quinta-feira, novembro 28, 2019

Fachinação 11: Comboio nocturno para Turpan



"Journey to the west" é um dos quatro grandes romances chineses clássicos. Escrito no século XVI, na dinastia Ming, por Wu Cheng'en, conta a história mais ou menos real das explorações de um monge budista à regiões mais ocidentais daquilo que é hoje a China. Acompanhado por três companheiros e um dragão mágico, o monge leva a missão de entregar uns manuscritos muito importantes num mosteiro indiano. O romance tem cem partes e muito mais história do que isto, mas é um relato mitológico das paisagens do centro e sul da China, falando da divulgação do budismo e do próprio folclore da cultura oriental. As aventuras nunca chegam tão longe quanto Kashgar; mas o comboio estava agora a abandonar esta cidade para fazer uma viagem de quase 16 horas para o sentido contrário do Oeste. Depois três dias cheios em Kashgar, com um desvio por Tashkurgan, começamos a nossa deslocação para Oriente, parando em Turpan. Pela duração da viagem, é uma boa oportunidade para pensar um pouco nesta experiência tão intensa num país diferente do meu. Vim preparado previamente com material para fazer passar o tempo. A ida em primeira classe deste comboio significa que dormiremos em cabines de quatro camas, com privacidade e espaço para arrumarmos as nossas próprias malas. Num sinal da maneira como o governo chinês encara a região de Xinjiang, não existe linha de alta velocidade, o que significa que num passo vagaroso que corresponde ao nosso Intercidades, as carruagens deslocar-se-ão por uma das areas mais desertificadas de secas da Ásia. Num mapa, é notável que numa área correspondente a mil e quatrocentos quilómetros apenas exista uma zona urbana digna desse nome, já no último terço do caminho. O resto são desertos e montanhas. Escuridão durante a noite, deserto durante o dia; e, como repararei ao longo da viagem, uma visão longínqua dos famosos campos de reeducação que já mencionei anteriormente

Os meus três companheiros de cabina são o Mário, o Tiago e o Hélder. Um trio de advogados aos quais tento não dar muitos motivos para que me envolvam em casos de tribunal. Todos negam ressonar, mas nenhum de forma convincente. De qualquer forma, fico com um dos leitos superiores, que não costumo ter sonos agitados. Enquanto arrumamos as nossas malas e mochilas, o pica aparece e na China, não se picam bilhetes. Neste caso, podemos chamar-lhe o "troca", porque o senhor indaga por nós e ainda que não fale uma palavra de qualquer língua ocidental, percebemos logo que quer os nossos bilhetes. São uns cartões pequenos, de tom rosa. Nas mãos, um dossier com separatórias de plástico assinala-se com números e letras. O nosso bilhete é trocado por uma placa de plástico, substituída durante esta viagem. É um sistema de controlo arcaico, a milhas das câmaras e microfones tão caras ao Comité Central, mas eficaz. O meu cartão é verde, com uns caracteres debruados. Arrumo-o na minha mochila. E agora... temos muitas horas para matar. Não literalmente, o que causaria grande estardalhaço. Vou estudando os pequenos hábitos do comboio. De meia em meia hora, passa uma senhora empurrando um carrinho. Deita um olho às cabines, procurando quem lhe namore a comida e a bebida que transporta. Doces, chocolates, sandes manhosas, água, refrigerantes. Tudo isto ao alcance de alguns yuans. Nunca é sempre a mesma mulher. Vi pelo menos três, mas têm todas a mesma idade, entre os 40 e os 50. Deve ser uma função de senioridade. Ocasionalmente, o corredor é também frequentado por um polícia, mas a sua identidade não muda. Um indivíduo rotundo e anafado, sempre com o cansaço digno de quem tem uns 130 quilos a pesar-lhe nas rótulas. Xinjiang é uma província muito seca e estamos no Verão, por isso sua como uma esfregona que empurraram contra o balde. Deve mudar de camisa várias vezes, porque nunca o apanho com manchas na roupa e o ar de quem fez o Ice Bucket challenge forçado pela pressão dos colegas de trabalho. De qualquer forma, nem nos comboios escapamos à presença policial. Sem dúvida que é a profissão do futuro na China.


Mas rapidamente se instala o marasmo típico das viagens longas. Piadas para aqui e para ali e entretens nos telemóveis não ajudam a disfarçar o facto de que estaremos várias horas dentro deste espaço fechado. É então que o Hélder aparece com um baralho de cartas. Se levo pouca coisa aprendida durante estes 36 anos de vida, uma coisas certa é a de que uma cartada é aposta certeira no que toca a distracções entre homens. É ver entre nós, machos de idades diferentes, gostos díspares e naturezas desiguais, o mesmo olhar beatífico lançado ao Hélder quando ele lançou a boa nova. Se tivesse afirmado ali que teríamos comida a sério durante a viagem, a recepção não teria sido melhor. Numas contas rápidas, somos seis homens e há apenas 52 cartas. Proponho então uma sueca italiana. Quase ninguém sabe como funciona, mas aprendem rapidamente: há cinco jogadores e as regras são as da sueca tradicional. O twist é um sistema de apostas que leva os jogadores a calcular a possível pontuação que farão em cada jogo. Leilão de pontuações feito e o vencedor escolhe o trunfo e também, às escuras, um parceiro que terá uma determinada carta que lhe dá jeito. Fica sempre um de nós de fora, mas criamos uma liguilha que decorrerá com rapidez suficiente para quem o escolhido não fique muito tempo sem malhar uns trunfos. Sucesso imediato e num ápice até algumas mulheres, que se confessam não muito fãs de jogos do género, querem jogar, até porque o relógio parece que corre quando não nos lembramos de olhá-lo. Ases e manillhas e vazas e aqueles que contam as cartas e os que só jogam por diversão. A tarde é quase toda passada em redor do jogo, entre os mais habilidosos e os azelhas que ocasionalmente têm sorte, onde me incluo. De certa forma, é sermos portugueses bem longe de casa. Os jogos chineses costumam ser outros, entre o Mahjong e os Ossos - ou até, algo que não vimos até agora, lutas entre grilos. Numa cabine, estão meia dúzia de lusos a criar barulho e sururu por contas de uns bocadinhos de papel. São como crianças, entretendo-se com pouco. 

A certa altura, preciso de espaço pessoal e aproveito o vazamento da minha cabine para me deitar, calmamente, e ler. Regresso a "Easy riders, raging bulls", de Peter Byskind, que já me acompanha na viagem de avião. É uma crónica factual - ou segundo alguns dos envolvidos, bastante livre na sua veracidade - do movimento cinematográfico que revolucionou o cinema americano na década de 70. Homens como Scorsese, Coppola, Friedkin, Ashby, Spielberg, Beatty, de Palma e muitos mais, no seu melhor e também no seu pior. Byskind não está aqui para fazer análises artísticas. Interessa-lhe a intriga e o podrezinho, as relações pessoais, os segredos mal escondidos. Percebe-se porque é que em Hollywod lhe chamam indústria cinematográfica e não arte. Existem tantas variáveis humanas que permitem a produção de uma filme e que pouco têm a ver com talento ou mérito. Entre as histórias que podem ou não ser verdade, Robert Altman é descrito como um misantropo; aborda-se o ego imenso de Coppola, proporcional ao seu talento e que embora lhe tenha dado provavelmente a melhor de cada de qualquer cineasta norte-americano jamais teve, lhe acabou com a carreira a longo prazo; o introvertido Scorsese tem sucesso e rapidamente se vira para a cocaína; Warren Beatty não era o maior femeeiro de Hollywood; Paul Schrader é um caso de manicómio; William Friedking tinha um fascínio tão grande pela Nouvelle Vague francesa que se viria a casar com Jeanne Moureau quando esta já tinha quase cinquenta anos; e Peter Bogdanovich um daqueles gajos com pouco carácter no que toca a mulheres. É fascinante estabelecer alguns paralelos entre as obras dos realizadores e as suas possíveis vidas pessoais, os seus altos e baixos e também obsessões temáticas. Só as desventuras de Dennis Hopper dariam para fazer tremer o comboio onde vou e a certo ponto, tenho de parar por dois motivos evidentes: já vou quase nas cento e cinquenta páginas lidas e este dia, para mim, começou às cinco e meia da manhã. Já não sou quem era e isso inclui a minha vitalidade. Aliás, a certa altura duvido da minha própria sanidade. Paragem numa estação e é quase noite. Na plataforma, duas mulheres encapuçadas caminham girando bastões de basebol. Mas é real. Guardam a estação ou esperam talvez por algum marido adúltero. Ou então, gostam mesmo, mesmo de "A clockwork orange". De qualquer forma, as câmaras não parecem importar-se muito com elas.


Janto e recolho-me. Leio mais um pouco e ouço música. Durmo. Sei que sonho. É como uma dupla matine. No primeiro, sou perseguido por homens de fato e gravata. De arma em punho, procuram-me Perguntam por mim e informam-se e mesmo quando estão quase a apanhar-me, abre-se um alçapão e desapareço apenas para surgir noutro local. Isto decorre em vários cenários, uma cozinha, um jardim, uma escola e estou em permanente fuga, sem que me apanhem. Mas eles estão sempre lá. Não os reconheço, mas sabem bem quem sou, levam fotos minhas e fazem perguntas específicas. Sobre mim adolescente, sobre as minhas viagens, sobre as minhas preferências. A meio da noite, desperto com súbita apreensão. Ouço ressonar. Alguém mentiu, claramente. O comboio vagarosamente embala e abana. Consigo ver chuva na janela e lá fora, breu completo. Mas sinto que não existe nada, que é deserto. Chuva no deserto. Imagino flores que despontam, areias sequiosas que se resfolegam na brisa, um nascimento numa maternidade de cemitério. Lembro-me também daquela canção xaroposa do Sting e percebo que é altura de regressar ao sono. A segunda viagem onírica leva-me até ela, sempre ela. Posso mandar na minha cabeça enquanto estou consciente - embora com muito pouca autoridade - mas cai o estado de vigília e de súbito, o que de mais profundo existe em mim aflora e só faz brotar a impossibilidade. Quando acordar, sei que vou meditar novamente nestas prisões que criamos a nós mesmos, de diferentes tipos de perigo, de me imaginar dançarino em constante navalha, de me ver como um otário que acredita ainda em qualquer tipo de pureza num mundo onde as pessoas parecem valorizar mais o pragmatismo e o desprezo completo pela estima. Não sei se também por isso procuro os recantos infindos do planeta, procurando algo de belo, honesto, puro. Quero acreditar que existe. Engano-me que um dia estarei livre e estarei bem, sem ouvir os sinos da destruição a repenicar dentro dos meus hemisférios. Mas não nesta noite. Não nas próximas, de certeza.

Acordo com a porta da cabine a deslizar. O pica alerta-nos que estamos a chegar e quer o seu cartãozinho de plástico de volta. Desperto em lenta combustão. A eficácia chinesa adiantou-nos o horário quase quarenta minutos. Ainda falam dos britânicos. Improviso um rápido pequeno-almoço de bolachas enquanto arrumo as minhas coisas. Em filinha no corredor, obedecendo ao movimento autónomo das carruagens, esperamos a chegada. Quando esta se dá, andamos algum tempo às voltas na estação até encontrarmos a saída. É um edifício muito utilitário, onde oficiais permitem passagem de um ponto para outra mediante a visão do nosso bilhete. Quando chegamos à saída, um trio de polícias aguarda-nos. Um deles confirma o telemóvel e assenta com a cabeça. Chamam-nos por gestos. As malas são arrastadas à sua presença. Verificam-nos atentamente e sinalizam que os sigamos. Já sabem como é, lá vamos nós. A coisa estranha, ou não, do que vivi até aqui, é que eles tinham perfeito conhecimento das horas a que chegaríamos, quem éramos, onde dormiríamos. Somos treze, somos portugueses, os nossos nomes consabidos. Sabem os nossos desejos e vontades antes de nós, controlam-nos por completo. Isto é apenas um pro forma. No exterior da estação, somos encaminhados para um pequeno edifício que enverga as já familiares divisas da Polícia chinesa. Os nossos velhos amigos. Na manhã de Turpan, um céu nebulado ameaça chuva. Os meninos fardados não se detêm. Há um que arranha a língua de Shakespeare. Perguntam-nos de onde somos, embora a resposta tenha sido dada sem que uma palavra nossa nos denuncie. É só para um cumprir o guião. Portugal.  Putaoya. "Ronaldo", sorri ele de forma mecânica. Passports, please. Hotel, please. Papéis indicam o local da nossa estadia. Em poucos segundos, chegam-lhe à mão treze passaportes. Fotografa cada um com a ajuda do seu telemóvel. De seguida, pede-nos que seguremos o nosso respectivo passaporte e o coloquemos ao lado da cara. Nova fotografia. Um processo com treze oportunidades diferentes de opressão. Os colegas observam-nos e nunca intervêm. Minutos depois, aponta-nos para a estação. Good visit. Enjoy Turpan. E é assim, estamos livres. Mas presos.


 Na praça de táxis, acho que cada um de nós ainda está a lidar com o que acabou de se passar. É bom sinal, sinal de que não podemos considerar normal o que é, devia ser uma anormalidade. Uma coisa é sentirmo-nos observados. Outra, é o controlo simples e total de quem te adivinha, de quem te conhece os movimentos a um ponto em que já te espera onde ainda nem te imaginaste. Na minha cabeça, conto os dias que ainda teremos em Xinjiang. Serão mais dois. Andaremos de um lado para o outro, mas começo de facto a esperar tudo e a não colocar limites, na minha imaginação, às maneiras pelas quais não me poderei sentir eu mesmo como deve ser no meio dessa grande mente que tudo sabe. O grande olho que tudo vê. O grande anónimo carregado de todos os nomes. Ser torpe em Turpan. Ou na China, sê tratado como um chinês.


quarta-feira, novembro 20, 2019

Fachinação 10: Manhã pura, Manhã dura


Nunca se deve voltar onde já se foi feliz, dizem. Consigo compreender a intenção ainda que a felicidade seja aquela coisinha com penas que esvoaça e nunca é certa. Como tudo, é uma percepção e regressar pode até nem ser voltar num local, mas vê-lo a sério pela primeira vez. Mesmo em coisas pequenas. Um ritual que faço com aqueles que me são próximos e conhecem mal Coimbra é levá-los a provar as melhores natas a cidade. O choque assoma-lhes sempre à cara quando à porta de uma estação de serviço da estrada nacional 1 lhes digo "É aqui". Pensam que gozo, mas não. Depois de provarem ficam convencidos: são umas caixas de delícia, daquelas bem grande que se podem comer à colher. Doces, mas não o suficiente para que não se possam comer por si mesmas sem causar enjoo. Futuramente, de todas as vezes que voltam ali a passar, referem-me e chamam-lhe o sítio das natas. Porque mudou. Uma nova perspectiva, um segredo revelado transforma tudo; e dá-me um pequenino prazer malvado quando me convenço de que sei mais do que o outro, tenho uma outra sensibilidade, por momentos convenço-me que sou melhorzinho, mas depois entra a realidade e tudo muda. Mas nesses segundos, o mundo é outro. Acho que também é por isso que gosto tanto de fotografar. Porque é uma preparação para a mudança. Se forem todos os dias do ano ao mesmo local, tirarão muitas fotos diferentes. As condições mudam, os segredos revelam-se. Até mesmo o mais aborrecido dos espaços se torna, ainda que por um dia, um recreio dos olhos. Adoro isso na relação que tenho com a realidade que está do outro lado da lente. Essa possibilidade de mudança rápida, transformativa, que tantas vezes desejo na vida e não calha.

Fazer a estrada de Karakoram de regresso na manhã seguinte à visita a Tashkurgan, foi uma dessas experiências. Pela necessidade de viajar num comboio que saía ao inicio da tarde da estação de Kashgar, acordámos pelas seis da manhã. Entre pequeno-almoço e arrumar tralhas, foi pelas sete e pouco que abandonámos a cidade fronteira do sudoeste chinês no mesmo mini-autocarro que nos trouxe. Desconfortável, nalguns lugares forçando a compressões articulares, já sabia que seria o tipo de viagem que não me deixaria espraiar no sono. A escuridão da madrugada negava-me até o mínimo prazer das vistas desta via. Era um dos pontos que sublinhara quando percorri virtualmente o percurso desta viagem. Conhecida como Nacional 35 (ou de forma mais fofa, a Estrada da Amizade, pela colaboração que uniu dois rivais regionais, como o são a China e o Paquistão,  na sua construção), os seus mil e trezentos quilómetros unem a província do Punjab, no centro norte da potência atómica islâmica, até ao extremo nortenho de Xinjiang.
É uma das estradas pavimentadas mais altas do mundo, com o seu ponto mais alto a quase 4800 metros de altitude, e por isso uma atracção turística que leva os viajantes a percorrê-la apenas pela experiência. O facto de percorrer aquele que seria um dos mais antigos trilhos da Rota da Seda apenas acrescenta à experiência. Como é de calcular, não há-de ter sido um percurso fácil de magicar e concretizar. O orgulho que ambos os países têm da sua simples existência deu-lhe a alcunha de Oitava Maravilha do mundo e é, de facto, uma pequena maravilha da engenharia, e mortal também. Mais de mil trabalhadores morreram durante o projecto, e estes são apenas os números oficiais. Os Chineses podem ter muitos defeitos que já fui alinhavando, mas reconheça-se que no campo das obras e obrinhas, fazem um esforço genuíno para unir os pontos do país de forma mínima. Podem não dedicar a mesma atenção a todas as regiões, mas tal presume-se como lógico quando conhecemos o historial da sua relação com minorias. Se verificarem a província de Xinjiang no mapa, concluem que esta é mesmo a única estrada de grande dimensão naquela que é, relembro, a maior província do país. Mas, como descubro mais tarde, fosse este problema apenas de quatro rodas.


Este troço que percorremos é até dos mais seguros. Do lado paquistanês, a estrada sobe e desce, namora com as margens de rios que durante a Primavera vazam com as águas do degelo e colocam em risco a vida dos condutores. Há claro também o pequenino pormenor de cruzar perigosamente com a região de Caxemira, esse imenso fogo de artifício acirrado entre paquistaneses e indianos. Qualquer turista do risco deve ter este percurso a bold na sua lista de desejos. A mim, no entanto, interessa-me mais aquele parte dos quatro e mil e picos metros de altitude. A paisagem do dia anterior foi a melhor das companhias e embora este dia tenha começado na escuridão, é gradual a chegada da luz do dia. De início, apenas uma miragem que se sonha no desejo de os olhos voltarem a ser úteis. Depois, afirmando uma presença de lençol de seda, afastando o breu. Vou escutando podcasts de crimes reais, mas o momento pede aquele pianista que vocês tão bem conhecem. A "Ascension" é o princípio de um banho da minha própria sensibilidade numa paisagem que assume tons de filme a preto e branco, nos delicados cinzentos da alvorada em locais onde a escuridão e a claridade são os dois únicos modos conhecidos da existência porque não existe electricidade.

Montanhas protegem montanhas ao longe e revelam-se numa sensualidade que cresce em mim, que apela a qualquer coisa que bate sempre forte no meu interior quando a altura é elevada. Grossas nuvens de susto perdem o medo e embora protegendo os picos que no horizonte furam o céu e erguem uma muralha, dançam em seu redor e não me enganam. Longas rectas oferecem a vista esplêndida e sem pudor de uma cordilheira de branco trajada, fria mas soprando em duas fogueiras com pupilas que me dominam a cara..O autocarro é como se não existisse. Estou lá fora. Sem pensar, a máquina fotográfica sente-se na mão, não entendo bem se sozinha ou com a minha própria ajuda sem intenções. Sempre que surge a oportunidade, ambos sabemos; e quando o sol, finalmente, indaga e paz perguntas ao mundo, a minha atenção regressa ao autocarro e vários dos meus companheiros já fotografam alarvemente este espectáculo que apenas consigo filtrar por um vidro sujo. O Zé Luís, guia da expedição, percebe que há momentos onde realmente só se é feliz naquela hora. Paramos.

É um ponto privilegiado. À nossa frente, a represa da barragem de Qiongkuai oferece ao céu um reencontro com o seu azul, mas sem fundo. Em todo o meu redor, montanhas enormes acordam e enchem o peito, respiram fundo numa exibição de força. Há um contraste entre duas cordilheiras. Atrás de mim, elevações arenosas absorvem o sul, no seu cume branco, a estrada parece sair do seu ventre, do seu cruzamento óbvio. São carnes enrugadas compostas por poeiras que milhões de anos acumular. Um deserto esconde-se e só espreita tímido, de soslaio. Defronte de mim, a força bruta da pedra densa ergue-se, de cabelos brancos mas seu reumático. A grande via de Karakoram esgueira-se, como que passando despercebida, por entre os seus braços. Na claridade pálida de uma manhã que nasce, no frio que me enche os ossos trémulos e os pulmões suspensos, uma neblina cortinada vai navegando os topos. É uma saliva gulosa que veleja nas ondas do relevo rugoso, acima e abaixo, num mar de sua própria construção. Vejo-a parada, mas sei que se mova à velocidade do vento e do tempo. O pavimento de alcatrão ainda não tem visitantes e por isso, aproveito a benção.


Deito-me no centro da estrada e fotografo. A longa rectilínea via desaparece por entre uns montes e abre espaço aos outros. Nas notas de "Fox tracks", o violoncelo faz-me tremer e ao solo. É um daqueles momentos que se vive de pleno coração, sem hesitações ou vergonhas. Um daqueles momentos em que se está ou então, mais vale ficar-se trancado na mala de um carro. Quase choro. Num ou noutro momento em que pouso a máquina, procura a mão que sei nunca estar presente, nem futura; mas queria partilhar isto e deixar cair a cabeça num colo de montanha, protector, superior. Dois camiões vindos da direcção de Kashgar perturbam o momento; apitam-nos em saudação, dizemos adeus. Os minutos escorrem e se não sairmos agora não chegamos à estação de comboio a horas. Aproveito para últimas capturas. Ficava aqui horas a acompanhar o parto do dia e o seu crescimento; a idade adulta e a morte. Ficava aqui no nenhures das infinitas terras, onde as pessoas só passam por obrigação e o turismo só surge por acaso. Mas tenho de partir. É um dos meus problemas: não poder ficar onde só querem que vá embora.

Mesmo em viagem, continuo a fotografar. Imagens imperfeitas filtradas pela fronteira que existe entre mim e o mundo real, um vidro escurecido e sujo, e penso em como tantas vezes é assim a relação das pessoas com o mundo: por um intermediário que o filtra e nunca o devolve na sua real beleza. De súbito, abrandamos e a camioneta encosta à estrada. É novamente altura de jogar à "Roda da Sorte" com a polícia chinesa. Num hábito quase maquinal, seguro o passaporte e preparo a mochila para a revisão. Penso em como todos os dias, há milhares de pessoas nesta região para quem isto é tão automático quanto sede num dia de calor. O nosso guia sai para o ritual do costume. Mas passam dois minutos e ainda aqui estamos. Piadas surgem para disfarçar o nervosismo. Curiosamente, a minha primeira ideia é a de que o Atta encontrou problemas. Ele é uigur e aparece ali com um grupo de estrangeiros. Não me surpreenderia. Já li sobre gente presa por estes lados por motivos bem mais aleatórios. Mas ele lá surge, meio confuso. Olha para trás. Pede que saiamos com documentos e bagagem. No exterior, somos uma linha que espera. À porta do posto. Um garoto que tem idade para ser meu aluno faz gala da farda e indica-nos que entremos. No entanto, lá dentro, não sabe bem o que fazer de seguida. Usa o walkie-talkie para comunicar com alguém que provavelmente saberá. Manda-nos recuar. Depois manda-nos avançar. Agora temos de atravessar a estrada para ir à casamata onde ontem encontrámos a simpática senhora do mau olhado. Se calhar, é melhor não, estáticos de novo. Uns segundos depois, voltamos a avançar. Na minha cabeça, apenas ouço aquela musiquinha dos sketches do Benny Hill. Eis a máquina de vigilância e burocracia mais eficaz do mundo a  proporcionar-nos um momento que podia bem ter saído de "O prédio do Vasco".

Todos os guardas têm ar de quem saiu da escola hoje para um dia diferente do curso profissional, num roleplay de forças de segurança- Somos então conduzidos à tal casamata. A mesma mulher ainda por lá anda, a controlar gente. Quando nos vê, abre muito os olhos e mata o rapaz que nos acompanha, pelo menos mentalmente. Sem abandonar o seu posto, presta-lhe uma descompostura que a mim me soa a dois camarões copulando debaixo de um telhado de zinco quente. Agora, é a nossa vez de rir e de apreciar os efeitos desse compressor oriental nos seus próprios súbditos. Não sei se consigo evitar o sorriso ou se alguém me viu. Mas tudo isto é divertido. Lembro-me de ler histórias sobre burocracias ridículas na União Soviética e de como os facilitadores do grande aparelho soviético por vezes entravam em choque por não entenderem quando fazer o quê. Nunca pensei assistir a algo semelhante. Mas aqui estou eu, como que viajando no tempo. Quando o autocarro continua viagem, ainda estou a sorrir.


Chegamos à estação bem adiantados. Afinal, tanta coisa e ainda vamos esperar horas, converso comigo. Despedimo-nos do Atta e do condutor, com uma gorjeta e todos os agradecimentos pela simpatia e o profissionalismo com que tratou de tudo, desde as suas explicações até à viagem em si e pelo facto de tudo ter decorrido sem incidentes. Não é a minha primeira vez na Ásia Central e garanto-vos, tal é obra. O grupo encaminha-se para a entrada da gare, arrastando males, trazendo consigo tralha. Mais perto do destino, um magote de gente surge em modo caótico. Aumenta e concretiza-se como uma multidão. Dezenas de pessoas aguardam a sua vez de entrar, porque existe o controlo de quatro guardas que fazem perguntas, revistam, pedem documentos. Depois de pousar as minhas coisas, convencido de que afinal tudo isto vai demorar, noto então que no interior existem mais fardas.

A constituição de filas na China é algo muito, muito informal. As pessoas chegam e esticam a paciência de quem está, a ver até onde se podem meter à frente. Se não houver reacção, com naturalidade ocupam o nosso lugar sem duplo pensamento. Isto não acontece apenas na ponta final das fileiras. Estejamos a meio ou praticamente a ser atendidos, há sempre que alguém que de fininho, normalmente de maleta em mão, vai pondo o corpinho aos poucochinhos, só para ver se dá. Com os Chineses, a coisa por norma pega. No entanto, português que se orgulha do seu sangue arma pé de vento com penetras. Eu, em particular, odeio a queda da civilização representada pela chico espertice. Se uma pessoa me pedir com jeitinho, não crio problemas. Grávidas e idosos têm normalmente carta branca. Agora, chico espertos não têm qualquer sorte. Apanho alguns. Um sorriso de carneiro mal morto, uma aparição de nenhures se pedir licença. A minha resposta é sempre simples e de tradução universal: finca pé em corpo sólido, voz bem levantada e grossa, um gesto brusco a apontar para trás. Uns ainda ficam a olhar para mim, em desafio. Quando tal acontece, o passo seguinte é apelar à consciência portuguesa e logo outros companheiros de viagem fazem o mesmo. Há uma certa confiança nos cidadãos chineses de que os estrangeiros são capachos e farão tudo para evitarem confrontos e assim encontros policiais. Eu esqueci-me disso momentaneamente. Devem ser ainda os efeitos da altitude.

O primeiro de três pontos de controlo é simples, mas antes de passá-lo, precisamos de sair da fila e pedir papelada num guichet. Preço de ser estrangeiro. Regressamos e pedem-nos os mesmos papéis e documentação. Em chinês, inquirem-nos, mas nada. Um oficial consegue arranhar a palavra "destination". Turpan. Comprovamos com os nossos bilhetes. O Zé Luís é o último a passar pelo processo. Antes que possa fazê-lo, aborda-o um jovem que não tem mais do que quatorze anos. Chama-o com toda a intenção. No meio daquela confusão, de gente a imiscuir-se, de berros, de discussões - um dos funcionários da estação, um indivíduo esguio e baixo, de óculos de massa redondos, fiscaliza as linhas e a certa altura, manda uma chapada em alguém que tenta passar a frente de uma idosa; segundos depois, está a pontapear outro malandrim - o jovem estende-lhe o telemóvel. O Zé, confuso, não aceita o início, mas depois entende. No ecrã, vê uma foto sua... com aquele garoto. Este sorri-lhe e estende o polegar. Provavelmente, foi tirada no ano anterior, quando o Zé visitou Kashgar pela primeira vez. O local é exactamente aquele, a estação. De início, penso na extraordinária coincidência que acabou de acontecer. Quais as probabilidades de, passado tanto tempo, aqueles dois se cruzarem? Mas rapidamente começo a perder a ingenuidade e é óbvio que alguém sabia que o Zé ali estaria naquele dia. Alguém que convidou, ou obrigou, o miúdo a surgir ali, do nada, para levar uma subliminar mensagem ao grupo de portugueses: nós sabemos quem são. Sabemos onde estão e para onde vão. Não pensem por um momento que nos esquecemos de vocês. Andaremos por aí, de olhos, nada de rebeldias ou de mijar fora do penico. Penso que quão rebuscado isto pode ser... e no entanto, será mesmo? Estará este enorme sistema de vigilância a tornar-me paranóico? A impedir-me de ver a beleza de um simples acaso? Ou será tudo isto uma orquestração feita para nos intimidar? O Zé está meio perturbado e eu, sinceramente, sem saber o que pensar. O sorriso do imberbe desconhecido tem a genuinidade dos tolos, mas muitas vezes estes são os mais perigosos dos aliados.


Não tenho grande hipótese de remoer isto agora. Pedem-me a mala e a mochila para um controlo de raio x. Sou encaminhado então para o detector de metais, onde me revistam antes de passar. Passo, nada apita, mas novamente me passam a mão pelo corpo. Por uma mulher, já agora, no que é a única coisa boa até agora desta atenção chinesa à segurança. Os meus pertences encontram-se afastados, numa mesa de metal. Numa guarda pessoal, uma oficial aguarda-me. Um inglês difícil dá-me a entender que terei de prestar o ritual do esvaziamento da mochila. Abro-a e esta vomita todo o seu interior. Temo que impliquem com os livros, mas nada. Sem pedir licença, agarra no estojo de higiene. "Is it yours?". "Oh yes it is", e remexe-o sem vergonha. Do interior, salta o meu desodorizante. Aponta para o símbolo de "produto inflamável". Causa-lhe espécie. Sou informado de que "very dangerous, could be fire" e é-me confiscado. No mesmo espaço está um repelente e um protector solar, exactamente os mesmos produtos químicos capazes de, caso eu queira celebrar o incêndio do Chiado, deixar o comboio onde viajarei no mesmo estado das locomotivas de Alcafache. Mas não, aquele desodorizante é que é problemático. Em jeito de piada, pergunto-lhe se aquele faz falta na colecção. Ela sorri e ordena-me que arrume tudo e deixe de empatar o caminho. Assim o faço. Tenho pena de quem me rodear no muito tempo de viagem que me falta, porque sem o auxílio higiénico de um desodorizante, o meu odor corporal é capaz de atingir níveis de vilania de um Thanos ou de um Darth Vader. Mas passei e finalmente posso entrar na estação.

Hora de almoçar. Enquanto cada um vai à sua vida procurando comida, eu, como sabem, estou mais do que preparado. O aparelho de segurança que enfrentei não me confiscou as latas de atum e uma delas serve-me de reforço. Pouco reforço, mas ainda assim. Enquanto almoço, guardo as malas do grupo. Uma cara familiar cumprimenta-me então: Michael, o amigo americano. Surpresa. Também vai apanhar o comboio. Para onde viajo? Turpan. Que engraçado, ele também! Acompanhará um francês e um casal dinamarquês que também por ali andam. Pode ser que nos cruzemos, embora não seja provável. Turpan é uma cidade ainda grande e há tanta coisa para ver que dificilmente nos veremos. Mas boa viagem então, o Zé Luís não está? Foi comprar comida? Ainda bem, a viagem é longa, não é? É bom que viajemos em primeira classe, irmos muito mais à vontade! Entretanto, chega mais gente e ele fica ali ao paleio. Na altura, não ligo muito; mas mais tarde, com tempo e já com mais dias em Xinjiang, o amigo americano não me recorda o "Living in America", do James Brown. David Bowie cantará na minha cabeça "I'm afraid of americans". Mas no momento, engulo atum, desvalorizo teorias da conspiração. Acho que foi um acaso. Que provavelmente ele se sente sozinho ali e gosta de passear com ocidentais, que nunca mais voltaremos a vê-lo.

A questão é que a saga do Michael ainda vai muito a meio.




sexta-feira, novembro 15, 2019

Fachinação 9: O longe e a distância


Há coisa de dois meses, dois amigos meus deram o nó. Festa catita, aparte estudantes universitários a cantar e girando pandeiretas. Muita comida, alguma palhaçada e comigo, aquela sensação de estar sempre a mais quando acontecem momentos de pagode. Já ao final da tarde, com convidados meio bebidos e a pista de dança a entrar naquela fase de setlist parola que faz com que os DJs de casamentos sejam dos profissionais mais sobrevalorizados do mundo monetário, sou abordado por uma das amigas da noivas, sorrindo seriamente e com o tipo de decotes capazes de iniciar uma nova Guerra dos Cem Anos. Queria falar comigo, mas manter-se vestida, o que costuma ser, aliás, um costume bem arreigado nas minhas relações com o sexo oposto. "Vou ao Irão daqui a umas semanas e queria que me desses umas informações". Tudo muito bem, mas porque me estás a dizer isso? "Ah, tu já lá foste, certo? Andaste por tantos países esquisitos que já lá deves ter ido", e não, nunca lá pus os pés, não por falta de vontade, mas por sofrer de uma doença crónica de cura difícil chamada "conta bancária esquálida". Esclareci que o que sabia era em segunda mão. Que conhecia quem viajasse para essas bandas, mas que eu, pessoalmente, jamais pusera os pés no coração da Pérsia. Acho que ficou confusa por momentos. A certeza imóvel de que eu demandara pelo Irão estava tão presente nela que posso ter passado por mentiroso durante uns segundos. Mas é um fenómeno bizarro que tem ocorrido comigo. As pessoas não presumem apenas que eu viajo. Se o faço, é para os locais onde elas nunca sonham. Colocam em mim uma certa extensão de magnetismo pelo desconhecido, mas por outro lado um temor pelo mesmo. Ainda que os meus destinos possam ser relativamente normais, seja lá o que isso for, a conclusão é a de que não ficarei pela capital e pelo papo ao ar. Desapareço na penumbra do que se teme e qual é a admiração de eu ter ido ao Irão? É bem normal, estamos a falar de um gajo que visitou um "istão", não é?

O lago de Kala Kule é um desses lugares no meio de nenhures que reforça a minha fama de eremita. A quatro mil e quatrocentos metros de altitude, é uma massa de água de cor clara, que não reflecte o céu, mas possui a sua própria paleta celestial. O que podemos lá ver em duplicado são as muitas montanhas que o rodeiam, ainda com neve, uma delas tapada quase na totalidade: é o Muztagh Ata, uma besta de quase sete mil e quinhentos metros de altura. São topos de beleza rude, mas que se entranham em mim, amante de montanhas, como naturais. Ainda assim, apesar de remoto, é um local bastante visitado. Estão aqui, em contas por alto, pelo menos umas cem pessoas, espalhadas a todo o comprimento este espaço. O dia é de sol, mas a forte ventania e o frio da altitude não convidam de todo a um passeio fácil. Vir aqui só pode se acendido por um desejo e não pelo tédio. Devoram este local com telemóveis. Há quem aproveite para usufruir dos serviços de uns moços que convidam avidamente para passeios de dromedário e camelo bactriano, os mais comuns na Ásia Central. Dão umas voltinhas pelas margens do lago, tiram umas fotos: estiveram lá. Eu simplesmente me instalo a almoçar. O que é? Obviamente, uma latinha de atum. Lentas garfadas fazem desaparecer a comida, enquanto me instalo em todo este esplendor montanhoso. Ao meu lado, a máquina descansa também, porque sabe que trabalhará bastante proximamente. Reparo, a pouca distância, num senhor que veste de forma bem selecta. A sério, parece mesmo que vai trabalhar na Bolsa de Valores fato e gravata, cabelinho penteado. Pergunto-me se isto é prova de um fenómeno sobrenatural de bilocalização, mas não. Caminha para junto do lago e instala-se num enorme lodaçal que lhe transborda os sapatos, mudando-lhe a cor do preto para um castanho derretido. O motivo descobre-se de seguida: sorriso forçado, telemóvel ao alto e hossana na selfies. Era a perspectiva desejada, o melhor ângulo para a foto. Só posso sorrir pela vestimenta, nunca pelo sacrifício fotográfico. Sei eu bem que já fiz coisas mais arriscadas e sem juízo para captar uma imagem. Mas lá está, é muito por isto que viajo. Ele veio até aqui provavelmente para se lembrar de que está vivo. Quer dizer, também eu. Não tenho olhos atravessados, nem sequer me aperalto, mas também tenha mais em comum com ele do que penso.


Depois desta pausa para almoço, estamos a cem quilómetros do nosso destino de hoje, Tashkurgan. A paisagem será sempre esta, de montanha, acompanhados pela cordilheira de Karakoram. Esta estrada tem pouco anos, e na verdade, pelo caminho, ainda apanharemos pedaços onde está apenas a ser idealizada. Apesar da distância relativamente curta que nos espera, ainda demoraremos umas cinco horas a fazê-la, à custa das curvas e dos desvios. Tashkurgan não é um destino particularmente notório. Na verdade, esta é a coisa que mais se destaca no seu papel na China. Um ponto onde outra das minorias do pais, desta vez os Tajiques, se reuniram ao longo da História. Percebe-se isto, pois fica praticamente colada à fronteira com o Tajiquistão. Este estatuto de cidade de fronteira adensa-se mais quando no mapa se repara que tgambém encosta praticamente ao Afeganistão e ao Paquistão. Em termos de geopolítica, este é um prémio muito pouco invejável, o que faz com que o governo chinês tenha um particular interesse por Tashkurgan, por muito que não exista nada aqui para haver interesse. É outro fim do mundo. Aparte algumas casinhas que vejo pelo caminho, não existe nada. O passeio merece-se pela fabulosa paisagem. Localizada já na cordilheira do Pamir, esta é uma cidade com trinta mil habitantes, a esmagadora maioria de origem tajique. Mesmo nos tempos da Rota da Seda, este caminho era apenas percorrido pelos mais bravos e talvez desesperados. Hoje em dia, apenas um transporte aqui chega, e é a camioneta, uma vez por dia, a partir de Kashgar. Tashkurgan é um daqueles lugares esquecidos pelo mundo. Consigo reconhecer este isolamento depois de três anos a leccionar no Alentejo, mas aqui numa amplitude muito mais elevada. Talvez por isso a cidade detenha o estatuto de entidade autónoma, para uma melhor gestão dos seus recursos: a distância da civilização, o relevo montanhoso  -para além do Pamir, outras três grandes cordilheiras encontram-se aqui perto - e a situação política particular convenceram a China a experimentar esta solução.

É estranho ler mais tarde a história da região e perceber que a cidade foi a capital de vários reinos, obtendo a sua riqueza a partir do comércio. Hoje, apenas a estrada de Karakoram traz aqui visitantes. Aqueles que gostam de se demorar têm a oportunidade de visitar os locais históricos, nomeadamente a Torre de Pedra que domina a geografia da região. Uma vez chegados a Tashkurgan, é aqui que nos deslocamos de imediato. Estamos no final da tarde, mas a diferença entre o tempo oficial e o tempo real significa que ainda temos várias horas de luz. Esta grande torre, no cimo de um rochedo, parece imponente nas fotos dentro do centro de visitantes. Ecrãs rachados e cartazes de papel envelhecido anunciam os encantos deste museu e desta área. O museu é grande, ainda assim, e os Chineses não pouparam a meios para que o visitante tenha uma experiência confortável. No exterior, encontram-se vários comboios com rodas, com assentos para transportar o visitante aos pontos de interesse. Como em tudo, o que interessa é controlar: vemos apenas o que eles desejam e as nossas escolhas são colocadas em pausa. Eles sabem bem o que é bom para nós. Na primeira paragem, uma inscrição chama logo a atenção. If in Rome you do like the Romans, in China do it the Chinese way. È como quem diz "Ta quietinho ou levas no focinho", mas de uma maneira bem educada, polida. Um passadiço de madeira, que não passa ao lado do rio Paiva, conduz a um rochedo elevado, sob o qual se vão destruindo umas muralhas de pedra e adobe. O enquadramento montanhoso torna o local mais imponente do que devia; mas nesta planície aluvial, encostada a um rio, qualquer elevação se torna uma vantagem geográfica de imediato. Uma lenda registada por Xuanzang, um monge budista do século sétimo, fala que uma princesa Han aqui se terá refugiado com o seu séquito, numa altura de revoltas populares na região. Estava a caminho de se casar com um rei persa. No entanto, talvez por na altura as políticas de contracepção não fossem tão restritivas como actualmente, a princesa engravidou de um "desconhecido" e nove meses depois deu à luz um rebento que se tornou num poderoso guerreiro que viria a fundar uma linhagem real que durante muitos anos governou Tashkurgan. Sorte a sua.


O que a História nos diz é que o nome da cidade é uma tradução literal desta estrutura: forte de pedra. Portanto, devia ser bastante importante. Tem mais de dois mil anos e terá servido até como palácio em certas alturas, mas não se sabe muito mais. O que sobra no interior é quase nada, fruto de séculos de abandono de negligência. De isolamento. Restam estes calhaus que visitamos e que neste momento se encontram num processo dinâmico de Disneylandização. Este ano, ainda tenho um certo prazer de calcar e tocar em algo que a partes ainda é genuinamente arquitectura Tajique. Mas nalguns pontos, é notório que estas muralhas foram demolidas por bulldozers e não cavalaria guerreira, para dar caminho a um novo parque de diversões étnicas. Deste topo, a paisagem é ainda assim incrível: um pântano aluvial estende-se largamente e a luz do ocaso banha-se no seu verde e nas suas águas. Várias passadiços em madeira desviam-se e contorcem-se neste espaço e apesar de artificial, o cenário é bastante apelativo às lentes. Combinando com o relevo elevado, este cenário variado e de aparente fertilidade quase resolve o mistério da razão pela qual alguém se instalar aqui. Apesar de fazerem parte do espaço do museu, foi dado as pastores livre acesso a esta planície húmida. A Arqueologia e pecuária casam-se naturalmente. A espaços, posso ver yurts. É-me estranho imaginar pessoas vivendo dentro de um museu, mas acho que é algo com o qual alguns estagiários se podem identificar. Na verdade, este desvio e esta visita valem acima de tudo por estas vistas, pelo passeio nas pastagens e pela oportunidade de chegar aqui ao final do dia, com o sol desaparecendo no horizonte, a luz dourada incandescendo o castanho claro baço da terra e das muralhas em algo de transcendente, Enquanto descemos para caminhar sob a planície, a fortaleza, num golpe de vista rápido, parece então imponente e quase renascida, criando na imaginação em fogo o seu esplendor numa altura em que Tashkurgan fora ponto essencial num qualquer recanto da civilização. Quase que apetece criar um rei guerreiro com uma desconhecida, mas depois lembro-me que a violação é crime e não quero ficar retido no sistema prisional chinês. Deixo isso para outros profissionais. A meio do caminho, uma placa informa-me de que cada segundo de viagem deve ser acompanhado de comportamento civilizado. Obrigado, Xi Jinping.

Claro que o problema dos locais pequenos é também a logística. Chega a hora de jantar e quase todos os lugares recomendados ou no Trip Advisor, esse conselheiro fiel do viajante ainda que nos ermos dos perdidos, estão lotados. Os que não estão apresentam mau ar. Pelo menos para alguns de nós. Outros acham aceitável. Há crispação. O Atta, nosso guia até no estômago, informa que há um paquistanês do outro lado de Tashkurgan. Um raio de esperança, excepto para mim, que gosto tanto de paquistanês como os paquistaneses gostam da Índia. Numa súplica, peço encarecidamente que se escolha outra coisa. Na verdade, estou desde a manhã com praticamente uma lata de atum e duas saquetas de belgas no estômago e apetecia-me comer algo mais. Mas não. O movimento pasquitanês cresce. Alguém chega ao ponto de me dizer que eu gosto de paquistanês, não sei o que digo. O que é fantástico, principalmente quando me tentam explicar que eu não sei o que o meu corpo me diz. é daquelas coisas que dá gosto ouvir e que gera, nos meus olhos, visões de ver aquela pessoas atirada às lavas do Krakatoa, depois de ter sido atropelada por um cortejo de Carnaval no Rio, logo a seguir a uma sessão de sodomia com as colunas do Partenon. Há ali um momento em que a minha paciência está naquele ponto, que alguns poucos conhecem, uma coisa muito parecida com a transformação de Super Guerreiro, excepto que não ficou louro. Simplesmente perco a total noção de decoro e começo a destruir verbalmente gente culpada e gente inocente. No entanto, faço um esforço e imagino na cara da pessoa portadora de tamanha idiotice uma bola de praia cheia na qual búfalos urinam alegremente, para logo de seguida abelhas virem picar com galhardia. A imagem sossega-me, uma calma quase budista preenche-me. Sinto.me revestido de ecumenismo e como um cordeiro sacrificial aceito que, para que se acalme um grupo que está lentamente a entrar em ebulição, eu me sujeite às agruras da fome. Sinto-me quase um Cristo, barbas visíveis, o sofrimento de toda a Humanidade sob os meus ombros, justificando assim as dores que regularmente sinto nas costas. Venha a nós o vosso Islamabad, as vossas cabras e borregos, o vosso arroz em caril com passas.


Há uma significativa comunidade paquistanesa em Tashkurgan. A fronteira com o seu país natal é já ali e quando atravessam para a China, provavelmente em busca de uma vida economicamente mais satisfatória, esta é a primeira cidade que encontram. Por aqui ficam, para não se afastarem muito dos seus e também porque podem ajudar outros conterrâneos. O "Jingdu" é um dos restaurantes mais cotados da cidade, ainda que isso por si queira dizer pevides. É um espaço pequenino, que me lembrou muito, em tamanho e ambiente, o "José Manuel dos Ossos", um tasco aqui de Coimbra onde se pode meter comida caseira ao bucho a preços apreciáveis. Tem quatro meses e chega. Este também é assim. Com algum jeito e engenho, cabemos todos e ainda sobra espaço para alguns clientes. Estes olham-nos com perplexidade, refugiando-se ocasionalmente nas profundezas da wifi. Escolhemos quatro ou cinco pratos para distribuir entre nós. Há pão na mesa, o que me agrada e salva. Lá fora, o frio irrompeu e uma noite escuríssima, acentuada pela pálida iluminação artificial da cidade, dão ao exterior um ar cadavérico de filme de terror. Enquanto petisco o que existe e o que o meu estômago tolera. penso na vida destas pessoas, isoladas como poucas, longe de tudo. Imagino-as a sair à noite. Uma daquelas deprimentes desolações de isolamento. Recordo-me de como já vivi aquilo noutros espaços. Lembro-me de ter passado um dia inteiro em Sandur sem vivalma que dissesse presente. E agora, enquanto escrevo isto, é inevitável reflectir nesta minha fama de intrépido habitante dos retiros, daqueles espaços onde só existe espaço e não gente. Se o meu gosto por eles é assim tão real, se filtra um certo asco que posso ter a pessoas no geral. As fotografias que tirei deste dia, na sua maioria, são de paisagens sem mão para dar. Mas regresso ao arroz com caril que comi no Jingdu e nesse momento, acho que só pensava em dormir. Um velhote entra e instala-se a festa. Abraça-se efusivamente ao dono do restaurante, estão ali uns segundos, quase que choram. Mais tarde, o senhor explica-nos que é um amigo do Paquistão, veio passar uns dias à China e lembra-o de casa. São amigos há décadas, mas desde que trabalha na China que não o viu. De súbito, tenho saudades de Portugal e penso em lugares, em pessoas. Penso em quem é minha casa, mas não abre a porta.

O único hotel decente nesta terra é o Crown Inn. Por entre a escuridão, desaguamos à sua entrada. Surpresa total: um grupo de chineses tajiques recebe-nos com calor, envergando faixas enormes com um "Welcome to Tashkurgan, people from Portugal" (confesso que não me recordo de tudo, mas era algo assim). Duas patuscas moças esticam uma bandeira de Portugal, que acredito bem que tenha pagodes e seja dos chineses, fingindo um patriotismo luso que só se encontra em jogadores de selecções desportivas. Inusitado e inesperado, é uma surpresa que sabe melhor do que o paquistanês e que compensa a falta de comida. De como até mesmo nas profundidades da longitude pode haver o crepitar do acolhimento, de como não estar em casa não tem de significar estar deslocado. Nestes desconhecidos, encontramos algo de parecido com conforto. Até torna a tarefa de tirar as malas do carro muito menos tão agradável e a noite menos fria. Não tão menos fria como o decote daquela moça que julgava que tinha ido ao Irão, mas ainda assim, não posso desvalorizar o que tenho em detrimento daquilo que me falta.





segunda-feira, novembro 04, 2019

Fachinação 8: Rumo a Tashkurgan



Em 1962, Adolph Eichmann subiu a um cadafalso em Jerusalém. Dois anos, enquanto beberricava mate em Buenos Aires, depois de ano fugitivo de várias organizações e governos internacionais, não sonhava sequer que eventualmente os crimes que cometera durante a Segunda Guerra Mundial fechariam o círculo apenas para tramá-los da mais drástica das maneiras. Eichmann fora uma das principais rodas na engrenagem grotesca e desumana da Solução Final que os Nazis prepararam para os Judeus - o extermínio completo. em 1945, no meio da confusão, fugiu para a América do Sul e ao escrutínio da História. Mas vinte e três anos depois, ali o esperava o laço que se fecharia no seu pescoço, exterminando-o. O Sangue dos Deuses encontrara os Anjos Exterminadores. O seu julgamento, que durou quase dois anos tornou-se mais importante do que o relatar de factos e horrores. Marcou efectivamente a Filosofia do século XX, quando o seu desenrolar inspirou a alemã Hannah Arendt a escrever o conhecido ensaio "Eichmann em Jerusalém", onde discorre sobre o conhecido princípio da banalidade do Mal. A defesa de Eichmann ao longo do julgamento fora simplemente a de que não era responsável pelas suas acções. Como parte de uma máquina totalitária maior do que si mesmo, simplesmente obedeceu a ordens. Ordenavam-lhe a morte de outros, ele simplesmente obedecia. Era um fantoche. Um corpo sem alma, o receptor do terror. Logo, não lhe devia ser imputada esta culpa que não lhe pertencera.

A desculpa não era nova, nem original do nazismo. No entanto, pelo mediatismo do julgamento, e por ter sido aliás a muleta de desculpabilização de países no miolo do extermínio do maior conflito que o Mundo alguma vez viu, tornou.se no foco de uma discussão intelectual que ainda hoje dura. Até onde vai o nosso livre arbítrio no que diz respeito à moral? Podemos realmente ser obrigados a fazer o indizível? O direito a desobedecer é menor do que o respeito à Pátria ou às instituições apenas porque com elas estabelecemos um compromisso?  A Lei é superior à Ética? Dizer que Arendt era uma mulher bastante ágil de mente é uma eufemismo - embora a sua relação íntima com Heidegger, filósofo com inclinações nazis mostre que não vivia sem as suas contradições. No livro, ela destrói a argumentação do criminoso nazi, notando até que o próprio revela pouca habilidade em pensar por si mesmo, até porque devia bastante à inteligência. Isto tornava-o no candidato ideal à função que lhe entregaram, mas nunca o desculpabilizaria. O que ela conclui, e a razão pela qual o livro ainda hoje é das obras mais assustadoras da literatura, é que ao contrário do que se pensava na altura, um Nazi não seria um monstro psicopata, uma criatura das trevas de excepção passeando entre a população. Não era uma anomalia, era mais um entre muitos. Nas condições certas, podíamos ser nós. O Mal não é um estado sobre-humano ou isolado: o Mal está presente e vive das nove às cinco. É banal. Não questiona, não pensa: acontece porque quando obedecemos, a nossa responsabilidade é cedida a quem ordena. A boa acção não é um imperativo, mas sim uma opção.


Penso que explica muito do meu insucesso com o sexo oposto quando digo que era isto que me ocupava a mente quando saímos de Kashgar rumo a uma cidade algures no meio das montanhas de Karakoram. Já perceberão porquê. A ideia é seguir numa carrinha, fazer a longa estrada que atravessa as montanhas e chegar lá ao final do dia. É coisa para durar umas dez horas, portanto o melhor é levar auscultadores à mão e sintonizar a rádio Bruno no telemóvel. Felizmente que para nos entreter na viagem temos a companhia do Atta. É o nosso guia, uigur de feições e espírito, o que aconteceria se um homem tivesse engolido um varapau e não se desse ao trabalho de extraí-lo. A cara afunilada e olhos encovados dão-lhe traços de pesadelo, mas é um rapaz simpático, jovem, com uma paixão particular pelo seu povo. Fala da História e origens, dos preceitos da religião, do quotidiano. Refere que um Uigur só se torna bem visto quando tem animais. Que ele próprio possui uma propriedade, quatorze ovelhas e três vacas e por isso o respeitam. A agricultura e o comércio casam-se na cultura uigur e por isso os mercados são tão importantes. Fala-nos de como a flexibilidade do seu povo é forçada pela própria Natureza, que lhes coloca obstáculos inesperados: entre Kashgar e Tashkurgan xiste um desnível de praticamente três mil quilómetros. Tal significa, por exemplo, que o ponto de fervura da água dos dois locais tem uma diferença de trinta graus Celsius. Parece uma coisa de Marte, mas não é.

Exprime-se num inglês muito competente, sorri sempre, responde a tudo. Quase tudo. Qualquer curva onde o diálogo possa resvalar para a valeta da política é uma oportunidade para Atta guinar as palavras novamente para estradas mais alcatroadas. A situação tornou-se mais complicada nos últimos anos com a ocupação chinesa, mas diz que se dá bem com eles. Tem pena que a cultura Uigur se esteja a perder, mas por outro lado o progresso tem chegado a Xinjiang e isso é bom. Anda sempre latente aquela pontinha de melancolia própria de quem é imprimido, mas à flor a pele assoma a bonomia de quem não pode prever quem está a ouvir o que diz. Atta dá-se com Deus e o Diabo porque o purgatório é o seu dia a dia. É impossível não sentir simpatia pela sua situação. Antes de abandonar Kashgar, os nosso fãs chineses mostram uma preocupação paternal quando nos mandam parar num piquete à saída da cidade. Atta pede-nos os passaportes e sai. Estacionamos num espaço reservado a quem espera. Dez minutos depois, regressa e devolve-nos os documentos. Era só para saber onde íamos o que íamos fazer. Nada de mais. Temos permissão, é bom.

A nossa primeira paragem acontece numa aldeola chamada Wuparzhen. É apenas logística. Compras de almoços e mantimentos. Wuparzhen é anónimo, um pedaço de estrada com perpendiculares de casas baixas de madeira. Numa zona específica, mercearias e bandas de ruas convidam-nos a desembolsar dinheiro. Um dos vendedores mostra-se circunspecto enquanto vasculhamos a sua fruta. Um dos hábitos que ganhei como pessoa que viaja para locais algo fora do circuito da civilização é o de nunca confiar nestas bancas. É impossível saber a proveniência do produto, a sua qualidade, o seu poder laxante. No entanto, ao ouvir tantos elogios ao sabor de umas maçãs que toda a gente cobiça, arrisco. A capacidade lendária das minhas decisões é por demais conhecido para quem acompanha estas crónicas. Por dois yuan, levo na saca quatro maçãzinhas e o circunspecto indivíduo ainda me oferece uma de borla. Por momentos, julgo que o meu carisma apetecível continua a fazer amigos e admiradores por todo o mundo, mas não: é um hábito, uma estratégia de marketing. Certeira, a meu ver. Se fizessem isto em Portugal, ia menos vezes a hipermercados; e nem é pelo dinheiro: é pelo simples gesto de agradar e agradecer. Fui-me habituando a esta cultura tão da Ásia Central, recordo quando, em Osh, uma fotografia tirada serviu de pretexto a um padeiro idoso para me ofertar um gigante pão apenas porque engraçara com o momento. É das coisas que mais gosto quando venho até esta ponta da existência. Embalado pela curiosidade, entro numa mercearia. Prateleiras equilibristas apresentam produtos bizarros, de onde se destacam latas de salsichas Marco Polo. Eu olho e rio. Um homem, ao balcão, deve ter percebido a piada e sorriu também. Ou então, estava apenas a ser simpático. Saímos desta aldeia para estacionar uma meia hora depois na primeira atracção turística do dia: um conjunto de montanhas vermelhas que se inserem num parque natural. Dizem. Estão lá, pelo menos, dois mamarrachos encarnados de PVC a indicá-lo. Basicamente, é o leito seco de um rio que através dois maciços de arenito. É um pretexto para esticar as pernas e fotografar.


A paisagem vai melhorando. A cordilheira de Karakoram começa a assumir o esplendor que me encanta nas alturas. Num dia de sol e céu varrido como é este, o branco as neves elevadas é ainda mais intenso e envolvente. Há nova paragem para fotografar e mais comigo, fora de um veículo, presente no mundo. À beira da estrada, velhotas vendem bijuteria. Ali, num meio de nenhures. Há claro uma combinação entre o esquálido Atta e as senhoras, mas se o preço a pagar são dez minutos de esplendor, aceito bem a marosca. São picos bem cortados, como dentes. Mordem-me a curiosidade, mas o tempo é curto aqui. A carrinha mete o andamento e eu já tenho saudades do que mais gosto em viagens: estar. Para que não pense que, eventualmente, isto se torna aborrecido. Há um novo piquete da Polícia Chinesa. O Atta repete o ritual. Passaportes. A sua carteira na mão. Saída ca carrinha. Uns minutos depois regressa e chama-nos. Querem ver-nos. A mochila vai connosco, pelo menos, logo se vê se as malas são revistadas. Uma fila mais ou menos definida encaminha-se para uma casamata branca e cinzenta com o visível dístico policial do país. Rodeiam-nos montanhas, se nos acontecer algo as únicas testemunhas serão homens de uniforme e calhaus. Alguém menos elegante diria que isto é uma repetição, mas eu caracterizo-me pela classe, como sabem. No interior, há dois pontos bem definidos. Um é para chineses Han. O outro para estrangeiros e minorias. Não entendo mandarim para ler, umas uma rápida olhada é suficiente para concluí-lo.

O processo é simples. Existe uma detector de metais que é especial, porque existe ali para nós. A seu lado, uma máquina de raio X, analisando toda a nossa carga, não vá algum de nós, num engano comum, ter trazido algum pau de dinamite ou explosivo plástico para fazer esculturas de estrondo. Vigiando todo o processo, uma diminuta mulher, carrancuda, convencida de que se for simpática, eventualmente as montanhas desabam e a cascata de pedras chegará até Pequim. Sem maquilhagem, enverga apenas a máscara da burocracia. Todos os seus subalternos, jovens com aspecto de poderem ser meus alunos no próximo ano lectivo, dobram-se sempre que ela levanta a voz ou lhes atira um olhar que perfuraria kevlar. É o tipo de mulher para quem o movimento #metoo é uma perda de tempo, porque todos os problemas se resolveriam se as meninas aprendessem na escola a arte do cacetete. O Atta troca umas palavrinhas com ela. Somos esfaqueados durante alguns segundos e dá-nos ordem que passe. A mão esquerda numa plataforma digital. Olhos na direcção de um ecrã. Parado antes de um traço no chão. Pede-me o passaporte. Vão tirar-me uma foto. Ocorre-me então ser parvo. Enquanto ela verifica a legitimidade do meu documento nacional, encaro a câmara com a pose mais aborrecida e entediada que me ocorre. É a minha pequena rebeldia contra todo este sistema. Olhar revirado, lábios descaídos, coluna vergada, quase consigo ouvir-me ressonar. Luz verde para mim. Devolvem-me o passaporte e sigo até às restantes pessoas do grupo que já passaram pelo mesmo processo. Comentam a repetição do mesmo, enquanto me regozijo com o meu momento. Ninguém me vem prender. Mas noto então que todos os que têm de passar por este metódico instrumento de controlo não pestanejam, nem questionam. Atrapalha a vida, mas reclamar não é opção. É mais um dia, mais uma voltinha. É o que temos, é aquilo com que lidamos. É banal. Regresso então a Arendt. Embora tenha discutido apenas a situação de quem comete crimes em nome de alguém desresponsabilizando-se, a sua teoria também se aplica a quem vive uma trivialidade que se pontua de momentos que a quebra. Não me imagino, por exemplo, a fazer as minhas viagens passadas para Portalegre parando aqui e ali para ser controlado pela Polícia. Mas aqui, desde o Atta até ao chineses Han, a aceitação estarrece. Só não me admiro totalmente por tudo o que vi desde que cheguei e por momentos, pergunto-me se eu próprio começarei a aceitar tudo isto sem estranhar, se perderei essa irreverência de fazer caretas, de subverter dentro da pequenez dos meus gestos um sistema desenhado para roubar a criatividade. De como hoje em dia a Banalidade engoliu o Mal e se eventualmente me devorará também nestas duas semanas.


Mais uma horinha de viagem. Consulto um mapa e noto que o piquete anterior está a pouca distância onde, pelos cálculos de algumas ONG, se situam três campos de reeducação. Bem a propósito, portanto. O meio de nenhures é apenas um conceito muito livre e vago. Ribombam alguns pedidos para idas à casa de banho e queixas gerais de tonturas. Passámos os dois mil metros de altitude, o que significa que a partir de agora isso será muito comum para quem sofre facilmente com o mal da altura. Tendo em conta que ultrapassaremos os quatro mil metros na ascensão, o melhor é haver precaução. À nossa frente, existe um posto dos correios chineses. Quando entramos, não se vê qualquer balcão e lembra-me muito livremente a antiga loja da casa dos meus avós maternos. Um pequeno corredor dá acesso a uma larguíssima sala onde em mesas são exibidos produtos naturais para venda. Há de tudo, mas não percebo o que é esse tudo, porque os caracteres são ininteligíveis e as traduções são tão ao lado que parecem os pés alguns pontas de lança que têm passado pelo Sporting. No entanto, as imagens são linguagem universal e umas cascas castanhas, com um leve cheiro ao gengibre, são encimadas pela imagem óbvia de um casal jovem, vigoroso, vestidos como quem vai participar numa recriação dos Jogos Olímpicos no tempo das cidades-estado gregas. Têm gosto no que fazem e ou porque era a única imagem disponível, ou porque o comércio chinês nunca conspurcaria a imagem do país, são ocidentais. Entende-se de imediato que aquele é o pau de Cabinda cá do sítio. Pau de Kashgar? Parece uma posição sexual que não repetiria. Como portugueses, mandamos umas piadas e uns trocadilhos, fazemos referências à Muralha da China e ao amor que a China tem por pagodes. Mas ninguém compra. No entanto, é nesse momento que sinto um raio que me atravessa e faz tremer as virilhas. Não é efeito deste viagra arbóreo, mas sim o momento nesta crónica em que regressa o nosso velho amigo: o apelo intestinal. De verdade que tento não referir estas ocasiões tão íntimas e pessoais em crónias que se querem de beleza e curiosidade. Mas não tenho culpa que de todas as vezes que a Natureza me chama ao batente tal dê origem a situações coloridas por mais do que uma cor.

Sigo as indicações da casa de banho. A sua localização no exterior promete, pelo menos, alguma privacidade. Mas não cumpre. Quando me deparo com as instalações sanitárias, um homem de meia idade aninha-se por sobre um buraco. Não sei se já referi, mas os Chineses odeiam sanitas. De morte. Existe uma aversão nacional pelo contacto com o que quer que seja enquanto se aprecia um belo exercício de evacuação, levando assim a um modelo clássico de buraquinho no chão. Nada que me seja novidade. A minha escola primária oferecia aos petizes casas de banho do género, e ainda os Chineses não sonhavam que um dia seriam donos disto tudo. Recordo-me bem de, em manhãs de Inverno, tiritar por sobre o furo na cerâmica mais ou menos branca - dependia se a funcionária já por ali tinha passado ou não - naquela vontade de que a vontade tivesse as propriedades da velocidade da luz. Quando vejo aquele infeliz, que pela cara de esforço não incluía fibras na dieta desde os Jogos Olímpicos de Pequim, imediatamente sou transportado para a minha infância. É para isso que viajo: para voltar ao mais puro e inocente de mim  mesmo. Nunca imaginaria que tal acontecesse desta maneira. No entanto, o intestino faz soar os tambores da guerra. Confirmo que tenho dois lenços de papel no bolso, embora usados. Não me restam mais alternativas. Calças ao nível das sapatilhas, muito cuidadinho com o que me espera e prostro-me no altar de Nossa Senhora da Erupção. Entre os dois ocupantes do espaço, existe uma pequena separatória de branco ladrilhado. Não o vejo, mas ouço-o, com nitidez. Parece um búfalo a tentar fazer passar pedras de rim do tamanho das estátuas da Ilha da Páscoa. Eu sou recordado de que não tenho musculatura decente nas pernas e agarro-me onde posso para não cair. Já me tinha esquecido do quão desconfortável é a posição natural.  Entre isso e a banda sonora de entupimento, esta pode ser uma das situações mais desconfortáveis que tive em viagem. Tal como a criança na Primária, desejo ardentemente que a velocidade da luz se aplique ao movimentos dos quase sólidos. Não sei quanto tempo demorei, mas uso até ao limite o papel que tenho e quando puxo o autoclismo... não funciona.  E agora? A resposta está num balde. Cheio de água, escorrega maravilhosamente para a latrina. Desapareço dali. Quando o faço, o homem ainda por lá fica.

A carrinha prossegue. Mais aliviado, volto à paisagem, à maneira como a sua liberdade se abriga nesta jaula de montanhas. Regresso a Arendt e dou por mim a pensar como sou doente, como mesmo em viagem não consigo não ser simples. Nem é ser complicado: é mesmo não ser simples. De como gostava que o meu pensamento tivesse piquetes da simplicidade. Numa das passagens mais isoladas de todo o planeta, é impossível fugir de mim. Ponho Arendt para o lado e sintonizo a rádio Bruno. A música a passar é "Shut up and kiss me", de Angel Olsen. Não melhora exactamente as memórias femininas. Ou pior: melhora demasiado. Percebo então que a banalidade ainda não me chegou: a minha mente, sem prisão, vai para onde quer, se lhe importar que me arraste consigo. A liberdade tem sempre um preço.