Aprende-se muito acerca de um país através da música que se escuta dentro dos carros. Um auto-rádio é uma afirmação pessoal. Ouço, logo sinto. Escuto, logo opino. As rádios funcionam normalmente sob o chicote do público: passam o que é mais popular. Duvidando que haja neste país uma Radar FM, presumo que existe um apertado programa estatal que circunscreve as hipóteses de álbuns à escolha. Enquanto balouço de um lado para o outro neste táxi, uma maviosa, envelhecida voz entoa em mandarim palavras que não entendo, baladas de arrancar lágrimas até às câmaras de vigilância. O condutor, arrancando-nos para zonas mais, digamos, alternativas, de Kashgar não liga muito e segue. O piano electrónico sobre o tom e enquanto dá uma súbita guinada para a esquerda, evitando por um triz dois garotos sobre uma acelera, que nem tomam conhecimento e é mais um dia em que somos uns jovens rebeldes que podíamos ter ido com os queixos à ladeira e não vamos. Uma rua esburacada atravessa algumas casas em adobe, o sol da manhã torna-as bem vermelhas e nalguns momentos, parecem sangue ocre. Como se esta parte da cidade não sendo central fosse na mesma uma artéria. Não vejo durante um percurso qualquer cara de olhos em bico. Aqui, moram os indesejados. Que é como quem diz, a etnia que o Governo quer esconder. É uma zona fértil e boa parte trabalha em campos verdes. Há sementeiras entrecortadas por um cemitério, como se a decomposição dos mortos adubasse e fertilizasse. O ciclo da vida. Apropriado, porque o principal objectivo da manhã é a feira de gado local, o que me traz logo memória de hilariantes episódios que vivi no Quirguistão. Prometeram-me que esta é ainda maior e que se realiza sempre ao Domingo. Há um dito na Ásia Central de que a população de Kashgar aumenta em cem mil habitantes todos os domingos. Tal deve-se não apenas a este evento mais de pecuária, mas também ao Grande Bazar da cidade, que visitaremos da parte da tarde. Dá para entender que muito da cultura Uigur se prende com a actividade comercial. É essa experiência humana que quero ver hoje, experimentar. Dentro de todas as condicionantes que já expliquei noutras crónicas.
Saímos das ruas estreitas e dos bairros para uma larga avenida. O taxista estaca e deixa-nos à entrada do recinto da feira. A familiaridade das barreiras anti-atentados recebe-nos com amor. Enquanto espero que o grupo se reúna, já carrinhas de caixa aberta vão dando entrada. Trazem bichos atados e com os olhos bem esbugalhados, balindo ou mugindo conforme a espécie, num cenário que faria os apoiantes do PAN rasgar vestes e lançar-se em tiradas no Twitter, porque se tentassem manifestar-se por estas bandas, o único PAN seria o das bordoadas na cara. Nenhuma das cabeças de gado parece sofrer, apenas estão... meio inertes. Quando entramos, reparo que há várias caras ocidentais aqui. Pelos vistos, é uma atracção turística. Antes de chegarmos à área comercial, uma zona de restauração forma-se em duas filas. Compõe-se por gente que faz comida tradicional em métodos tradicionais. A maior parte usando fornos de lenha, de barro ou metal. Tudo é cortado, misturado, cozinhado à nossa frente. Usam-se alguidares de plástico, facas afiadas, acima de tudo as próprias mãos. A improvisação de uma área onde cada se pode sentar em comezaina existe, com bancos corridos, mesas decrépitas e a sobra providenciada por longos panos coloridos, ténues. Os desenrascados chefs abrigam-se sob chapéus de praia, são dez da manhã mas há um calor abafado e vemos insectos em cima dos ingredientes que serão utilizados. O que não mata engorda. Vegetais e farinha, açúcar e carne, alguma fruta fresca, alguma fruta seca. Nalgumas bancas, animais mortos inteiros dependuram-se de longos ganchos de metal. Se eventualmente alguém pedir uma peça específica, o cozinheiro arroga-se de um cutelo e com dois ou três golpes desfaz a carcaça à frente do cliente, muitas vezes com a ajuda do mesmo e amigos, que funcionam um pouco como aquela multidão que se reúne em torno do funcionário camarário que de facto trabalha. Passo por uma onde, no chão, se alinham várias cabeças de carneiro que têm tanta vida quanto o coração da actriz Maria Vieira. Repousam em camas de lã e fazem-nos tomar contacto com o acto gráfico que é tirar a vida de um animal,. Recordo quando, criança e com metro e pouco, via familiares meus a matar um porco e ajudava no pouco que o pouco que eu era permitia. Sentia alguma pena do bicho, os guinchos incómodo, o espernear em pânico, o cheiro da certeza do último momento inchando as narinas daquele suíno rosa que empalidecia no golpe certeiro, quase artístico do meu avô. É preciso jeito para matar um animal em compaixão. O meu avô não detestava vê-los sofrer e era misericordioso na rapidez da sua crueldade. O argumento vegetariano de que se soubessemos o quanto um animal sofre quando lhe terminam a vida não funciona comigo. Eu sei e cresci com isso. Mas também sei que a morte do porco nunca era em vão. Tudo se aproveitava. Olho para estas cabeças de carneiro e não penso em tofu. Apenas que, de alguma forma, uma ligação estranha uniu-os em vida a quem os matou. Que cumpriram uma função. E que no fundo, todos somos um bocado isso: uma função. Apenas uns são comidos. Outros são mastigados em cuspidos sem nunca serem verdadeiramente úteis. Só utilizados.
Um pouco a martelo, sou abordado por um jovial chinês. Fato de treino de marca, boné colorido, uma máquina fotográfica ao pescoço com uma daquelas lentes que podia protagonizar vídeos no Pornhub. O sorriso visa desarmar-me, mas mesmo estando há tão pouco tempo no país, a minha alma pertence a "The X-Files". Ser desconfiado faz parte de mim. "Good morning", num inglês de sotaque carregadíssimo. Correspondo. Se estou bem? Cá vou andando, amigo. É tão estranho ver ali alguém do Ocidente, ri-se ele, reparei logo. E eu digo que sim, não devem ter muitos visitantes do meu lado do mundo neste seu canto de planeta. Diz que também anda aqui a visitar, que é de Xangai. Outro turista então; e a pergunta que me faz a seguir podia ser de quem anda a passear. Se estou a gostar disto. Se tenho recomendações. O que irei visitar no resto da viagem. Mas não: no que ele está interessado é na minha opinião acerca do sistema de segurança de Kashgar. Questiona-me o que penso dele. A uns dez metros, mesmo atrás do meu interlocutor, uma senhora de meia idade, grossos óculos escuros, casaco apertado até ao pescoço, aponta-me um telemóvel. Estou a ser filmado. Por quem? Provavelmente polícias à paisana. Com alguma mordacidade, satisfaço-lhe a curiosidade com um "Very present". Ele gargalha um pouco e regressa "Nada como de onde vens, não é?" "Bem, entendo pouco de câmaras. Normalmente, quando me estão a filmar, normalmente pedem-me por favor" e lanço um olhar à pouco discreta voyeur. Desta vez não ri. E tomo eu a iniciativa "E tu, o que achas?" Não responde. Pega na máquina e começa a fotografar alguns dos comensais, afastando-se Olho em redor, esperando rápida acção em forma de algemas. Nada. Ainda não é hoje que vou conhecer melhor o que é viver, de facto na China.
Viramos à esquerda e numa gigantesca arena poeirenta, castanha, larga, animais de duas e de quatro patas misturam-se naturalmente. Vem gente de todas as aldeias num raio de cinquenta quilómetros trazendo ovelhas, carneiros, vacas, camelos, iaques, burros. Só não trazem suínos porque o Islamismo dos Uigur proíbe o contacto com tais seres. Os animais são atados a longas e horizontais barras de ferro, quando têm sorte. Quando não têm, fecham-nos num apertado redil onde se tornam numa mancha indistinta de pelo ou lã, as cabeças vindo à tona para respirar, apertando-se e tentando sair daquele volumoso rebanho. Encontram-se alguns olhares vazios, perdidos. De quem sabe o que os espera, de quem ignora. Estão divididos por tipos. As compras e trocas que se efectuam neste espaço dão-se na base do aperto de mão e do berro. Discutem e regateiam, apontam defeitos, exaltam de qualidades. Não procuram simplesmente um bom preço: faz parte, está-lhes no sangue. Saídos das suas mães, quiseram saber logo quanto custava a tesoura que lhes custou a placenta e levaram a mal quando não lhes fio vendida. As reses são verificadas, palpadas, analisadas. Várias vezes vejo-me obrigado a desviar quando um berro de "Bosh-bosh", me indica que alguém quer passar, habitualmente arrastando uma cabeça de gado. Estes gritos, por vezes, anunciam veículos, o que envolve um impacto bem maior caso escolhamos manter a nossa posição. Vou fotografando, sempre com atenção. Quando uma carrinha pára, vem sempre alguém ajudar a descarregar as nervosas criaturas. Passam de mão em mão até à segurança do solo. Por vezes, chegam atados em motas. Os modestos condutores usam como capacete equipamento de pedreiro. Quando alguém compra um bicho e por acaso não tem como transportá-lo, ou opta por carregá-lo em ombros, como se tivesse vencido uma partida desportiva; ou espera por transporte, pernas apertadas em trono da sua nova possessão, guita de corda enrolada no dedo. É um pouco como o encontro de Tinder mais estranho a que já assistiram. Tudo isto rodeado de buzinadelas e gritos, risadas largas, gestos secretos. Enquanto tiro fotografia a duas matronas sentadas em bancos de praia, bisbilhotando, comerciando entre os mais recentes cochichos, um velhote pedala numa bicicleta que leva no quadro uma ovelha. Classe. Na sua retirada, separa duas jovens que vêm de mão dada. Ambas vestem batas de médicas, envergando por baixo o uniforme oficial de sopeiras. Mas nas vestimentas que observo há uma exuberância de cores, principalmente entre as mulheres. Vermelhos carregados, púrpuras despudorados, amarelos sem vergonha. Contrastam com a timidez do homem rude rural que se cobre de flanela e aperta o chapéu nómada bem fundo na cabeça. Como se fossem eles os bichos mais selvagens de todo este espaço.
Afasto-me. Regresso por onde entrei. Algumas bancas vendem bugigangas e equipamento útil para quem trata de gado. Cordas, principalmente, não vá o negócio realizar-se e na altura se atinja a realização de que não há como prender a carga. Perto, um ferreiro aceita encomendas para os cascos dos bichos. E vejo, a pouca distância, uma longa fila de homens, confiando as suas barbas, trocando conversas vaporosas. A atendê-los, um barbeiro improvisado que, por alguns yuans, apara cabelo, aperfeiçoa decorações faciais. Sem que, por algumas vez, pareça saído de algum encontro de imitadores de rockabillies. No tempo em que observo, aplica zero vezes óleos para a barba. Zero. Deve ser um maluco. Algumas das pessoas do grupo - que, só para cumprir estereótipos, são mulheres - entregam-se às compras. Pegam em objectos cobiçam, comparam. Eu, que só estou ali para reter memórias e formar imagens, sento-me à sombra. Reparo na entrada de um homem alto, de fato coçado e ruço. Dois polícias que controlam os transeuntes cumprimentam-no. Estão sentados também, mas em cadeiras defronte de um edifício pequeno de dois andares. Exibe as insígnias policiais, bandeira chinesa evidente. Simboliza o poder local naquele lugar. Sim, amigos: é só para dizer que também estamos aqui. Conversam durante uns momentos, nos quais gesticulam em direcção à multidão. Então, o senhor tira de uma mochila uma câmara fotográfica, com o que parece ser um canhão acoplado. É uma gigantesca lente de longo alcance, perfeito para que alguém se refastele e possa fotografar objectos a longa distância; e quem diz objectos, diz também pessoas. Um dos oficiais encaminha-o para o interior do edifício e segundos depois, vejo-o sentadíssimo da vida no andar superior, fazendo girar aquele óculo em todo o redor. É um estilo de vigilância mais personalizado, a máquina, por uma vez, tem de facto uma alma. Nada vi nesta feita que me parecesse particularmente perigoso ou ofensivo para o estado chinês. Apenas gente que provavelmente acordou bem mais cedo do que eu para ganhar a vida de uma forma dura. Que não deve ter nada mais em mente do que simplesmente ter dinheiro para o dia seguinte ou pelo menos, ir amontoando até se sentir confortável na vida... dentro daquilo que é o conforto nesta zona do mundo. Aquela luneta é apenas outra mão, que afaga a cabeça dos cidadãos, que marca presença, que garante que o Grande Camarada não descansa nem dorme. Em casa ou na feira de gado, está lá. Para vos acompanhar, para nunca vos deixar cair. As histórias que ouviram são verdadeiras. História que vos contarei na próxima semana.
No caminho de regresso, não encontro o jovial chinês com quem tive aquele interessante diálogo. No entanto, continuo a ser filmado, desta vez por duas mulheres. Faço por ignorá-las. O Zé Luís aproxima-se e comenta comigo como ficou desapontado com esta visita. Bem, uma vez visitadas dez, qual é a novidade? Mas não é isso. No ano anterior, a dimensão era muito maior. Assim de cabeça, lembra ele, estavam pelo menos o dobro das pessoas. Não sabe o que se passou. Talvez o controlo tenha apertado. As regras mais numerosas. A Polícia mais desconfiada. Mas é um mistério. A desilusão foi tão grande que ele ponderava retirar este ponto da próxima expedição que guiar até Kashgar. Enquanto caminho, vejo dois homens fazendo crepes de carne à unha. Num deles, uma vespa fica refém da massa e irá como proteína extra a quem quer que seja que calhe o brinde. Alguns minutos mais tarde, já no regresso ao centro de Kashgar, abrandamos num piquete policial. Mandam parar alguns carros, fazem-nos sair do caminho e convidando de maneira educada os condutores ao exterior, questionam e indagam. Nós passamos sem problemas, depois de uma olhada rápida. Há algo em comum entre os inquiridos: as feições mongóis. A tez queimada pelo sol, castanha. Os olhos ovais e tristes. Os mesmos casacos coçados, os mesmos chapéus quirguizes, o mesmo dialecto. São uigures. Em carros velhos, em carros banais. Nenhum sinal exterior do que quer que seja. Parados porque nasceram em desenho diferente. Suspeitos sem outro crime que não seja o da presunção da culpa. Na cara, a enfadonha resignação de quem reconhece o seu lugar na imensa engrenagem de uma máquina implacável. Dão provavelmente as mesmas respostas maquinais que já ofereceram em todas as outras ocasiões em que, numa quebra do seu tédio, a Polícia decidiu tratá-los como leprosos meliantes. Quando deixo o piquete bem para trás, ainda lá ficam. Quando escrevo estas palavras, ainda lá estão. Presos sem cordel. Como gado.
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