A Oeste, chamam-lhe Sorvagsvatn; a Este, Leitisvatn. Ambos se referem à proximidade de aldeias, conforme o ponto cardeal que tomamos como referência, mas aos meus ouvidos soa tudo igual; e em vez de ouvir, o que importa é ver. No geral, os faroeses percebem isso e quando se lhe referem, usam simplesmente a palavra "Vatnio", que tem o significado singelo de "o lago". São práticos e percebem que é bem melhor calçar umas sapatilhas e dar uma voltinha nas suas margens do que perder a voz e a sanidade em torno de palavras. Num espaço de 3 quilómetros quadrados e meio, a massa de água deita-se sem qualquer intenção de acordar. As águas mal mexem, ainda que sopre um vento apreciável e conseguimos ver os seus limites. Um termina numa aldeia; o outro desaparece subitamente e funde-se com a linha do horizonte. O motivo simples: devido a uma ilusão de óptica incrível, dá mesmo a ideia que uma das margens do lago tem como parente o oceano. Parece elevar-se centenas de metros e cresce em nós a curiosidade de saber que se saltarmos com força o suficiente, este prato de água treme, inclinando-se para derrubar o seu conteúdo sobre o mar. É o que nos leva a fazer uma curta caminhada que na ida e volta não ultrapassa os oito quilómetros, feito por trilho bem definido e de gravilha, com terra lamacenta pelo meio. Não chove enquanto o fazemos, mas estou certo que aconteceu anteriormente na manhã. A lama está fresca, é recente. Começando em Midvagur, contornamos as ondas das margens com nuvens baixas e um verde luzidio. O silêncio é intenso e nem mesmo as várias ovelhas com que nos cruzamos o quebram. Pastam sem manifestar-se, olhando-nos com uma indiferença quase tão impassível quanto a do lago.
No final do trilho, a terra desce subitamente para o mar. À minha frente, ergue-se uma falésia descomunal, tão nórdica que dói, chamada "Pedra do Escravo". É um ângulo agudo de pedra negra com cabeleira verde que impõe respeito. Ali, ao lado, sou quase nada, uma insignificância. Já estive junto a montanhas bem maiores, mas a sua rudeza e brutidade, a falta de educação de quem se sabe forte e de presença simplesmente incontornável, fixa-me os pés no solo. Escuta-se um barulho seco de mar contra a rocha. Não é imponente, não são trovões: é o quotidiano banal da água que se castiga a si mesma. È negra, reflecte o céu e talvez seja uma profundeza virada ao contrário. O terreno inclina e convida a subir, mas tenho o foco no topo daquele arrogante mastodonte geológico à minha frente. A caminhada não é longa, mas exige esforço súbito pela inclinação do terreno. No topo, posso então ver a cascata que tomba sobre o mar, a Bosdalafossur, e tenho uma surpresa. A altura, afinal, é curta. O lago chega ali e simplesmente descai numa cascata curta. A terra e o mar estão muito mais próximos do que pensava, quase nem há balanço para que a água se lance. É um dos mergulhos mais curtos que já vi, e olhem que já presenciei muitas bombas em piscinas e rios! Ouço então um zumbido mecânico que me distrai e quando olho para trás de mim, vejo um casal que se entretém com um drone. Duas colegas de viagem conversam na outra ponta da falésia e reparo que o rapaz que controla o drone as ouve atentamente. C'os diabos, ele percebe-as. É português!
Precipitação: afinal é brasileiro. Chama-se Kléber (claro que é brasileiro e se chama Kléber) e mora em Miami. A mulher a seu lado é a esposa e estão a percorrer a Europa. As Faroé são a última paragem. E Portugal? Nunca lá esteve. Pensa um pouco e afinal, deve ser o único país europeu que nunca visitou. Colonialismo ressentido ou vingança por nos termos apropriado de Ediberto Lima? A discussão permanece. O almoço morde-me e sentando-me no chão de erva, tomo como companhia a minha fiel lata de atum, que vou tragando enquanto olho as vagas lá em baixo, negras de espuma pálida. O vento sopra, mas meigo e sinto-me confortável, integrado, sinto o mundo também, mas apenas num murmúrio baixo Venho de um país de longa linha de costa, com anzóis espalhados, anzóis que são também cabos e falésias, mas aqui sente-se tudo de maneira diferente: Os Portugueses são um povo de marinheiros, mas os Faroeses são gente que funde terra e mar. Uma espetada mista, vá, mas mais loura e menos queimada. A falésia onde me sento é um daqueles pontos raros onde um meio encontra o outro sem nunca se tornarem completos. Daqui a uns minutos, quando o grupo se tiver ido embora, descerei até ao limite. Estou em pé na linha do horizonte e o que aqui encontro é mais horizonte ainda. As pedras fazem-me balançar os pés no deslize e tomo todas as precauções para não depositar o meu corpo no breu marinho. Não sei que nome tem este lago, o que calha bem porque não consigo perceber onde começar e onde acaba, o que faz parte dele e o que é do mundo, e ali num local indefinido, eu próprio há tanto tempo procurando saber quem sou afinal, ajo como se fosse vapor: invisível, malhadiço. Um suspiro numa cascata que mal existe, o ponto final numa frase que duas aldeias escrevem de maneira diferente
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