sábado, agosto 17, 2013

Alapar



O lugar na História pode ser uma poltrona, mas também um arbusto espinhoso; largo como a galáxia de Andrómeda, ou pequenino como a cabeça de alfinete; ou se mora numa enciclopédia, ou simplesmente num papelucho perdido num caderno. No entanto, tenho a certeza de que é a única coisa na minha área de conhecimento que toda a gente quer: sentar-se no cronológico friso com a certeza de que o seu nome ressoa até haver ouvidos com capacidade para escutar. O assento está adequado à medida do nalguedo e amibições de cada um.

No meu caso, ganhei ontem esse lugar à custa de ua relíquia história de que falei aqui há uns tempos: o Ford Escort Boston, o meu bólide intergaláctico na onda de estrelas universal que é a minha vida. Louvei a sua classe e presença, resistência, robustez e fidelidade, mas alertei que, por muito que me custasse, o seu tempo estava a chegar ao fim. Embora se batesse como um resistente contra esse nazi malévolo que é a decadência, a força de vontade (e da mecânica) tem os seus limites. Consciente disso, não me nego a levá-lo para voltinhas, principalmente quando essas voltinhas são aventuras enormes e pedem um veiculo à altura. ou seja, algo que possa levar uns toques sem ninguém se importar. Aí, ele asusme o papel principal, e entrega-se à sua missão. No entanto, também claudica, e foi isso que aconteceu em Cerdeira, concelho de Arganil: numa marcha a ré inclinada, a sua embraiagem demonstrou que a terceira idade automóvel também inclui falta de potência, e sem Viagra que me valesse, bem tentei, mas não havia maneira, entre mão no travão e pé na tábua, de tirar dali o Boston celta. Maus estacionamentos originados por anos de emigração em França não me ajudavam; foi então que se escutou "Eu já fui taxista em Lisboa e vou tirá-lo daí". Ser taxista em Lisboa não é uma garantia de segurança quando toca a manobras, precisamente o contrário. É como sofrer de apendicite e ouvir "Eu aprendi umas coisas com o Jack, o estripador: sossegue!" Surgindo um obstáculo na forma de uma mulher de andarilho, o expedito indivíduo soltou um agradável "Sai da frente, ó coxa", e rapidamente se dispôs a servir de meu ponto de referência. Devia prescindir do espelho e concentrar a minha atenção nas suas mãos. Este Luís de Matos da calçada de paralelo contorcia-se e girava nas suas instruções, como se o meu Ford fosse um leão, e estive para alertá-lo que o meu carro não era um Peugeot.

Ora, enquanto o drama se espalha, assomam cabeças à janela, como pássaros que, estando escondidos numa árvore, vêem milho no chão. Na rua, há plateia; de becos saltam jovens que correm e vêm assistir a este combate hercúleo entre um automóvel e as leis da Física newtoniana. Idosos e novos, todos querem ver, e comentar. O suposto taxista recebe apoio moral da mulher, que garante aos restantes que o marido é motorista da Carreira, muito bom. Eu só espero que ele não conduza da maneira como me dá indicações. Não duvidando do talento do senhor, e lutando para defraudar quem assistia ao show de roda, deitei uma olhada ao meu espelho e calculando A + B menos C (de choque) lá manobrei o carro de forma a virar o bico ao prego. Então o Escort encheu as válvulas com a centelha que ainda lhe restava e salvou uma situação embaraçosa. Agradeci ao controlador de tráfego rural e escutei palmas. Tomei a consciência de que eu era o evento mais excitante que aquela aldeia assistia nos últimos tempos, e seria tema de conversas durante dias, marcando assim, com um cheiro estonteante a embraiagem, o meu lugar no panteão da Cerdeira. Netos ouvirão um dia a história do patego que não conseguiu tirar um carro em marcha atrás. Serei descrito como uma sombra dentro do carro e um poço de suor com pernas, e o meu carro será descrito como um chaço inútil. Mas terei dado, dentro da minha limitação como indivíduo, vida à História, que dizem estar pela hora da morte. Uma história é parte da História, e sentado no banco de condutor, tomei o meu lugar na da Cerdeira.

Resta dizer que depois me fui, passear. O carro deu boa conta de si, e quando voltei a passar pela Cerdeira, um outro andarilho atravessou-se-me à frente sem aviso. Quase lhe chamei coxa, mas depois lembrei-me de que o meu passado como taxista em Lisboa era nulo.


1 comentário:

Joana Speranza disse...

Já pensavas em escrever um livro sobre as aventuras do teu Ford!ele merece essa consideração!