quarta-feira, fevereiro 06, 2008

"Le scaphandre et le papillon"


Uma coisa que quem discute cinema gosta de fazer, mesmo que não se aperceba, é a generalização. Eu faço isso, várias vezes. Quando "Le scapahndre et le papillon" saiu, foi estabelecida uma comparação imediata com "Mar adentro", de Alejandro Amenabar, porque ambos tratam de assuntos semelhantes: homens confinados às suas camas, com pouco controlo sobre o seu corpo, embora a sua mente permaneça saudável. "Mar adentro" quis ir para lá do filme sobre o drama de um homem: é, também, um planfleto sobre o direito à eutanásia, visto que essa era a grande luta do personagem principal do filme, o galego Ramón Sampedro.
No entanto, esqueçam-se de "Mar adentro" quando virem este filme: as semelhanças começam e acabam no confinamento dos dois personagens principais. "Le scaphandre et le papillon" é, antes de mais, um evento multi-cultural: realizado por um norte-americano, Julian Schnabel, escrito pelo inglês Ronald Harwood, fotografado pelo polaco Janusz Kaminsky (habitual director de fotografia de Steven Spielberg) e interpretado pelo francês Mathieu Amalric, é um esforço de colaboração que tenta contar a história de Jean-Dominique Auby, o editor francês da "Elle" que, aos 45 anos, é atirado para a cama por um acidente vascular cerebral e acorda preso dentro do próprio corpo (vítima de um síndroma raro conhecido por "locked-in"), completamente lúcido, mas apenas capaz de mexer o olho direito. O filme não escolhe caminhos fáceis: podia ter dado uma grande volta, mostrando o que passava exteriormente a Auby, com os médicos, a família, os amigos, o impacto que este evento tem neles. Mas não: tudo o que vemos é apenas e só a partir da perspectva de Auby; e isto eleva o filme relativamente a "Mar adentro", na minha opinião. Desenrolando-se em duas dimensões (a presente, dentro do hospital, e as memórias da vida de Auby antes do acidente), o filme traça-nos o retrato de um homem que enfrenta o que lhe acontece com um estranho estoicismo. Na verdade, o filme é suportado pelo retorcido sentido de humor da personagem principal, que comenta dentro da sua mente o que vê e o que lhe fazem, rindo por vezes de piadas sobre a sua condição, as quais são censuradas pelos que o rodeiam. Somos conquistados pelo espírito deste homem de forma natural, sem grandes gestos de humanidade destinados a obrigar-nos a reconhecê-lo. E desde comentários aos atributos físicos das enfermeiras, até chamar nomes a pessoas que o vêm ver e tratam como um coitadinho, muitas coisas retiram este homem do cliché do "deficiente".
O filme acompanha o processo através do qual Auby tenta quebrar o seu escafandro e comunicar com o mundo, tornando-se numa borboleta (daí a metáfora que dá título à fita.) Julian Schnabel é acima de tudo pintor (o que ajuda a compreender muitas das metáforas visuais que ao longo do filme nos transmitem a sensação de prisão de Auby), e realizador apenas em part-time, e utiliza maioritariamente o ponto de vista do personagem principal para filmar as situações do filme, com piscares de olhos e tudo (que são essenciais para o filme, não revelo porquê), e isto coloca-nos exactamente onde Schnabel quer: presos com Auby. Nada disto soa a chico-espertismo, o que aumenta o seu efeito. Quando chega a hora de mostrar a vida de um Auby normal, o filme escolhe o pai, a família e a amante para o fazer. Ao colocar uma amante, posta em comparação com esposa devota, Schnabel mostra não ter medo de perder o nosso apoio ao personagem, e sabe que nos tem perfeitamente seguros, mas isso dá azoa momentos bastante desconfortáveis para o espectador. Digo isto de uma forma positiva. Mas é na relação com o pai de Auby (interpretado de forma superlativa, embora em poucas cenas, pelo enorme Max von Sydow) que atingimos o coração real deste filme.

Justamente nomeado para os Óscares em diversas categorias que contribuem grandemente para o sucesso do filme (fotografia, montagem e claro, o argumento de Ronald Harwood, clínico, preciso, baseado na obra homónima que Auby ditou apenas com o olho direito), fica a faltar, tavez aquela para melhor filme, ou mesmo melhor actor. O trabalho de Amalric é espantoso, porque ter de concentrar todo o seu esforço interpretativo no olho direito é um trabalho dificílimo.
E nós estamos lá o tempo todo, nesse esforço.

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