segunda-feira, novembro 04, 2019
Fachinação 8: Rumo a Tashkurgan
Em 1962, Adolph Eichmann subiu a um cadafalso em Jerusalém. Dois anos, enquanto beberricava mate em Buenos Aires, depois de ano fugitivo de várias organizações e governos internacionais, não sonhava sequer que eventualmente os crimes que cometera durante a Segunda Guerra Mundial fechariam o círculo apenas para tramá-los da mais drástica das maneiras. Eichmann fora uma das principais rodas na engrenagem grotesca e desumana da Solução Final que os Nazis prepararam para os Judeus - o extermínio completo. em 1945, no meio da confusão, fugiu para a América do Sul e ao escrutínio da História. Mas vinte e três anos depois, ali o esperava o laço que se fecharia no seu pescoço, exterminando-o. O Sangue dos Deuses encontrara os Anjos Exterminadores. O seu julgamento, que durou quase dois anos tornou-se mais importante do que o relatar de factos e horrores. Marcou efectivamente a Filosofia do século XX, quando o seu desenrolar inspirou a alemã Hannah Arendt a escrever o conhecido ensaio "Eichmann em Jerusalém", onde discorre sobre o conhecido princípio da banalidade do Mal. A defesa de Eichmann ao longo do julgamento fora simplemente a de que não era responsável pelas suas acções. Como parte de uma máquina totalitária maior do que si mesmo, simplesmente obedeceu a ordens. Ordenavam-lhe a morte de outros, ele simplesmente obedecia. Era um fantoche. Um corpo sem alma, o receptor do terror. Logo, não lhe devia ser imputada esta culpa que não lhe pertencera.
A desculpa não era nova, nem original do nazismo. No entanto, pelo mediatismo do julgamento, e por ter sido aliás a muleta de desculpabilização de países no miolo do extermínio do maior conflito que o Mundo alguma vez viu, tornou.se no foco de uma discussão intelectual que ainda hoje dura. Até onde vai o nosso livre arbítrio no que diz respeito à moral? Podemos realmente ser obrigados a fazer o indizível? O direito a desobedecer é menor do que o respeito à Pátria ou às instituições apenas porque com elas estabelecemos um compromisso? A Lei é superior à Ética? Dizer que Arendt era uma mulher bastante ágil de mente é uma eufemismo - embora a sua relação íntima com Heidegger, filósofo com inclinações nazis mostre que não vivia sem as suas contradições. No livro, ela destrói a argumentação do criminoso nazi, notando até que o próprio revela pouca habilidade em pensar por si mesmo, até porque devia bastante à inteligência. Isto tornava-o no candidato ideal à função que lhe entregaram, mas nunca o desculpabilizaria. O que ela conclui, e a razão pela qual o livro ainda hoje é das obras mais assustadoras da literatura, é que ao contrário do que se pensava na altura, um Nazi não seria um monstro psicopata, uma criatura das trevas de excepção passeando entre a população. Não era uma anomalia, era mais um entre muitos. Nas condições certas, podíamos ser nós. O Mal não é um estado sobre-humano ou isolado: o Mal está presente e vive das nove às cinco. É banal. Não questiona, não pensa: acontece porque quando obedecemos, a nossa responsabilidade é cedida a quem ordena. A boa acção não é um imperativo, mas sim uma opção.
Penso que explica muito do meu insucesso com o sexo oposto quando digo que era isto que me ocupava a mente quando saímos de Kashgar rumo a uma cidade algures no meio das montanhas de Karakoram. Já perceberão porquê. A ideia é seguir numa carrinha, fazer a longa estrada que atravessa as montanhas e chegar lá ao final do dia. É coisa para durar umas dez horas, portanto o melhor é levar auscultadores à mão e sintonizar a rádio Bruno no telemóvel. Felizmente que para nos entreter na viagem temos a companhia do Atta. É o nosso guia, uigur de feições e espírito, o que aconteceria se um homem tivesse engolido um varapau e não se desse ao trabalho de extraí-lo. A cara afunilada e olhos encovados dão-lhe traços de pesadelo, mas é um rapaz simpático, jovem, com uma paixão particular pelo seu povo. Fala da História e origens, dos preceitos da religião, do quotidiano. Refere que um Uigur só se torna bem visto quando tem animais. Que ele próprio possui uma propriedade, quatorze ovelhas e três vacas e por isso o respeitam. A agricultura e o comércio casam-se na cultura uigur e por isso os mercados são tão importantes. Fala-nos de como a flexibilidade do seu povo é forçada pela própria Natureza, que lhes coloca obstáculos inesperados: entre Kashgar e Tashkurgan xiste um desnível de praticamente três mil quilómetros. Tal significa, por exemplo, que o ponto de fervura da água dos dois locais tem uma diferença de trinta graus Celsius. Parece uma coisa de Marte, mas não é.
Exprime-se num inglês muito competente, sorri sempre, responde a tudo. Quase tudo. Qualquer curva onde o diálogo possa resvalar para a valeta da política é uma oportunidade para Atta guinar as palavras novamente para estradas mais alcatroadas. A situação tornou-se mais complicada nos últimos anos com a ocupação chinesa, mas diz que se dá bem com eles. Tem pena que a cultura Uigur se esteja a perder, mas por outro lado o progresso tem chegado a Xinjiang e isso é bom. Anda sempre latente aquela pontinha de melancolia própria de quem é imprimido, mas à flor a pele assoma a bonomia de quem não pode prever quem está a ouvir o que diz. Atta dá-se com Deus e o Diabo porque o purgatório é o seu dia a dia. É impossível não sentir simpatia pela sua situação. Antes de abandonar Kashgar, os nosso fãs chineses mostram uma preocupação paternal quando nos mandam parar num piquete à saída da cidade. Atta pede-nos os passaportes e sai. Estacionamos num espaço reservado a quem espera. Dez minutos depois, regressa e devolve-nos os documentos. Era só para saber onde íamos o que íamos fazer. Nada de mais. Temos permissão, é bom.
A nossa primeira paragem acontece numa aldeola chamada Wuparzhen. É apenas logística. Compras de almoços e mantimentos. Wuparzhen é anónimo, um pedaço de estrada com perpendiculares de casas baixas de madeira. Numa zona específica, mercearias e bandas de ruas convidam-nos a desembolsar dinheiro. Um dos vendedores mostra-se circunspecto enquanto vasculhamos a sua fruta. Um dos hábitos que ganhei como pessoa que viaja para locais algo fora do circuito da civilização é o de nunca confiar nestas bancas. É impossível saber a proveniência do produto, a sua qualidade, o seu poder laxante. No entanto, ao ouvir tantos elogios ao sabor de umas maçãs que toda a gente cobiça, arrisco. A capacidade lendária das minhas decisões é por demais conhecido para quem acompanha estas crónicas. Por dois yuan, levo na saca quatro maçãzinhas e o circunspecto indivíduo ainda me oferece uma de borla. Por momentos, julgo que o meu carisma apetecível continua a fazer amigos e admiradores por todo o mundo, mas não: é um hábito, uma estratégia de marketing. Certeira, a meu ver. Se fizessem isto em Portugal, ia menos vezes a hipermercados; e nem é pelo dinheiro: é pelo simples gesto de agradar e agradecer. Fui-me habituando a esta cultura tão da Ásia Central, recordo quando, em Osh, uma fotografia tirada serviu de pretexto a um padeiro idoso para me ofertar um gigante pão apenas porque engraçara com o momento. É das coisas que mais gosto quando venho até esta ponta da existência. Embalado pela curiosidade, entro numa mercearia. Prateleiras equilibristas apresentam produtos bizarros, de onde se destacam latas de salsichas Marco Polo. Eu olho e rio. Um homem, ao balcão, deve ter percebido a piada e sorriu também. Ou então, estava apenas a ser simpático. Saímos desta aldeia para estacionar uma meia hora depois na primeira atracção turística do dia: um conjunto de montanhas vermelhas que se inserem num parque natural. Dizem. Estão lá, pelo menos, dois mamarrachos encarnados de PVC a indicá-lo. Basicamente, é o leito seco de um rio que através dois maciços de arenito. É um pretexto para esticar as pernas e fotografar.
A paisagem vai melhorando. A cordilheira de Karakoram começa a assumir o esplendor que me encanta nas alturas. Num dia de sol e céu varrido como é este, o branco as neves elevadas é ainda mais intenso e envolvente. Há nova paragem para fotografar e mais comigo, fora de um veículo, presente no mundo. À beira da estrada, velhotas vendem bijuteria. Ali, num meio de nenhures. Há claro uma combinação entre o esquálido Atta e as senhoras, mas se o preço a pagar são dez minutos de esplendor, aceito bem a marosca. São picos bem cortados, como dentes. Mordem-me a curiosidade, mas o tempo é curto aqui. A carrinha mete o andamento e eu já tenho saudades do que mais gosto em viagens: estar. Para que não pense que, eventualmente, isto se torna aborrecido. Há um novo piquete da Polícia Chinesa. O Atta repete o ritual. Passaportes. A sua carteira na mão. Saída ca carrinha. Uns minutos depois regressa e chama-nos. Querem ver-nos. A mochila vai connosco, pelo menos, logo se vê se as malas são revistadas. Uma fila mais ou menos definida encaminha-se para uma casamata branca e cinzenta com o visível dístico policial do país. Rodeiam-nos montanhas, se nos acontecer algo as únicas testemunhas serão homens de uniforme e calhaus. Alguém menos elegante diria que isto é uma repetição, mas eu caracterizo-me pela classe, como sabem. No interior, há dois pontos bem definidos. Um é para chineses Han. O outro para estrangeiros e minorias. Não entendo mandarim para ler, umas uma rápida olhada é suficiente para concluí-lo.
O processo é simples. Existe uma detector de metais que é especial, porque existe ali para nós. A seu lado, uma máquina de raio X, analisando toda a nossa carga, não vá algum de nós, num engano comum, ter trazido algum pau de dinamite ou explosivo plástico para fazer esculturas de estrondo. Vigiando todo o processo, uma diminuta mulher, carrancuda, convencida de que se for simpática, eventualmente as montanhas desabam e a cascata de pedras chegará até Pequim. Sem maquilhagem, enverga apenas a máscara da burocracia. Todos os seus subalternos, jovens com aspecto de poderem ser meus alunos no próximo ano lectivo, dobram-se sempre que ela levanta a voz ou lhes atira um olhar que perfuraria kevlar. É o tipo de mulher para quem o movimento #metoo é uma perda de tempo, porque todos os problemas se resolveriam se as meninas aprendessem na escola a arte do cacetete. O Atta troca umas palavrinhas com ela. Somos esfaqueados durante alguns segundos e dá-nos ordem que passe. A mão esquerda numa plataforma digital. Olhos na direcção de um ecrã. Parado antes de um traço no chão. Pede-me o passaporte. Vão tirar-me uma foto. Ocorre-me então ser parvo. Enquanto ela verifica a legitimidade do meu documento nacional, encaro a câmara com a pose mais aborrecida e entediada que me ocorre. É a minha pequena rebeldia contra todo este sistema. Olhar revirado, lábios descaídos, coluna vergada, quase consigo ouvir-me ressonar. Luz verde para mim. Devolvem-me o passaporte e sigo até às restantes pessoas do grupo que já passaram pelo mesmo processo. Comentam a repetição do mesmo, enquanto me regozijo com o meu momento. Ninguém me vem prender. Mas noto então que todos os que têm de passar por este metódico instrumento de controlo não pestanejam, nem questionam. Atrapalha a vida, mas reclamar não é opção. É mais um dia, mais uma voltinha. É o que temos, é aquilo com que lidamos. É banal. Regresso então a Arendt. Embora tenha discutido apenas a situação de quem comete crimes em nome de alguém desresponsabilizando-se, a sua teoria também se aplica a quem vive uma trivialidade que se pontua de momentos que a quebra. Não me imagino, por exemplo, a fazer as minhas viagens passadas para Portalegre parando aqui e ali para ser controlado pela Polícia. Mas aqui, desde o Atta até ao chineses Han, a aceitação estarrece. Só não me admiro totalmente por tudo o que vi desde que cheguei e por momentos, pergunto-me se eu próprio começarei a aceitar tudo isto sem estranhar, se perderei essa irreverência de fazer caretas, de subverter dentro da pequenez dos meus gestos um sistema desenhado para roubar a criatividade. De como hoje em dia a Banalidade engoliu o Mal e se eventualmente me devorará também nestas duas semanas.
Mais uma horinha de viagem. Consulto um mapa e noto que o piquete anterior está a pouca distância onde, pelos cálculos de algumas ONG, se situam três campos de reeducação. Bem a propósito, portanto. O meio de nenhures é apenas um conceito muito livre e vago. Ribombam alguns pedidos para idas à casa de banho e queixas gerais de tonturas. Passámos os dois mil metros de altitude, o que significa que a partir de agora isso será muito comum para quem sofre facilmente com o mal da altura. Tendo em conta que ultrapassaremos os quatro mil metros na ascensão, o melhor é haver precaução. À nossa frente, existe um posto dos correios chineses. Quando entramos, não se vê qualquer balcão e lembra-me muito livremente a antiga loja da casa dos meus avós maternos. Um pequeno corredor dá acesso a uma larguíssima sala onde em mesas são exibidos produtos naturais para venda. Há de tudo, mas não percebo o que é esse tudo, porque os caracteres são ininteligíveis e as traduções são tão ao lado que parecem os pés alguns pontas de lança que têm passado pelo Sporting. No entanto, as imagens são linguagem universal e umas cascas castanhas, com um leve cheiro ao gengibre, são encimadas pela imagem óbvia de um casal jovem, vigoroso, vestidos como quem vai participar numa recriação dos Jogos Olímpicos no tempo das cidades-estado gregas. Têm gosto no que fazem e ou porque era a única imagem disponível, ou porque o comércio chinês nunca conspurcaria a imagem do país, são ocidentais. Entende-se de imediato que aquele é o pau de Cabinda cá do sítio. Pau de Kashgar? Parece uma posição sexual que não repetiria. Como portugueses, mandamos umas piadas e uns trocadilhos, fazemos referências à Muralha da China e ao amor que a China tem por pagodes. Mas ninguém compra. No entanto, é nesse momento que sinto um raio que me atravessa e faz tremer as virilhas. Não é efeito deste viagra arbóreo, mas sim o momento nesta crónica em que regressa o nosso velho amigo: o apelo intestinal. De verdade que tento não referir estas ocasiões tão íntimas e pessoais em crónias que se querem de beleza e curiosidade. Mas não tenho culpa que de todas as vezes que a Natureza me chama ao batente tal dê origem a situações coloridas por mais do que uma cor.
Sigo as indicações da casa de banho. A sua localização no exterior promete, pelo menos, alguma privacidade. Mas não cumpre. Quando me deparo com as instalações sanitárias, um homem de meia idade aninha-se por sobre um buraco. Não sei se já referi, mas os Chineses odeiam sanitas. De morte. Existe uma aversão nacional pelo contacto com o que quer que seja enquanto se aprecia um belo exercício de evacuação, levando assim a um modelo clássico de buraquinho no chão. Nada que me seja novidade. A minha escola primária oferecia aos petizes casas de banho do género, e ainda os Chineses não sonhavam que um dia seriam donos disto tudo. Recordo-me bem de, em manhãs de Inverno, tiritar por sobre o furo na cerâmica mais ou menos branca - dependia se a funcionária já por ali tinha passado ou não - naquela vontade de que a vontade tivesse as propriedades da velocidade da luz. Quando vejo aquele infeliz, que pela cara de esforço não incluía fibras na dieta desde os Jogos Olímpicos de Pequim, imediatamente sou transportado para a minha infância. É para isso que viajo: para voltar ao mais puro e inocente de mim mesmo. Nunca imaginaria que tal acontecesse desta maneira. No entanto, o intestino faz soar os tambores da guerra. Confirmo que tenho dois lenços de papel no bolso, embora usados. Não me restam mais alternativas. Calças ao nível das sapatilhas, muito cuidadinho com o que me espera e prostro-me no altar de Nossa Senhora da Erupção. Entre os dois ocupantes do espaço, existe uma pequena separatória de branco ladrilhado. Não o vejo, mas ouço-o, com nitidez. Parece um búfalo a tentar fazer passar pedras de rim do tamanho das estátuas da Ilha da Páscoa. Eu sou recordado de que não tenho musculatura decente nas pernas e agarro-me onde posso para não cair. Já me tinha esquecido do quão desconfortável é a posição natural. Entre isso e a banda sonora de entupimento, esta pode ser uma das situações mais desconfortáveis que tive em viagem. Tal como a criança na Primária, desejo ardentemente que a velocidade da luz se aplique ao movimentos dos quase sólidos. Não sei quanto tempo demorei, mas uso até ao limite o papel que tenho e quando puxo o autoclismo... não funciona. E agora? A resposta está num balde. Cheio de água, escorrega maravilhosamente para a latrina. Desapareço dali. Quando o faço, o homem ainda por lá fica.
A carrinha prossegue. Mais aliviado, volto à paisagem, à maneira como a sua liberdade se abriga nesta jaula de montanhas. Regresso a Arendt e dou por mim a pensar como sou doente, como mesmo em viagem não consigo não ser simples. Nem é ser complicado: é mesmo não ser simples. De como gostava que o meu pensamento tivesse piquetes da simplicidade. Numa das passagens mais isoladas de todo o planeta, é impossível fugir de mim. Ponho Arendt para o lado e sintonizo a rádio Bruno. A música a passar é "Shut up and kiss me", de Angel Olsen. Não melhora exactamente as memórias femininas. Ou pior: melhora demasiado. Percebo então que a banalidade ainda não me chegou: a minha mente, sem prisão, vai para onde quer, se lhe importar que me arraste consigo. A liberdade tem sempre um preço.
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