O que se segue é o relato de uma doença que me afecta de há tês anos e meio para cá. Embora não seja considerada pelos médicos como incapacitante, sinto que me dificulta a minha vivência do dia-da-dia, seja no concretizar de pequenas tarefas do quotidiano, seja na relação com as pessoas. Ao ínício, não me apercebi da sua gravidade, e muito menos da sua existência, mas quando se tornou inegável o seu efeito destruidor e malicioso na minha pessoa, tive de admitir que estava doente. Pesquisas recentes declararam-na incurável e sinto que nunca a conseguirei vencer realmente. O meu consolo é de que somos muitos, e espero que o meu testemunho possa ajudá-los a encarar a vida com naturalidade, mesmo com este problema. É possível, eu sei que é. Pelo menos, tento convencer-me disso.
O ataque mais recente começou há dois meses, e prolongou-se. Estava ao computador e li uma notícia no site IMDB: a 4ª season de "Lost" estreia a 31 de Janeiro. Imediatamente se apoderou de mim uma euforia semelhante aos estados mais positivos da doença bipolar. A vontade de trepar paredes apenas foi impedida pelo triste facto de que não sou o Homem-Aranha; e estive a ligeiros segundos de me sentir verdadeiramente feliz. Aliás, foi esse o momento em que me apercebi, para lá de qualquer outra explicação, que o mal dormente despertara novamente e estava a ter um ataque avassalador e impiedoso da Lostomania
Ao início, aqueles à minha volta julgaram que eu estava a alarmar-me por nada. Há uma piada recorrente sobre mim referindo-se à minha hipocondria. "Quantas doenças já tiveste tu nos últimos anos? Ele foi o sarampo Green Day; ele foi a Indianacela; ele foi a hepatite Zodiac; tu és uma minha de ouro para a indústria farmacêutica!" No entanto, tiveram de se convencer que estava a falar a sério: dava por mim a meter "Lost" em conversas que não tinham nada a ver com o assunto ("E esta medida do Governo de fechar uma série de maternidades? Acham que os Others podem estar ligados a isto por causa do problema com as mulheres grávidas?"), queria baptizar o meu cão de Locke, em honra de um dos personagens da série; tinha crises semelhantes às de Tourette, onde apodava todos aqueles que não vêem "Lost" de "ceguetas, burros que não sabem o que estão a perder"; ou dizia coisas tão assustadoras como "Prefiro um episódio de "Lost" a uma rapariga."
Procurei ajuda. Tentei arranjar vida fora de "Lost", encontrar-me com pessoas, com raparigas. Tentar voltar a ser um homem normal. Infelizmente, não resultava. Via "Lost" em todo lado e quando tse referia algo da doença, reagia com aspereza. Alguém que disse "Um gajo no outro dia disse que eu era parecida com a Kate do "Lost", foi recebida com um "Mas tu estás doida ou parva? Alguma vez te podias parecer com a Kate???" Embrenhei-me em trabalho, mas começava sempre o meu processo de ter ideias para as tarefas com a pergunta "Mas como é que poderei enfiar "Lost nisto"?"; quis ir para a droga, mas à cabeça vinham-me imagens do Charlie na estação Through the looking glass. Nada me desviava do procesos de auto-destruição que tomava conta de mim.
Foi então que chegou 31 de Janeiro. Estava no auge da doença: suores frios, sobre-excitação, o pensamento de que enquanto eu estava a conduzir, alguém, do outro lado do Atlântico, já estava a saber o que acontecia afinal depis de o Jack comunicar com o navio. Um instinto homicida apoderava-se de mim e colocava em risco qualquer condutor que se cruzasse comigo pelo caminho. Mal cheguei a casa, corri para a sala do computador e deixei um recado ao meu irmão, para que tirasse "Lost" assim que acordasse, como se uma divindade qualquer me tivesse dito aquilo ao ouvido e o mundo acabasse se ele não cumprisse essa tarefa. Mesmo enquanto adormecia, passou-me pela cabeça estar até às tantas à espera que alguém metesse o episódio na net e eu fosse o primeiro em Portugal a tirá-lo e a vê-lo. Mal acordei, nem pensei no pequeno-almoço: estaria já o episódio sacado? Desilusão suicida: não.
Revoravoltas e mais reviravoltas, caminhei para um lado e para o outro, tive visiões messiânicas do Eusébio rejuvenescido 40 anos e mostrando aos jogadores do Benfica como se joga à bola.
No momento, em que realmente senti o episódio nas mãos, a doença estava a cavalgar-me pela sveias e cedi ao seu controlo. Abri o ficheiro, carreguei "Play" e quando ouvi aquela voz familiar a dizer "Previously, on LOST...", estive perto do orgasmo.
O que se passou nas horas seguintes é um borrão na minha cabeça. Quando dei por mim, estava a patinar pela Sá da Bandeira abaixo, com um sombrero na cabeça, todo nu e uma guitarra às costas, gritando "You all everybody! You all everybody!"
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