quarta-feira, fevereiro 07, 2018

As Ilhas Far Away 12: Rose, a etíope


Quem me conhece sabe que gosto mais de paisagens do que de gente. Melhor: que aturo melhor cenários de estrondo do que pessoas que só apetece estourar. Por princípio, não tenho nada contra seres humanos; apenas tenho apetites, de quando em vez, de atirar alguns contra algumas superfícies duras. Nada pessoal. Cada um tem a sua forma de lidar com a vida. A minha, infelizmente, é excluída por qualquer código penal. É por isso que viver não é nada fácil. Ainda assim, tenho amigos. Acho, pelo menos. Eles dizem que sim, que são. Vou acreditando, ainda que acreditar, crer ou ter fé não sejam das minhas qualidades mais salientes (excepto para causas perdidas... aí sim, vou ao fundo com uma âncroa atada ao pescoço). Mas quando viajo, e isto nem me incomoda muito, a minha câmara raramente foca pessoas. Quanto muito, são o pormenor num enquadramento que lhes é bem maior, e até do que eu. Como não? Já têm visto algumas da estampas que aqui coloco. Sei que soa estranho, afinal a moldura humana é uma paisagem por si e também eu fico encimesmado quando me cruzo com aquilo que só uma pessoa pode dar. Já aqui mencionei a Sary Tash, a aldeia só de crianças, ou os nómadas de Song Kol ou a empregada de mesa que praticamente chorou por causa de uma gorjeta... Não é que não note ou que não me interessa: apenas o fascínio é diminuto. Mas este capítulo é dedicado aos faroeses, particularmente a uma mulher que nem é bem faroesa, mas que se tornou parte. É a ela que dedico, que me deixou a pensar bastante sobre a vida, e se bem que pensar é o meu pãozinho com sal, poucas vezes alguém específico me puxa isso.

A Rose nasceu na Etiópia há alguns anos, não disse quantos nem precisa. Trabalha num restaurante, mas tem um part-time de catering e está responsável pela casa onde ficámos nas Faroé. Não se dá muito por ela, mas sobressai ali naquele arquipélago distante porque encontramos pele bronzeada quando passamos o dia a ver a palidez cutânea. Antes de falarmos já a tinha visto duas ou três vezes, e o mais estranho é que sorri sempre. Mas não aquele arreganhar de lábios de absoluta falsidade que quer mostrar ao mundo o quanto a realidade nos força a sermos outro. É genuíno mesmo, descontrai-nos até e é doença que nos põe a sorrir também. Há pessoas que conhecem qualquer sobre a existência que nós nem sonhamos ou se sonhámos, não acordámos para ela. A Rose pareceu-me ser uma dessas pessoas. Calhou que, por sugestão desta empreendedora, tenhamos aceite a sua publicidade de lhe encomendar um jantar. Ela faz pizzas, e vocês sabem o quanto gosto de pizzas. No entanto, massa era também uma alternativa, e aí já não engelho. Em casa, todos têm fome, mas falar inglês é que já envolve diversos graus de apetite. Dois intérpretes foram escolhidos para avançar com o destemido líder até casa da Rose, a umas quatro da nossa. Escuro e vento não nos demovem, avançamos. O mar torna-se ainda mais escuro à noite, reparo, ou então sempre foi, se calhar: nós é que lhe encontramos a luz. A mão do Paulo comunica à porta que há visitas. Esperamos um minuto e pouco, escutando barulho vindo do interior. São arrumações, misturadas com o som de uma televisão. A porta afasta-se de nós devagarinho e é a Rose. Sorri, claro. "Come in", e o hall de entrada é a sala. O marido, mais faroês é impossível, senta-se na poltrona a ver o jornal. Não sei se dinamarquês, nós cá também temos a RTP Madeira. Não me consigo recordar do nome, mas a cara ficou-me estampada na memória.

Ela gaba-o: a família do marido é dona da casa há muitas gerações e os seus avós construíram a maior parte das casas da aldeia e também um porto de abrigo que fica mesmo em frente. São, verdadeiramente, os maiores da sua aldeia. Somos levados à cozinha, o seu domínio imperial. Nós queremos discutir ementas e encomendas e a Rose retira ao frigorífico os seus tesouros, ingredientes vegetais que não mais acabam, tem tanto orgulho neles como eu tenho do meu cérebro. Estas são as cenouras, estas as rúculas, aqui estão as alfaces e o mar, lá fora, bate e ondula e também o ouço, mas confundo-o sempre com a voz da Rose. Porque sou idiota, e também porque não tenho vergonha de fazer coisas ridículas apesar de me envergonhar com os passos importantes que devia dar e não dou, quero saber porque é ela gosta tanto de comida; e descobrimos ambos uma mulher que nasceu em África e porque escolheu esta ou aquela pessoa, já andou pelo Iemen e pelos Estados Unidos, com um desvio pelo Canadá. Já teve outra família, agora tem este marido, deixou os seus para trás e só os vê quando as ocasiões se aprontam. È o que a vida lhe deu e não pode fazer muito mais. Não conta tudo, mas pela spalavras que usa, pela maneira como conta, há recantos negros. Que, diga-se, não fazem grande mossa, fala de tudo como se fosse normal. Casou com o marido para poder ser faroesa; e às vezes sente falta do calor, o cinzento daquelas ilhas custou-lhe ao início, mas habituou-se, as pessoas são simpáticas com ela e que pode ela fazer? A vida é isto, e então diz-me algo em que nunca acreditei, nem acredito, mas dos seus lábios soou a versículo incontestável: "O que posso fazer é o Bem. É a única coisa que posso controlar; e se fizer o Bem, tenho a certeza que um Bem igual virá ao meu encontro. É o que a vida me ensina. Andei por muitos locais e sempre tentei ser o melhor que posso e a vida deu-me isto, esta casa quente, alguem que gosta de mim e conheço pessoas, como vocês, de vez em quando. Já viram quão bonito é o mar aqui?"

O pessimista dentro de mim quis rebolar-se a rir, mas foi tão autênctico e honesto,e  de certa maneira transparente, que não conseguiu. Acho que fiquei uns segundos fora dali, rebuscando-me. Penso que o Paulo e o Joaquim foram pedindo as coisas e de quando em vez pediam-me uma ajuda com a língua inglesa e eu dava, mas na verdade pensava no que esta mulher tinha dito. Não somos iguais em quase nada e no entanto, na nossa humanidade, também enfrentámos problemas. Mas ela saiu deles como o ferro forjado, nova e mais resistente, e eu mergulho no tumulto apenas para me desenconchavar à vez até que um dia nada mais sobra para amolgar. Queria pedir-lhe os segredo, mas tive vergonha. Lá está, dessa vez tive vergonha, e acabámos por nos vir embora sem que eu soubesse o raio é isso do Bem a atrair o Bem, porque quando o faço, acabo sempre como otário. Quando nos despedimos, acenou jovialmente e fechou-nos a sua casa com calma, devagar, como se não sendo convidados, também não fôssemos estranhos. Enquanto caminhávamos, aquele breu da noite era eu, olho para mim e vejo tanta escuridão e quando passei a vida a procurar respostas na solidão do espaço aberto, no segredo que a montanha sussurra quando a calcamos, esbarrei num ser humano com a atitude mais descompromeitda que encontrei nos últimos anos. Já ouvi muita idiotice do género, acreditem, mas apenas na boca da Rose me soou real. Tão real quanto eu a escrever aqui agora ou vocês a ler ou o amanhã que vai nascer e a Rose acredita ser uma oportunidade e eu creio crescer apenas para mirrar, levando-me com ele. Nesse dia, juro-vos, quis realmente descobrir que botões em mim se carregaram para que me tornasse assim.

Ainda não descobri. Mas foi uma pessoa que me impeliu; e isto é raro. Talvez esteja a gostar mais de gente, talvez me esteja a tornar mais humano. Ou então, a massa que a Rose fez era bem saborosa. Pode ser disso: é pela boca que melhor se conquista alguém, e não tem de ser necessariamente com verdades assertivas.

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