeira é o Stakkur, um brutal e longo promontório daqueles onde imaginamos o farol mais isolado do mundo. Está próximo da costa, lá ao longe, e quando iluminado pelo sol da manhã, envolvido pela neblina marinha das primeiras horas, jura-se mesmo que é um monstro acabadinho de acordar, despertando das águas. Eleva-se aos 166 metros de altura e todos os anos a malta daqui organiza expedições para subi-lo, só naquela. Só porque nada mais têm a fazer. Mais próximo da baía, encontramos "Rising og Kellingin", o que significa "O Gigante e a Bruxa". Refere-se a dois rochedos verticais de estranho formato, que devem o nome a uma lenda local. Falo dos epónimos personagens que vindos de uma grande ilha, tomaram para si a missão de raptar todas as ilhas do arquipélago das Faroé para levá-lo de regresso à sua casa. Com características de trolls, tiveram a sua missão encurtada pelo nascimento do sol enquanto carregavam os ilhéus para os seus sacos: transformaram-se em rocha e ali ficaram até hoje, para que eu, como turista, possa contemplá-los e perceber que se parecem zero com gigantes ou bruxas. Ao menos, o nosso Cabeço da Velha merece bem o nome que tem. Se as alcunhas destes fossem "O Alfa Pendular Lisboa-Porto e Careto de Podence", o efeito era o mesmo, mas a lenda podia ser muito mais brutal e David Lynch adaptá-la-ia ao cinema.

As nuvens estão tão baixas que quase tenho vontade de ser Son Gokou, colocar-me numa e fugir. Antes de nos virmos embora, um pequeno cão mete-se connosco. Parece maior do que é, pois tem camadas e camadas de pêlo. Está sozinho na aldeia, aliás como de costume, tudo está como se habitado por fantasmas. O bicho é extremamente simpático e traz na boca um pau que deixa aos nossos pés. Lançamo-lo, ele busca, devolve-nos. Tudo o que a minha cadela não faz. Um amor, este canídeo, sempre pulando e rebolando, irrequieto mas com graciosidade, desesperado por companhia e brincadeira, tem ar de quem não vê gente há muito tempo, mas está tão treinado que se torna impossível duvidar que algures existe um dono que dele cuida e trata. Não lhe vi nos dentes barbatanas. Talvez não o treinem para tudo, então. 

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