quarta-feira, fevereiro 26, 2014

Divenire


Fiz meu o sonho de um amigo, o Cruz, e na verdade fui egoísta, porque também era amigo do sonho. A ideia era subir um rochedo, por nenhum outro motivo que ver acender o interruptor que se esconde debaixo do horizonte, lançando o beijo com que o Sol se volta a apaixonar pela Terra, reeditando um namoro eterno que se repete e nos apaixona também nesse tango que luz e sombra dançam. Onde muitos vêem direcções, eu prefiro ver sentidos, e o Cântaro Magro era o que me fazia sentido. Sentar-me no seu topo, como quem domina uma besta indomável; dormir no seu dorso debaixo de um cobertor de breu e estrelas, com a música das esferas em repeat e aguardar por esse momento que nos relembra porque é que acordar e ressuscitar são primos direitos, embora em graus diferentes. O sonho do amigo não era esse, mas o meu sim, e por isso digo que é egoísta esta intenção de tomar para mim as intenções de outros. Quando todos somos humanos, há sempre um chão comum, e todos pisamos esse chão do maravilhamento, de abrir a boca ao espectáculo do mundo.

Outros sonharam também, e todos partimos. Gordo era o sonho, mas o Cântaro que o guardava num cofre dizia-se Magro, o que me parece apropriado, visto que subi-lo é um bom programa de dieta. Mas chamava-nos um engodo curvilíneo e rochoso, nas bordas do Cântaro. Os primeiros homens construíram monumentos para honrar os deuses, e todos esses deuses eram preenchidos pelos elementos que os rodeavam: as montanhas, os astros, as paisagens que esmagam e abismam, e nos colocam a soberba no nosso devido lugar. Esta ideia de ser menos do que somos surgiu do bom senso: se este bisonte em forma de calhau é tão maior do que eu, como posso questioná-lo? E subir montanhas tornou-se na prova definitiva de que estávamos prontos para ser mais do que menos. Uma lenda diz que o verdadeiro espírito do Renascimento começou quando o italiano Petrarca alcançou o cume do Mont Ventoux só para saber o que estava do outro lado. Como se conquistar aquele macio rochoso e ermo marcasse a emancipação do Homem. As nossas intenções era bem mais prosaicas, mas revestidas daquele lirismo que enche quem se enamora das altitudes; e todos os que ali estávamos tínhamos uma relação platónica com o desafio de trepar e de subir. Podem dizer que os motivos são caches, mas é mentira, é sempre mentira. Sobem-se montes e penedos para regressarmos ao que já fomos, e mesmo que digam que o que foi não volta a ser, sabe-se bem que se pode ser, sempre.


Alcançado o topo, eis o esplendor no granito; e ao longe, o horizonte queimava em chamas que se desvanecem no turno da Noite. Outra coisa não há a fazer senão sentar e a única dúvida é se abrimos os olhos para tudo engolir, ou os fechamos para tudo absorver. Qualquer uma das opções é gourmet, mas nenhuma delas substitui duas latas de atum: a cabeça adora o Ideal, mas o estômago é bem mais amigo das proteínas do que dessas côdeas etéreas. Distraímos o vento cortante debaixo de um rebordo de calhau, entre cartas e paleio, e quando a hora do lobo chegou, cada um recolheu à sua toca e puxou o fecho éclair. A autoestrada celeste estava congestionada, mas entre tantos veículos parados, alguns aceleras cadentes brindavam quem contemplava com ultrapassagens à velocidade da luz, a mesma que marcava o compasso do meu coração. Tantas vezes sinto que o meu corpo é incapaz de conter a beleza do mundo, e nessa noite, enquanto puxava o sono com uma guita, era isso que berrava em mim. Olhos bem abertos, deixando entrar tudo, com Ludovico Einaudi nos ouvidos, num lapso de tempo onde se vê passar o infinito em segundos. As estrelas são tantas que parecem poeira, e a poeira que se desvanece devia sumir, mas não: fica em cada um de nós, nas frinchas das memórias, e só pode ser sacudida por um fenómeno tão poderoso quanto o Universo, o Tempo. No entanto, naquela noite, porque o Sonho era maior, tínhamos quase a certeza de vencer o Tempo.


Quando regressámos do outro lado do sono, as cinco e meia marcavam o compasso de espera. O Cruz abeirava-se do Cântaro como um esfaimado se acerca de uma mesa de banquete, e ao longe, os tons cada vez mais alaranjados do horizonte anunciavam o que pressentíamos: era o momento de começar o romance. Demora o seu tempo, mas vê-se um globo de luz a flutuar atrás daquela linha, como se tivesse sido largado de uma qualquer mão invisível. Vai subindo, e os recortes das montanhas gradualmente nítidos. Destapa-se um lençol, e muda-se a cama de rocha, onde as pregas e as engelhas são os montes e montanhas e cântaros e fragões. O frio que nos esboça a face em traços cortantes é apagado e nasce, num desenho aconchegado, o calor do entusiasmo que provoca o confronto com essa fonte de vida que renova a sua visita e o seu amor pela parceira onde temos os pés: um planeta que nos esmaga e no entanto torna a nossa existência leve, com mais sentido do que direcções. Ali, em pé, no topo do Cântaro, olhei o Sol e não tive medo da vida, naqueles minutos. Não senti que havia um depois, apenas que existia um agora, e que vivê-lo era a única coisa que interessava. Caches e eventos para segundo plano, agora existíamos eu e o Sol. Guardei várias fotos na máquina, e na minha cabeça um retrato impresso a fogo: eu, a Montanha e aquele que nos abençoou; e quando meti a mochila às costas e abandonei o topo, senti-me mais alto do que uma Lua em Quarto Crescente.

1 comentário:

Post-It disse...

Há qualquer coisa nesses pedregulhos milenares, há... E que lindo é o céu visto daí, à noite!
:)