Não recolhe longe das minhas
ideias que atravessei a Europa apenas para passear naquela que foi um dia a
capital da Iberia. Tbilisi desabrocha como cidade algures no século V, quando o
rei Vakhtang I precisava de uma capital para o seu reino com nome latino. A
região de Tbilisi fora habitada desde a Idade do Ferro, devido à sua
localização geográfica e segundo a lenda da fundação da cidade, foi esse o
principal chamariz para o malogrado rei fundador. Estava o senhor numa caçada a
faisões numa floresta quando se aleijou. Algures por entre o arvoredo,
encontrou uma fontezinha de água sulfurosa que lhe curou as chagas com
assinalável rapidez e o o monarca, fascinado, decidiu logo ali desbastar as
árvores para erguer um povoado. Porque nada diz “obrigado” como a destruição
completa de uma zona natural que contribuiu para o nosso bem estar. O sucessor
de Vakhtang, Dachi I, completou a mudança da capital do reino para esta cidade
onde passeio e o seu crescimento nos séculos seguintes deveu-se à proximidade
com a Rota da Seda e à benesse de ficar praticamente a meio caminho entre três
mundos: o Romano, através de Bizâncio; o Eslavo, através do Cáucaso; e o Persa,
numa ligação com as terras longínquas do Oriente Chinês. Portanto, estar em Tbilisi
acaba por ter uma certa sonoridade consoante com os meus anteriores roteiros de
viagem. Nunca aqui estive, mas as pistas de outros passeios estão no ar. Quando
atravesso a ponte Metekhi, sobre o rio Mtkvari – um escorrega de água castanha,
sinal de que o degelo está no seu final, que risca em serpentina esta urbe
georgiana – estou a sair de um presente que a Geórgia ocidentalizada constrói
para si e embrulho-me no passado histórico deste povo. A cidade está dividida e
a ponte, no fundo, é um de deLorean com grades. Permite-me viajar no tempo.
O turismo domina-a e a caça ao
turista também. Ainda nem cheguei à outra margem e já fui abordado por umas
cinco pessoas a oferecer-me passeios turísticos pelo país. Recuso educadamente
e mesmo por entre o calor abafado que já criou um mar Cáspio nas minhas costas,
tento fazer sentido do desenho da cidade. Do meu lado direito, noto brotado os
exemplares de arquitectura contemporânea do Rike; mas do lado esquerdo, entre
igrejas e a afastada muralha da fortaleza de Narikala, a verdadeira Tbilisi,
pelo menos a mais próxima da original, assume-se. Partilhando o nome com a
ponte, a igreja da Virgem Sagrada de Metekhi assume a sua contra-luz, vigiada
por uma estátua do rei fundador. A igreja foi aqui construída, num pequeno
monte onde supostamente um mártir ortodoxo chamado Habo foi executado no século
VIII. No entanto, pouco resta da igreja original. Várias destruições
decorrentes de catástrofes naturais e eventos militares levam a que apenas
vejamos uma sombra do passado. Como acontecerá, aliás, ao longo dos dias em que
aqui passamos. Percorrer a cronologia de Tbilisi é a pretensão de registar um
mapa de convulsões. Entre ocupações à força, terramotos e mudanças de dono
imperial, há muitas oportunidades de perder a identidade; mas algures, entre
reconstruções e genuína vontade de glorificar o passado através do esplendor da
arquitectura (o melhor exemplo é a renovação que a cidade atravessou no final
do século XIX e início do século XX) marca mais o carácter rugoso de um magote
de pessoas com uma identidade comum, orgulhosas dessa identidade, recusando o
seu desaparecimento por entre as brumas da História. Ocasionalmente, no
entanto, o apelo do vil metal chama com um trompete e a identidade comum
senta-se no lugar de passageiro em sono que ronca. Foi o que aconteceu no
primeiro local que visito na zona histórico, o Bazar de Meidani. Outrora, foi o
mais importante dos postos comerciais que se localizavam na praça que lhe dá o
nome, o grande centro de compra e venda da velha Tbilisi. Hoje, mantém o local,
um túnel subterrâneo por onde se distribuem pontos de venda; mas atravessá-lo,
seduzido por música local que acredito passar numa versão do “Oceano Pacífico”
autóctone – que tomará aqui porventura o nome de “Mar Negro” – e o aspecto
impecável de quem vendeu a alma ao Diabo via Loja do Gato Preto, com um toque
de tijoleira a fingir o antigo e mobiliário a pedir designação de Vintage, não é
de todo o que já encontrei de genuíno por outros pontos da Ásia onde o comércio
continental ainda se faz sentir com uma força que treme. Começo a temer que
afinal, para lá de fantasmas do genuíno, vá encontrar demónios do consumismo.
No entanto, nem sempre o que é
antigo salva a alma de um local. Noto que, espalhadas pelas paredes e muros, um
artista local chamado Goshaart tirou umas tardes e noites do seu tempo para
enfeitar as ruas e becos com pinturas, muitas delas alusivas a clássicos da
Sétima Arte. Noto uma obsessão com a saga “Alien”, o que só lhe dá crédito na
minha caderneta bancária. Misturando xenomorfos e gatos, esta pessoa lava-me um
bocadinho o mau gosto deixado pela visitar a Meidani e os meus passos não se
perde, mas encontram-se de súbito na zona das termas de Tbilisi. O papel
lendário destas águas já foi referido, mas é apenas quando se visita esta zona
da cidade que se entende o quanto o acto de alapar num tanque de água quente
está enraizado em quem vive e sobrevive na cidade. É tão georgiano quanto um
kachapuri, vender efígies de Estaline ou conduzir sem qualquer respeito pelo
código da estrada (spoiler alert). O nome da capital significa, aliás, “o lugar
quente”. Vir aos banhos é um pouco como apertar a mão à cidade e fazer conversa
de ocasião para não desapontar um anfitrião. É essencial. Quase todas as termas
ficam na mesma zona, o bairro de Abanotubani, colado ao rio e distinguível de
imeditado pelo traço dos seus edifícios termas, casas de tijolo basso encimadas
por uma cúpula onde uma chaminé revela segredos através de fumo. Preenchidas
por buracos que deixam passar a luz, já que tradicionalmente o interior não
possui iluminação artificial, é debaixo de terra que a acção acontece. As águas
vêm de uma fonte que origina num pequeno ribeiro que ladeia o complexo termal,
inserido no meio de outros edifícios locais, e a temperatura ronda os 40 graus.
É um bocadinho como ter Beja durante o Verão a escorrer pelas costas. Embora as
águas tenham propriedades medicinais, uma boa parte dos visitantes actuais
fazem-no pela experiência e pelo ambiente. Mas o seu papel na cultura georgiana,
e costumes, é inegável. Ir às termas é o pretexto de vários romances e poemas
da literatura nacional e até asiática. Estão abertos durante todo o ano, mas é
no Inverno, logicamente, que a procura aumenta. Ao contrário dos banhos mais icónicos
de cidades como Budapeste e Istambul, os de Tbilisi não são spas. As pessoas
não vêm aqui para ser apaparicadas, mas sim por questões de saúde e higiene. A
pessoa em questão despoja-se do vestuário e instala-se ao natural numa sala que
pode ou não se partilhada. A actividade termal tem divisão sexual por questões
de decoro, excepto se optarmos por uma sala privada, onde cada um pode aquecer
com a cara metade sem que ninguém tenha alguma coisa a ver com isso. Se te
sentires um conde abaronado, podes pedir um tratamentozinho medicinal mais
relaxado, proporcionado por um ou uma Mekise. Esta pessoa, especializada em
manusear o teu corpo da mesma forma que eu trato os lençóis da minha cama
quando tenho de enfiá-los na máquina de lavar, uma massagem vigorosa para remover
a pele morta e assim contribuir para a saúde da tua epiderme, que se fores bem
a ver, merece plenamente, pois tem de te aturar durante o dia inteiro.
Não as experimentamos, mas do que
leio de experiências alheias posteriormente, fico arrependido. Observo-as do
exterior e tomamos um caminho que passa por entre os vários complexos de
banhos. Encostada ao espaço, a mesquita de Jumah não toma conta da estranheza
da sua presença, espaço muçulmano em terra de fortes crenças cristãs. É o único
espaço de culto islâmico em Tbilisi, herança sunita do tempo dos Otomanos.
Sofrendo do mesmo processo de construção e reconstrução que marcou todos os
edifícios da cidade, deve a sua sobrevivência à devoção de um milionário azeri
que financiou a sua reconstrução. Misturando arquitectura árabe e neogótica, a
sua fachada em grande arco, cobertas de pequenos azulejos de azul do mar,
combinando com o ribeiro que a separa das termas, convida à entrada. É também
um símbolo de união numa cidade multi-cultural. Que eu saiba, é a única
mesquita no mundo que recebe Sunitas e Xiitas, dois ramos da religião muçulmana
tantas vezes em conflito e recusando entendimentos. Quando a mesquita xiita foi
destruída aquando a construção da ponte Metekhi, estes ficaram sem lugar de
oração. Os Sunitas abriram Jumah aos seus adversários doutrinários e desde
então, ambos os grupos partilham o espaço sem conflito aparente. O caminho
segue o curso de água para longe do rio. Está acimentado e tem claramente um
destino. É aqui que o leviatã do turismo de plástico assoma de novo, entre
gente com vestes tradicionais à procura de um cobre mais através da sua
presença ou de folclore bacoco e ponde carregadas de cadeados, celebrando o
amor e também as falhas de engenharia que um dia provocarão lesões graves a alguém
no leito do ribeiro. Fica evidente qual é o destino desta via sacra penitencial
do vil metal. A alguns metros, vejo uma bonita cascata e como já aprendi
noutras andanças, não há beleza natural que não possa ser estragada por gente
sem outra sensibilidade que não seja o vazio. Um par de jovens espera o turista
com bicharada, um falcão e um macaquinho. Já vi disto no Peru, mas aí usavam
lamas e vicunhas. Fazem-nos sempre sinal a indicar a oportunidade fotográfica.
Damos uma notinha, tiramos uma foto com o bicho, ficamos ambos contentes. Só
que não. Na minha cara, veem um cruzamento estranho entre o doutor House e o
Wolverine e a minha máquina fotográfica vira-se para a água que cai pela rocha.
Três polícias vigiam o espaço, aos quais se junta um quarto. Fico com a ideia
de que este ponto é o perfeito local de ócio para as forças de autoridade
locais e que algures noutros pontos da cidade, criminosos marcam os horários da
sua actividade pelo trânsito dos senhores agentes junto à cascata. Se o fazem,
são espertos. Olho para esta garganta de pedra e imagino, algures em séculos
passados, mulheres lavando aqui a roupa à mão. Do que li na minha pesquisa
prévia, mães de família costumavam passear por aqui como olheiras de futuras
esposas para os seus filhos, numa versão sentimental do jogo Championship
Manager aplicada à actividade matrimonial. Procuravam porventura qualidades
úteis a uma esposa, como a destreza na aplicação de sabão ou a assertividade
quando se curtem lençóis contra calhaus para tirar as nódoas mais rapidamente.
Imagino-as a registar nomes num bloco de notas e a comparar as melhores
contratações possíveis umas com as outras. Tendo em conta os costumes
religiosos locais, duvido que as jogadoras pudessem ser contratadas com opção
de empréstimo.
Depois de passarmos pela sinagoga
de Tbilisi, não muito distante da mesquita a cuja porta estivemos – provando
que estas duas religiões do livro não se largam nem por um bocadinho – a ideia
é batermos à porta de um curioso museu: o das Relações Acabadas. Apropriadamente,
dá-nos uma tampa. Está fechado. O motivo tem menos a ver com o nosso desamor e
mais pela arquitectura do próprio edifício, que conserva muitos traços das
casas civis soviéticas. O uso da madeira, a varanda que sai para o exterior
suportada por vigas, duas assoalhadas com divisões encabeçadas umas por sobre
as outras. Mas depois de a Georgia acabar a sua relação com a URSS, é
apropriado. O projecto foi iniciado por um casal croata, Olinka e Drazen, e é
um dos poucos, talvez único, núcleo museológico cujo espólio reunido depende
totalmente de crowdfunding. Os objectos em exposição são enviados por quem
quiser, se onde quiser, e dizem respeito a esse momento sempre mágico e
inesquecível que é o fim de um relacionamento amoroso. Do exterior, não consigo
vislumbrar qualquer bulldozer, mas acredito que exista por lá um. Pelo menos, é
assim que me costumo sentir quando me partem o coração. As pessoas enviam os
objectos para se livrar da sua presença ou então porque têm um valor
sentimental profundo que sobrevive ao trauma da separação. O amor e o seu fim
são ecuménicos, afinal, um pouco como Tbilisi. Atravessam origens geográficas e
crenças no Além, atravessam diferenças de carácter e disposição, atravessam
barreiras sociais e culturais. Algures, alguém já foi atropelado por esse TGV
que é a decepção emocional. As relações não são apenas amorosas. Podem ser
familiares ou de amizade. O Amor tem muitas formas de se exprimir. Apesar de o
conceito ter começado na Croácia, rapidamente se alargou pelo mundo. Existem
sucursais em São Francisco, Singapura, Istambul, Cidade do Cabo ou Buenos
Aires, para dar alguns exemplos. Descubro mais tarde que o mais recente abriu
em Portugal, na cidade de Aveiro. Talvez porque é fácil afogar a tristeza com
uma caixa de ovos moles; ou porque certos amores e desamores são um pouco como
um moliceiro esburacado, prontinho a repousar no fundo da ria local.
Por entre ruas estreitas e becos
desavindos, onde vários estilos e almas se dardejam e gotejam em trocas de
séculos comuns, andamos um pouco sem rumo. A zona histórica de Tbilisi é de uma
decadência com classe e personalidade, onde até mesmo as ruínas, num orgulho
muito próprio, como quem cai pelas escadas abaixo de fraque e cartola, têm
muito para ver e para reter. A cidade parece desaparecer e morrer, mas com o
sentido de humor de Oscar Wilde que no seu último fôlego, topando o papel de
parede do seu quarto, proclamou: “Bem, um de nós tem de ir embora”. Noutras
cidades, esta morte seria real; mas porque o Turismo é hoje um importante
factor monetário, alguém algures elaborou um projecto que não está isolado: a
certa altura, reparamos que há um extenso conjunto de obras públicas que visa
recuperar alguns edifícios antigos e abandonados. Nalgumas zonas até já se
observam os seus efeitos. O resultado, por uma vez, satisfaz. O respeito pelo
desenho original é notório, a réplica dos elementos decorativos total, o charme
do século XIX não está presente, mas ainda assim faz uma aparição especial. Há
uma limpeza que se deve claramente à modernidade, mas o desenho neo-gótico e os
elementos arabescos e até soviéticos reconhecíveis. Novamente, Tbilisi parece
uma cidade deLorean, viajando no tempo, uma cabine telefónica azul na qual
esperamos encontrar um Doctor Who falando um idioma que ninguém reconhece e
cuja escrita se nos escapa. Há urbes dominadas por monumentos de espanto ou por
uma vida cultural intransigente na sua dinâmica. Outras atraem-nos pelo seu
esmagador tamanho; mas Tbilisi é fascinante nessa sanfona existencial que
propele para o futuro com um motor do passado. O presente não parece bem
existir, é um estado temporário por definição, mas também necessidade. A
capital quer-se bem lá à frente, mas deixar o que a fez para trás. Reconhece o
que a faz forte, mantém o que o visitante procura e os habitantes de
acostumaram a ter e a chamar de seu. Se a ligação às tradições e o
conservadorismo por criar por vezes um ambiente hostil à diferença, por outro
lado mantém este vínculo que vemos nas casas de muitas cores, verdes amarelas e
azuis, que vão surgindo numa das ruas mais antigas da cidade e que desemboca na
Abesadze, uma via que desce quase directamente para a principal rotunda de
Tbilisi.
Não é só o tempo a dar horas,
também a barriga. Descemos a Abesadze, abstraída de trânsito, procurando um
espaço agradável para o nosso primeiro almoço na Georgia. No trajecto, passamos
por uma igreja reconhecidamente católico. Posso ser agnóstico, mas 18 anos de
educação católica não se atiram assim à rua. É o maior templo local desta
confissão religiosa, a Igreja de Nossa Senhora da Assunção., mas a zona onde
nos encontramos tem sido historicamente o bairro católico. Já aqui existiu um
mosteiro dominicano e também uma outra catedral, a da Anunciação, bastião
católico numa terra dominada por muçulmanos. Esta versão foi construída apenas
no século XIX e durou apenas algumas décadas, porque quando a URSS engoliu o
país, o culto foi proibido e a igreja fechada. Apenas em 1993 houve a
reabertura e desde então que vai funcionando. Entramos, apenas com alguma curiosidade.
A decoração é relativamente simples, com alguns candelabros dourados e uma
estátua da Virgem segurando o Menino Jesus e denunciando o orago do templo. Nas
paredes laterais, encontram-se alguns baixo-relevos. Parte do grupo indaga
sobre o que significam. O meu tempo no lado crístico da Força leva-me a
identificar de imediato as estações da Via Sacra. À entrada, Cristo é criança;
mas como em quase tudo o que envolve o Cristianismo, a Morte é o tema central e
forte. Depois de termos caminhado durante toda a manhã, sentamo-nos em
descanso, no silêncio. Contemplo um pouco e respiro mais pausadamente. Penso no
Tempo, no Espaço e nas dimensões de Tbilisi, outras e de outrem. Quero
filosofar e reflectir, quero rasgar o cosmos com grandes conclusões, mas a
minha cabeça é sempre trazida ao seu verdadeiro e derradeiro valor pelo órgão
que verdadeiramente manda nas minhas vontades: o meu estômago. Vai ressonando
ausências. Uma relação acabada com a comida. É necessário procurar um poiso
para acalmá-lo. De outra forma, passarei a tarde a caminhar torto em
desfalecimento.
Apropriadamente, o restaurante
que encontramos é a perfeita reflexão de um desfalecimento. Mas isso é uma
história para a próxima semana.
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