Os meus três companheiros de cabina são o Mário, o Tiago e o Hélder. Um trio de advogados aos quais tento não dar muitos motivos para que me envolvam em casos de tribunal. Todos negam ressonar, mas nenhum de forma convincente. De qualquer forma, fico com um dos leitos superiores, que não costumo ter sonos agitados. Enquanto arrumamos as nossas malas e mochilas, o pica aparece e na China, não se picam bilhetes. Neste caso, podemos chamar-lhe o "troca", porque o senhor indaga por nós e ainda que não fale uma palavra de qualquer língua ocidental, percebemos logo que quer os nossos bilhetes. São uns cartões pequenos, de tom rosa. Nas mãos, um dossier com separatórias de plástico assinala-se com números e letras. O nosso bilhete é trocado por uma placa de plástico, substituída durante esta viagem. É um sistema de controlo arcaico, a milhas das câmaras e microfones tão caras ao Comité Central, mas eficaz. O meu cartão é verde, com uns caracteres debruados. Arrumo-o na minha mochila. E agora... temos muitas horas para matar. Não literalmente, o que causaria grande estardalhaço. Vou estudando os pequenos hábitos do comboio. De meia em meia hora, passa uma senhora empurrando um carrinho. Deita um olho às cabines, procurando quem lhe namore a comida e a bebida que transporta. Doces, chocolates, sandes manhosas, água, refrigerantes. Tudo isto ao alcance de alguns yuans. Nunca é sempre a mesma mulher. Vi pelo menos três, mas têm todas a mesma idade, entre os 40 e os 50. Deve ser uma função de senioridade. Ocasionalmente, o corredor é também frequentado por um polícia, mas a sua identidade não muda. Um indivíduo rotundo e anafado, sempre com o cansaço digno de quem tem uns 130 quilos a pesar-lhe nas rótulas. Xinjiang é uma província muito seca e estamos no Verão, por isso sua como uma esfregona que empurraram contra o balde. Deve mudar de camisa várias vezes, porque nunca o apanho com manchas na roupa e o ar de quem fez o Ice Bucket challenge forçado pela pressão dos colegas de trabalho. De qualquer forma, nem nos comboios escapamos à presença policial. Sem dúvida que é a profissão do futuro na China.
Mas rapidamente se instala o marasmo típico das viagens longas. Piadas para aqui e para ali e entretens nos telemóveis não ajudam a disfarçar o facto de que estaremos várias horas dentro deste espaço fechado. É então que o Hélder aparece com um baralho de cartas. Se levo pouca coisa aprendida durante estes 36 anos de vida, uma coisas certa é a de que uma cartada é aposta certeira no que toca a distracções entre homens. É ver entre nós, machos de idades diferentes, gostos díspares e naturezas desiguais, o mesmo olhar beatífico lançado ao Hélder quando ele lançou a boa nova. Se tivesse afirmado ali que teríamos comida a sério durante a viagem, a recepção não teria sido melhor. Numas contas rápidas, somos seis homens e há apenas 52 cartas. Proponho então uma sueca italiana. Quase ninguém sabe como funciona, mas aprendem rapidamente: há cinco jogadores e as regras são as da sueca tradicional. O twist é um sistema de apostas que leva os jogadores a calcular a possível pontuação que farão em cada jogo. Leilão de pontuações feito e o vencedor escolhe o trunfo e também, às escuras, um parceiro que terá uma determinada carta que lhe dá jeito. Fica sempre um de nós de fora, mas criamos uma liguilha que decorrerá com rapidez suficiente para quem o escolhido não fique muito tempo sem malhar uns trunfos. Sucesso imediato e num ápice até algumas mulheres, que se confessam não muito fãs de jogos do género, querem jogar, até porque o relógio parece que corre quando não nos lembramos de olhá-lo. Ases e manillhas e vazas e aqueles que contam as cartas e os que só jogam por diversão. A tarde é quase toda passada em redor do jogo, entre os mais habilidosos e os azelhas que ocasionalmente têm sorte, onde me incluo. De certa forma, é sermos portugueses bem longe de casa. Os jogos chineses costumam ser outros, entre o Mahjong e os Ossos - ou até, algo que não vimos até agora, lutas entre grilos. Numa cabine, estão meia dúzia de lusos a criar barulho e sururu por contas de uns bocadinhos de papel. São como crianças, entretendo-se com pouco.
A certa altura, preciso de espaço pessoal e aproveito o vazamento da minha cabine para me deitar, calmamente, e ler. Regresso a "Easy riders, raging bulls", de Peter Byskind, que já me acompanha na viagem de avião. É uma crónica factual - ou segundo alguns dos envolvidos, bastante livre na sua veracidade - do movimento cinematográfico que revolucionou o cinema americano na década de 70. Homens como Scorsese, Coppola, Friedkin, Ashby, Spielberg, Beatty, de Palma e muitos mais, no seu melhor e também no seu pior. Byskind não está aqui para fazer análises artísticas. Interessa-lhe a intriga e o podrezinho, as relações pessoais, os segredos mal escondidos. Percebe-se porque é que em Hollywod lhe chamam indústria cinematográfica e não arte. Existem tantas variáveis humanas que permitem a produção de uma filme e que pouco têm a ver com talento ou mérito. Entre as histórias que podem ou não ser verdade, Robert Altman é descrito como um misantropo; aborda-se o ego imenso de Coppola, proporcional ao seu talento e que embora lhe tenha dado provavelmente a melhor de cada de qualquer cineasta norte-americano jamais teve, lhe acabou com a carreira a longo prazo; o introvertido Scorsese tem sucesso e rapidamente se vira para a cocaína; Warren Beatty não era o maior femeeiro de Hollywood; Paul Schrader é um caso de manicómio; William Friedking tinha um fascínio tão grande pela Nouvelle Vague francesa que se viria a casar com Jeanne Moureau quando esta já tinha quase cinquenta anos; e Peter Bogdanovich um daqueles gajos com pouco carácter no que toca a mulheres. É fascinante estabelecer alguns paralelos entre as obras dos realizadores e as suas possíveis vidas pessoais, os seus altos e baixos e também obsessões temáticas. Só as desventuras de Dennis Hopper dariam para fazer tremer o comboio onde vou e a certo ponto, tenho de parar por dois motivos evidentes: já vou quase nas cento e cinquenta páginas lidas e este dia, para mim, começou às cinco e meia da manhã. Já não sou quem era e isso inclui a minha vitalidade. Aliás, a certa altura duvido da minha própria sanidade. Paragem numa estação e é quase noite. Na plataforma, duas mulheres encapuçadas caminham girando bastões de basebol. Mas é real. Guardam a estação ou esperam talvez por algum marido adúltero. Ou então, gostam mesmo, mesmo de "A clockwork orange". De qualquer forma, as câmaras não parecem importar-se muito com elas.
Janto e recolho-me. Leio mais um pouco e ouço música. Durmo. Sei que sonho. É como uma dupla matine. No primeiro, sou perseguido por homens de fato e gravata. De arma em punho, procuram-me Perguntam por mim e informam-se e mesmo quando estão quase a apanhar-me, abre-se um alçapão e desapareço apenas para surgir noutro local. Isto decorre em vários cenários, uma cozinha, um jardim, uma escola e estou em permanente fuga, sem que me apanhem. Mas eles estão sempre lá. Não os reconheço, mas sabem bem quem sou, levam fotos minhas e fazem perguntas específicas. Sobre mim adolescente, sobre as minhas viagens, sobre as minhas preferências. A meio da noite, desperto com súbita apreensão. Ouço ressonar. Alguém mentiu, claramente. O comboio vagarosamente embala e abana. Consigo ver chuva na janela e lá fora, breu completo. Mas sinto que não existe nada, que é deserto. Chuva no deserto. Imagino flores que despontam, areias sequiosas que se resfolegam na brisa, um nascimento numa maternidade de cemitério. Lembro-me também daquela canção xaroposa do Sting e percebo que é altura de regressar ao sono. A segunda viagem onírica leva-me até ela, sempre ela. Posso mandar na minha cabeça enquanto estou consciente - embora com muito pouca autoridade - mas cai o estado de vigília e de súbito, o que de mais profundo existe em mim aflora e só faz brotar a impossibilidade. Quando acordar, sei que vou meditar novamente nestas prisões que criamos a nós mesmos, de diferentes tipos de perigo, de me imaginar dançarino em constante navalha, de me ver como um otário que acredita ainda em qualquer tipo de pureza num mundo onde as pessoas parecem valorizar mais o pragmatismo e o desprezo completo pela estima. Não sei se também por isso procuro os recantos infindos do planeta, procurando algo de belo, honesto, puro. Quero acreditar que existe. Engano-me que um dia estarei livre e estarei bem, sem ouvir os sinos da destruição a repenicar dentro dos meus hemisférios. Mas não nesta noite. Não nas próximas, de certeza.
Acordo com a porta da cabine a deslizar. O pica alerta-nos que estamos a chegar e quer o seu cartãozinho de plástico de volta. Desperto em lenta combustão. A eficácia chinesa adiantou-nos o horário quase quarenta minutos. Ainda falam dos britânicos. Improviso um rápido pequeno-almoço de bolachas enquanto arrumo as minhas coisas. Em filinha no corredor, obedecendo ao movimento autónomo das carruagens, esperamos a chegada. Quando esta se dá, andamos algum tempo às voltas na estação até encontrarmos a saída. É um edifício muito utilitário, onde oficiais permitem passagem de um ponto para outra mediante a visão do nosso bilhete. Quando chegamos à saída, um trio de polícias aguarda-nos. Um deles confirma o telemóvel e assenta com a cabeça. Chamam-nos por gestos. As malas são arrastadas à sua presença. Verificam-nos atentamente e sinalizam que os sigamos. Já sabem como é, lá vamos nós. A coisa estranha, ou não, do que vivi até aqui, é que eles tinham perfeito conhecimento das horas a que chegaríamos, quem éramos, onde dormiríamos. Somos treze, somos portugueses, os nossos nomes consabidos. Sabem os nossos desejos e vontades antes de nós, controlam-nos por completo. Isto é apenas um pro forma. No exterior da estação, somos encaminhados para um pequeno edifício que enverga as já familiares divisas da Polícia chinesa. Os nossos velhos amigos. Na manhã de Turpan, um céu nebulado ameaça chuva. Os meninos fardados não se detêm. Há um que arranha a língua de Shakespeare. Perguntam-nos de onde somos, embora a resposta tenha sido dada sem que uma palavra nossa nos denuncie. É só para um cumprir o guião. Portugal. Putaoya. "Ronaldo", sorri ele de forma mecânica. Passports, please. Hotel, please. Papéis indicam o local da nossa estadia. Em poucos segundos, chegam-lhe à mão treze passaportes. Fotografa cada um com a ajuda do seu telemóvel. De seguida, pede-nos que seguremos o nosso respectivo passaporte e o coloquemos ao lado da cara. Nova fotografia. Um processo com treze oportunidades diferentes de opressão. Os colegas observam-nos e nunca intervêm. Minutos depois, aponta-nos para a estação. Good visit. Enjoy Turpan. E é assim, estamos livres. Mas presos.
Na praça de táxis, acho que cada um de nós ainda está a lidar com o que acabou de se passar. É bom sinal, sinal de que não podemos considerar normal o que é, devia ser uma anormalidade. Uma coisa é sentirmo-nos observados. Outra, é o controlo simples e total de quem te adivinha, de quem te conhece os movimentos a um ponto em que já te espera onde ainda nem te imaginaste. Na minha cabeça, conto os dias que ainda teremos em Xinjiang. Serão mais dois. Andaremos de um lado para o outro, mas começo de facto a esperar tudo e a não colocar limites, na minha imaginação, às maneiras pelas quais não me poderei sentir eu mesmo como deve ser no meio dessa grande mente que tudo sabe. O grande olho que tudo vê. O grande anónimo carregado de todos os nomes. Ser torpe em Turpan. Ou na China, sê tratado como um chinês.