terça-feira, maio 29, 2007
"Zodiac"
A melhor forma de se começar por falar de "Zodiac" é por esclarecer desde já uma coisa: não estamos a falar meramente de um filme, mas sim de uma experiência. Boa ou má. Os filmes de David Fincher têm esse poder no espectador. Fincher é um cineasta com um grande arsenal visual, mas raramente perde de vista (e esse "raramente" é "Fight Club") uma certa tradição clássica no contar de uma história. "Zodiac" é uma ave rara, um objecto de estilo clássico preso em 2007, um foragido dos anos 70 que se instala no nossos dias, com afiliações a filmes dessa década, como "All the president's men" ou, visualmente, "Klute", ambos de Alan J. Pakula, uma das obras preferidas do realizador.
Baseado numa históra verídica, acerca do conhecido caso de um serial-killer que assombrou a área de São Francisco, no final da década de 60 e, segundo algns, início da de 70, o filme segue as investigação feitas por dois lados, a imprensa e a polícia, através de 4 homens, todos eles reais: o jornalista Paul Avery (Robert Downey Jr.), os detectives David Toschi (Mark Ruffalo) e Bill Armstrong (Anthony Edwards) e o cartoonista Robert Graysmith (Jake Gyllenhall), o autor dos dois livros acerca do Zodiac que inspiraram o filme. Seguindo uma linha narrativa contínua, sem cair na tentação de usar flashbacks ou flashforwards, "Zodiac" consegue dar coerência aos esforços separados, e depois conjuntos, do quarteto, ao organizar os eventos (mesmo os que possam estar discutivelmente ligados às acções do Zodiac) por ordem. Parecendo algo de simples, é uma decisão fundamental para um filme que tem duas horas e meia e uma atenção ao detalhe que fará as delícias de qualquer autista. Era a única maneira de um maníaco demiurgo do cinema, que utiliza até os actores como cores de uma paleta com que pinta filmes, como Fincher, levar o projecto a bom porto. Ele sabia-o.
Com este filme, Fincher introduz-nos a um novo campo do seu estilo de filmar: a elegância. Os planos de câmara são suaves, às vezes fixos; quando ele navega na redacção do Chronicle, é como se os nossos olhos deslizassem sobre veludo e não perdessem pitada. Com uma montagem simples e uma direcção de fotografia que segue a máxima Fincher "eu mando em tudo, até na luz", onde ele não mostra sequer um pintelho daquilo que não quer que vejamos e onde parece haver uma linha invisível que delimita onde é que o negro começa e acaba, o realizador norte-americano revela-se mais do que um esteta: de certa forma, ele é um coreógrafo de formas ao serviço da história. Porque para lá de todos estes artifícios artísticos, é o que este filme tem mais: acções e palavras. Muito se fala em "Zodiac". Desviar os olhos do ecrã pode ser o princípio do fim do filme para o espectador. No entanto, Fincher escolhe, propositadamente, não se demorar naquilo que, na vida dos personagens, os desvia da investigação A sua relação com a caça ao assassino é o que mais interessa e todos os pormenores extra que nos são oferecidos servem apenas para sublinhar o grande tema do filme, que não é a análise de serial killers: é sim o efeito que a obsessão, por vezes inexplicável, tem num homem e no seu mundo pessoal. Quando a esposa de Robert Graysmith lhe pergunta porque dedica ele tempo nesta missão, ele responde "Porque mais ninguém o faz", uma razão ao mesmo tempo vaga e certificativa do perfil heróico de um homem que aspira a ser mais do que é. Lembrei-me imediatamente do Roy Neary de "Encontros imediatos de 3º grau".
Boa parte da acção é-nos trazida pelos olhos de David Toschi e Robert Graysmith, sendo por isso fácil destacar Mark Ruffalo e Jake Gyllenhall do elenco. Eles estão muito bem, individualmente e quando contracenam um com o outro, como as duas pessoas mais obcecadas com o Zodiac, nalguns momentos quase ao ponto da insanidade. O momento em que se conhecem, na estreia de "Dirty Harry", cuja trama foi inspirada no caso do Zodiac, é memorável e marca a diferença entre a investigação real e a investigação ficcional: na ficção, em C.S.I, 40 minutos chegam para apanhar o criminoso. Na realidade, nem 40 anos. Para além de, através dos jogos de jurisdição mostrados, haver também essa coisa chamada burocracia...; e os dois actores mostram o desgaste progressivo dos seus personagens e de como vergam a essa evidência da impossibilidade de encontrar uma verdade e encerrar o caso. Na verdade, como espectadores, também queremos essa sensação de closure. E embora o filme dê pistas para uma solução, nunca nos oferece nenhuma de bandeja. É por isso desconfortável. Robert Downey Jr. canaliza este sentimento para a alma auto-destrutiva de Paul Avery, tornando-o num personagem com traços de comic relief, mas dotado de um percurso trágico que o leva a sucumbir às drogas e ao alcoolismo. Como diz a tagline do filme, "Há muitas maneiras de se perder a vida para um serial-killer"...
"Zodiac", dê por onde der, será um dos melhores filmes deste ano. Do que vi até agora, é o melhor, por ser um "JFK", uma das minhas referências, sem delirium tremens. Fincher não cai na tentação de mostrar que é engenhoso (nós já sabemos disso) e cinge-se à história, sem nunca se trair, mostrando sempre dois ou três pormenores de classe: a construção de um edifício, a Transamerica Pyramid, para marcar a passagem do tempo; toda a cena do homicídio de Paul Stine; a conversa entre Graysmith e o suspeito Bob Vaughn, um momento de arrepio puro. de certa maneira, também Fincher se tornou escravo do Zodiac. Mas aqui, com resultados de excelência. Uma experiência de cinema.
E é por isso que mal posso esperar pelo início de 2008: 4ª temporada de Lost e a estreia de "The curious case of Benjamin Button", a próxima opus do mestre. Ou seja, mais uma razão para obcecar.
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