quarta-feira, fevereiro 21, 2018

Ilhas Far Away 14: Mar em terra


Quando andava na Primária, habituei-me a uma certa confusão em torno do meu nome. Chamo-me Bruno, de segundo nome Ricardo e entre colegas da escola, ou me tratavam por um ou por outro. Respondia a ambos, claro, mas para aumentar a confusão, tinha um vizinho que se trocava sempre e olhando para mim quando passava na rua, saudava-me "Olá, Nuno!" antes de seguir a sua vida. Três nomes designando a mesma pessoa, e nem sequer sofria de múltipla personalidade. Sempre fui eu, acho, pelo menos sempre me senti eu sem qualquer confusão. Nomes são palavras que designam: no momento em que saem da nossa boca, tornam-se algo concreto que não precisamos descrever. É por isso que um pequeno músculo pode ter o extenso cartaz fonético esternocleidomastoideo, e que toda a imensidão que nos rodeia se decreve apenas com duas letras: ar. Um nome é algo de bem definido, preciso e por isso muitas vezes se guerreia à conta do que chamamos ao que enche o nosso mundo. Ainda que pertencente à mitológica zona da civilização que se almeja (esse engodo que se chama Escandinávia), talmbém estes aspectos não são pormenores. Interessam muito. Na Ilha de Vagar, então, existe uma maravilha natural que fascina os olhos, mas confunde a mente pois ninguém se entende acerca do seu nome.


A Oeste, chamam-lhe Sorvagsvatn; a Este, Leitisvatn. Ambos se referem à proximidade de aldeias, conforme o ponto cardeal que tomamos como referência, mas aos meus ouvidos soa tudo igual; e em vez de ouvir, o que importa é ver. No geral, os faroeses percebem isso e quando se lhe referem, usam simplesmente a palavra "Vatnio", que tem o significado singelo de "o lago". São práticos e percebem que é bem melhor calçar umas sapatilhas e dar uma voltinha nas suas margens do que perder a voz e a sanidade em torno de palavras. Num espaço de 3 quilómetros quadrados e meio, a massa de água deita-se sem qualquer intenção de acordar. As águas mal mexem, ainda que sopre um vento apreciável e conseguimos ver os seus limites. Um termina  numa aldeia; o outro desaparece subitamente e funde-se com a linha do horizonte. O motivo simples: devido a uma ilusão de óptica incrível, dá mesmo a ideia que uma das margens do lago tem como parente o oceano. Parece elevar-se centenas de metros e cresce em nós a curiosidade de saber que se saltarmos com força o suficiente, este prato de água treme, inclinando-se para derrubar o seu conteúdo sobre o mar. É o que nos leva a fazer uma curta caminhada que na ida e volta não ultrapassa os oito quilómetros, feito por trilho bem definido e de gravilha, com terra lamacenta pelo meio. Não chove enquanto o fazemos, mas estou certo que aconteceu anteriormente na manhã. A lama está fresca, é recente. Começando em Midvagur, contornamos as ondas das margens com nuvens baixas e um verde luzidio. O silêncio é intenso e nem mesmo as várias ovelhas com que nos cruzamos o quebram. Pastam sem manifestar-se, olhando-nos com uma indiferença quase tão impassível quanto a do lago. 



No final do trilho, a terra desce subitamente para o mar. À minha frente, ergue-se uma falésia descomunal, tão nórdica que dói, chamada "Pedra do Escravo". É um ângulo agudo de pedra negra com cabeleira verde que impõe respeito. Ali, ao lado, sou quase nada, uma insignificância. Já estive junto a montanhas bem maiores, mas a sua rudeza e brutidade, a falta de educação de quem se sabe forte e de presença simplesmente incontornável, fixa-me os pés no solo. Escuta-se um barulho seco de mar contra a rocha. Não é imponente, não são trovões: é o quotidiano banal da água que se castiga a si mesma. È negra, reflecte o céu e talvez seja uma profundeza virada ao contrário. O terreno inclina e convida a subir, mas tenho o foco no topo daquele arrogante mastodonte geológico à minha frente. A caminhada não é longa, mas exige esforço súbito pela inclinação do terreno. No topo, posso então ver a cascata que tomba sobre o mar, a Bosdalafossur, e tenho uma surpresa. A altura, afinal, é curta. O lago chega ali e simplesmente descai numa cascata curta. A terra e o mar estão muito mais próximos do que pensava, quase nem há balanço para que a água se lance. É um dos mergulhos mais curtos que já vi, e olhem que já presenciei muitas bombas em piscinas e rios! Ouço então um zumbido mecânico que me distrai e quando olho para trás de mim, vejo um casal que se entretém com um drone. Duas colegas de viagem conversam na outra ponta da falésia e reparo que o rapaz que controla o drone as ouve atentamente. C'os diabos, ele percebe-as. É português!


Precipitação: afinal é brasileiro. Chama-se Kléber (claro que é brasileiro e se chama Kléber) e mora em Miami. A mulher a seu lado é a esposa e estão a percorrer a Europa. As Faroé são a última paragem. E Portugal? Nunca lá esteve. Pensa um pouco e afinal, deve ser o único país europeu que nunca visitou. Colonialismo ressentido ou vingança por nos termos apropriado de Ediberto Lima? A discussão permanece. O almoço morde-me e sentando-me no chão de erva, tomo como companhia a minha fiel lata de atum, que vou tragando enquanto olho as vagas lá em baixo, negras de espuma pálida. O vento sopra, mas meigo e sinto-me confortável, integrado, sinto o mundo também, mas apenas num murmúrio baixo  Venho de um país de longa linha de costa, com anzóis espalhados, anzóis que são também cabos e falésias, mas aqui sente-se tudo de maneira diferente: Os Portugueses são um povo de marinheiros, mas os Faroeses são gente que funde terra e mar. Uma espetada mista, vá, mas mais loura e menos queimada. A falésia onde me sento é um daqueles pontos raros onde um meio encontra o outro sem nunca se tornarem completos. Daqui a uns minutos, quando o grupo se tiver ido embora, descerei até ao limite. Estou em pé na linha do horizonte e o que aqui encontro é mais horizonte ainda. As pedras fazem-me balançar os pés no deslize e tomo todas as precauções para não depositar o meu corpo no breu marinho. Não sei que nome tem este lago, o que calha bem porque não consigo perceber onde começar e onde acaba, o que faz parte dele e o que é do mundo, e ali num local indefinido, eu próprio há tanto tempo procurando saber quem sou afinal, ajo como se fosse vapor: invisível, malhadiço. Um suspiro numa cascata que mal existe, o ponto final numa frase que duas aldeias escrevem de maneira diferente

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