terça-feira, outubro 27, 2015

A caixa



Era o tipo da caixa, nem sequer lhe chamávamos homem, porque a caixa nem parecia séria e ser homem é diferente de ser tipo, tipo é mais galhofeiro, informal e mais macho do que homem. Ele gostava de ser macho, e quando lhe chamávamos "o tipo", até gingava as ancas, mesmo que não trouxesse a caixa. Quando a trazia, não se falava de outro assunto, pois o assunto era mesmo ele nunca querer falar do que ela continha. Apertávamos, insistíamos, mas apesar de termos desfiado vinte anos juntos, em novelos vários de peripécias e  recuos avançando no tempo, jamais a caixa se abriu. O respeito de não ceder ao roubo existia, mas de qualquer forma, o Carlos era uma dessas aberrações da sociedade, daqueles que conhecem o universo inteiro da saga "Star wars", mas aprendendo-o nos intervalos dos jogos de rugby da equipa universitária. Cabeça de nerd em corpo de segurança; imaginam então porque é que a única maneira de lhe vermos a caixa era mesmo convencendo-o com palavrinhas melosas, ou piadinhas merdosas. Não dava, nem bêbado, que o Carlos nunca se embebedava, bebia na proporção das marés, e ainda assim sempre em preia-mar. Com caixa ou sem caixa, encaixava as investidas, bloqueava todos aqueles que, passando os dias a pensar fora da caixa, no fundo só queriam saber o que se encontrava dentro da mesma.

Éramos crianças, algures pela quarta classe, e conheci-o no recreio, cada um fingia que era um Transformer. Todos queriam ser o Optimus Prime, mas eu e ele jogámos par ou ímpar pela posse do Moscardo. Ganhou ele, e também ganhei eu. Nem sei se alguma vez nos tratámos por amigos, era algo tão natural quanto indizível, apenas existia e era. Morávamos em cantos diferentes da aldeia, mas à vez, semana minha ou semana
dele, acompanhávamos o outro em caminhada e regressávamos pelo mesmo trajecto, de vez em quando não era bem porque pela Primavera os pomares eram demasiado tentadores. No final desse ano, o Carlos falou-me pela primeira vez da caixa, e pode-se pensar que não me esqueci disso, mas acabei por apenas lembrá-lo no ano passado, porque tal aconteceu enquanto comíamos laranjas, no pomar da dona Adelaide, uma senhora já velha, mas não era nem vesga, nem avessa a usar armas de fogo, uma combinação que junta com a tendência para carregar caçadeiras com cartuchos de sal, pode ser abrasador de várias maneiras, e eu estava precisamente a preparar um sumo de laranja, e o olfacto, num arremesso proustiano, devolveu-me a magia do momento em que o meu amigo me revelou um nariz do seu mundo, uma caixa de madeira construída por um avô carpinteiro. Não era muito grande, pelos gestos não seria maior do que um microondas, mas jurava-me o Carlos que o avô arranjara forma de não lhe dar fundo, e ainda assim, nada caía da mesma. Era impossível, e se eu achava isso no vôo imaginário da infância, em adulto muito menos. Mas esta revelação no meio de uma séria laranja foi tão vincada que os anos seguintes levaram-se pela curiosidade em brasa que me afogueava quando pensava naquela espécie de El Dorado: uma simples caixa, ou então a maior invenção desde a mentira.

Ontem, recebi uma encomenda que não pedi. O remetente era o irmão do Carlos, e explicava, num papelinho colado à tampa, que o irmão decidira procurar algo mais, cansara-se da vida, mas sem pressa das intermitências da morte, pegou em si e arrumou-se na distância entre o conforto e o risco. Por outras palavras, decidiu alistar-se numa tripulação de pesca do bacalhau e aprender um ofício novo. Não estranhei: o Carlos descontava a satisfação e era o presidente do clube de fãs do inesperado (era mesmo, fez uns cartões e tudo, e eu era o sócio número 2, até deixar de pagar as quotas, não por falta de dinheiro, mas sim de imaginação. Fora mais ou menos por aí que deixáramos de falar tantas vezes). Conhecia bem o Carlos, ainda assim: na prática, se ele se queria perder pelos mares da Terra Nova, era como se tivesse morrido. Ainda que o seu corpo se voltasse a materializar no meu olhar, o homem seria outro, e o outro é quase sempre desconhecido. Isso alegrava-me: ia adorar reconhecê-lo, reaprofundá-lo, se ele ainda quisesse aceitar no seu barco um peixe de águas superficiais como eu. No pacote então, desfeito o cartão, socou-me um objecto: era uma caixa de madeira. Estava riscada e amassada, andara aos rebolões e tombos algures, mas inteira, resistente, olhava-me sem olhos. O irmão explicou na carta que passando a ser alguém que não Carlos, as suas posses passavam a ser passas para uns e para outros. A mim, calhara-me a caixa. tanto perguntara e insistira no mistério que agora fazia parte dele. Nos meus dedos, após uma hesitação, a caixa parecia poder de facto conter tudo lá dentro. Deixei que o momento se instalasse e quando quis abri-la, hesitei. Porquê? Num mundo onde tudo se conhece, ou dizem, eu pelo menos sei tão pouco, à minha frente aparecera um imponderável. As perguntas valem mais do que as respostas, que são como um vento que desfaz torres de sal que abrilhantam o horizonte, lhe dão brilho e os tons irreais do fenómeno. Depois de tantos anos a imaginar vários cenários de descoberta e de resolução, parecia-me demasiado prosaico acabar assim com um encanto que me prendera quando tudo o mais da vida se banaliza, uma simples caixa, um complexo planeta de obscuridades luzidias. Onde sempre houve curiosidade, perguntava agora um medo informações de renda e morada.

O pequeno dilema dramático foi interrompido pelo meu filho de cinco anos. O Tiago, vendo-me com a caixa na mão e uma indecisão franzida, apontou para caixa. "O que é?", e era uma caixa, não estava ele a ver bem? "Papá, sim, uma caixa, mas o que faz? O que tem?", e apanhei-me em flagrante delito carlista, fechando as trancas ao meu próprio segredo, e tornando-me mais mágico do que aqueles olhinhos curiosos, coloquei a caixa na mesma, por detrás de mim, e disse que lá estavam o mundo e as estrelas, e que se arrumássemos tudo como deve ser, talvez coubesse o resto do Universo, mas apenas empilhado. Desconfiou primeiro, riu no gesto seguinte e com o dedinho indicador, deu a sua opinião sobre a minha sanidade mental. Coçando a cabecinha, encolheu os ombros. "Já sei, é o nosso jogo. Se eu ganhar, abres a caixa. Se eu perder, a caixa é tua, mas eu gosto mais de ti." Saiu então a correr, e eu apertei a caixa contra o meu peito, como se aquele momento com uma pequena versão de mim pudesse entrar na caixa sem eu quebrar um projecto do meu grande amigo. Um trabalho de uma vida inteira, feito por alguém com mais vidas dentro de si. Mas os seus mundos cabiam todos nas seis paredes de um cubo de madeira.

Quantas não caberão então numa esfera tão gigante de gás e solo.

sábado, outubro 24, 2015

Viagens



Havia uma vida sem ti, antes de tomares nas mãos as minhas arestas para uma vida inteira a poli-las, mas quando surgiste, meio baça, meio apelo irresistível, trazias contigo um sabor a eternidade, que não só se enrolou na ponta da minha língua, mas tomou conta de toda a minha boca ainda antes de nos beijarmos. Gostar de ti tornou-se culinário, festim onde me multipliquei em vários para não te dissipar no mundo. A refeição entrou na sua fase digestiva quando nos contaram que tinhas prazo de validade, eram seis meses, um pouco mais se te condimentasses devidamente, e nem arrefecemos esses meses. apenas deixámos ao lume, sem queimar, sem agarrar ao tacho, mas com as nossas mãos presas a cada um dos teus esgares, quando agulhas se tornaram de súbito uma pele que se enxerta, e as tuas células conheceram a morte, destruidora de mundos, na promessa de que te recriaria para este. Uma segunda vida para mim não era opção, e mesmo com a saudável certeza de não estar sequer nesse buraco, adoeci contigo, porque não tinha sequer outra maneira de me sentar, ou de te tocar, sem que de alguma forma o meu corpo não dançasse na lógica da tua presença. Não te vi morrer, mas sim evaporar-te, e os meus olhos prenderam esse vapor nas noites e nas manhãs em que também morri, na antecâmara lenta do inevitável. Dez anos foram o melhor dos mundos possíveis, mas em menos de um, o impossível chegou. Acordei segundos antes de os teus músculos se apertarem por fim no volante, e antes disso dormia sobre ti, e sonhava com comboios e apeadeiros e linhas férreas, e em ti a galgar tudo isso sem bitola marcada. Quando chegámos, partiste. Foi a única ocasião, desde que me disseste olá pela primeira vez, que te quis agarrar e não pude de facto.

A dor não é um segundo tu, porque assim, serias uma legião. Virias em multidão quando ardeste  num forno, surgirias como um exército justificado no cabo da Roca, quando voaste em muitos menos pedaços do que metros quadrados que em mim habitavas e engolirias todos os dias os meus passos, as minhas deambulações, os momentos em que o meu contorno se sentava à secretária, mas o lampejo  que é eu de facto , e não o desenho de uma caixa com duas pernas, escapava pelas frinchas do visível. Eras toda a gente, até porque eu falava com ninguém e eu não me importava. De certa forma, tornei-me radioactivo, num dia quase literalmente, quando liguei para um daqueles programas de rádio nocturnos, anunciando-me Jorge, quando me chamo Paulo, e num momento de fraqueza embaraçosa, passei um programa curto de discos pedidos sob a égide do luto. Disse tudo aquilo com que gozámos, os lugares comuns, os clichés: que não sabia viver sem ti, que levaste uma parte de mim, que quando morreste morri também, e tudo era verdade, mas mentiras, porque um pecado de ocasião é não querer ser a multidão. A minha dor era única, e é sempre, tu eras diferente de todas, nós éramos o mundo, e como podia haver comparação, páreo de tudo aquilo que fomos e que nos fizemos, de todas as camas e bancos de jardim. todas as árvores e praias, todos os olhares e barulhos, da esplêndida oitava maravilha do mundo moderno que eram as nossas mãos dadas, e chão para percorrer. Talvez tenha chorado, estou mais certo agora, porque quando terminei este monólogo eterno, o locutor eternizou-o ainda mais com o silêncio de quem se procura para encontrar o outro numa frase certeira. Falhou em miséria. "Sabe, a vida é feita disso, de perder e de ganhar", e se eu recebesse dinheiro por cada vez que ouvi uma banalidade depois não te ter conseguido agarrar quando mais importava, poderia forrar a tua campa a ouro.

Seis frases feitas depois, desliguei. Pedi que te dedicassem a faixa um daquele álbum dos Radiohead com miúdo no título, ou algo do género, só para disfarçar, e depois de uma deriva de quase um ano, encalhei no ilhéu de mim. Estendido no sofá, revi-me e de como estavas mais viva do que eu, o que era ridículo e verdadeiro, cada um à sua vez, dependendo do lado para o qual me virava no sofá. Gostava de dizer que a casa cheirava a ti, sempre, mas eu estava tão imerso na dor que já nem te lembrava ao certo, apenas uma pequena fumaça, uma comichão tua no meu peito, amplificada e crescida, maior do que eu, do que a jaula das minhas costelas, até do que o meu coração, julgado elefantino, Na verdade, apesar de eu estar, tudo o mais tinha tirado longas férias da minha presença. Era a minha presença, não havia mais, e depois de ter chorado a tua essência a um parolo da rádio, a um labrego que nem conhecia, um tal que quando pedi Radiohead me sugeriu que te passasse antes Enya, a sentimentalona irlandesa, é que descobri finalmente o rumo: precisava de me reapaixonar , para depois acabar contigo da forma mais desastrosa possível. Era obrigatório conhecer quem me completava, para nos destruir e reconstruir com toda a vontade de não ser um túmulo. A certeza era esta: no dia em que te enterrei, fui contigo, dentro daquele caixão, e estava na altura de reocupar o meu lugar, e o teu deixado vazio, para que não morresses por fim completamente. Pensei que se vivesse, que se te revivesse, te perderia para entender como o mundo fica melhor pela presença de quem, não estando, faz parte da arquitectura táctil do nosso coração, e seria eu de novo, e um eu capaz de dar várias oportunidades a uma vida além da morte, túneis de luz, o Paraíso. A tua memória seria então mais luz do que túnel, mas guardando-te, libertava-me.

Apareceu então na minha mente a nossa primeira viagem, uma travessia alpina a pé, em dez dias. Peguei num caderno e anotei todos os lugares que fizemos nossos e arrumámos em mochilas, um tabuleiro terreno de onde trouxemos pedras para criar um pequeno mundo só nosso, não esférico, mas sim um paralelepípedo. Foram algumas horas a escrever nomes numa lengalenga de persistência da recordação. Lista finda, nova parte do plano: começar um projecto, nessa mesma noite, sem voltar atrás. O destino era Barcelona, onde arquitectámos toda a uma cidade para nosso Gaudio. Roubei a mim mesmo uma foto tua, coloquei-a num envelope e fiz uma promessa, escrita e assinada com o que sobrava do teu perfume, de que te revisitaria, e levava na mochila a caixa que continha o nosso mundo, e devolveria à proveniência todas essas rochas que eram mais tu do que aquela casa, pois foram escolhidas pela evidência do teu entusiasmo. Fotografia, caixa e comigo, uma máquina fotográfica. Quero fixar-me novamente nos cenários e nas paisagens, fazer de conta que volto a existir.

Dois anos depois disso, estou sozinho, mas não só. Ainda tenho umas dez pedras, e as que deixei para trás foram sementes, e deram-me sabores que se enrolaram na ponta da minha língua, nos anéis dos meus cabelos. Protegem-me, cobrem-me, e são tu, embora sejam mais eu. Com o tempo, serei meu, e tu uma propriedade comutativa dos afectos.

Amanhã, vou deixar-te num glaciar islandês. Só amanhã. Hoje, dormes comigo, outra vez.

terça-feira, outubro 20, 2015

A casa da árvore



Voltei à casa da árvore quase trinta anos depois. No cimo do carvalho, a 100 passos do regato onde eu e os meus irmãos descobrimos o vigor da pele depois de um banho frio, um amontoado de tábuas, ainda reconhecíveis como paredes e telhado. Nem sei bem como é possível, a casa sustentava-se mais em pregos do que ambição. Nós os três, sem nada para fazer e demasiado bicho carpinteiro a roer-nos, demos por nós num Verão sem nada mais do que tempo livre. O pai decidira fazer férias um mês mais tarde nesse ano, para dar tempo a que a minha mãe regressasse a si depois de alguns meses no sanatório, e então, numa conversa ao jantar, alimentou-nos essa ideia. Um projecto nosso, uma marca dos Coutinhos no espaço. Éramos gabarolas, e entre os nossos olhares passaram momentos de peito feito, de chegarmos no ano seguinte à escola e contarmos como, com aquelas mãos minúsculas e aqueles braços que mal passavam por ramos de pinheiro manso, ergueramos algo que se visse. Na manhã seguinte, o pai comprou-nos pregos, nós mandámos umas árvores mais pequenas abaixo e conseguimos que um tio nosso, que vivia numa quinta próxima, desencanasse umas tábuas, depois de ter mandado uma cerca abaixo. Em troca, ficámos de lhe fazer a vindima seguinte; o míldio ajudou-nos, mas por outro lado não, já que as vinhas eram tudo o que ele possuía. Quando se tentou matar uns meses depois, deu-me pena, e o meu irmão mais novo, só porque sim e porque de nós era aquele que mais jeito tinha para ser humano, voltou a plantar o vinhedo. Seguimo-lo, e depois também mais gente, e sempre pensei como um caminho quase directo para a morte pode voltar a gerar vida, ali, quando um homem fracassa até na vontade de morrer, quando volta a encontrar exactamente aquilo que perdeu, só porque o ponto do fundo pode ser a maior bóia para voltar à tona.

Três semanas passaram, e quase fechámos o tecto. Em todo esse tempo, o meu pai serviu de mesinha de cabeceira à sofreguidão da minha mãe. Todas as noites nos perguntava como ia o "Taj Mahal de Macedros", e eu nem sabia o que era o Taj Mahal, mas o meu irmão mais velho, que de vez em quando lia as Selecções do Reader's Digest, ria e sabia que o meu pai, meio a brincar, nos dava o seu orgulho como uma sobremesa que satisfaz mais do que tudo o resto. Contávamos-lhe as histórias, os dedos martelados, as esquadrias mal tiradas (quando nem sabíamos o que era), o cheiro das folhas de carvalho, os pequenos pormenores que só quem sobe uma árvore consegue trazer a tiracolo. Só depois dessas três semanas o meu pai decidiu ver como a casa se levantava pelos nossos braços. Esperava sorrisos e piadas, mas ele apenas mostrou preocupação. Suspirou seriamente "Não sabia que era esta árvore", e contou então que a floresta era assombrada, que durante a noite se ouviam gemidos e o seu pai contara-lhe que aquela árvore atraía imagens e espectros, luzes e sombras, todo o tipo de malapatas que não devem visitar os garotos. Era ele ainda mais menino do que nós quando quatro pessoas deram por si penduradas pelo pescoço no mesmo ramo onde a nossa habitação se erguia. Na verdade, fora eu quem escolher a localização, era a minha responsabilidade no projecto, e senti-me culpado, sem que o meu pai soubesse. Os meus irmãos notaram-nos, e aproximaram-se, como se por acaso a maldição subisse pelas raízes daquela esplêndida planta, seria para todos nós, não para mim, e o meu pai continuou a contar que ninguém sabia quem eram, dois deles tinham até aspecto de estrangeiros, louros e russos, talvez de Leste, e um mais aportuguesado, mas se calhar também estrangeiro, estava marcado de cruzes no peito. Ele não vira, mas o seu pai sim, e o pai de seu pai, e desde então que aquelas matas navegavam durante as noites, o vendo empurrando ramos e folhas, mas colando em figuras invisíveis que se apresentavam aos sentidos. Ele nunca vira, mas quando à noite ficava com o pai a vigiar, nas épocas em que os lobos desciam  aos vales, cobria-o um frio que não soprava dos termómetros e era outra bolina qualquer.

Mas os tempos passavam, e se calhar, disse-nos, o Passado é como as linhas de lápis que trazíamos da escola, em contas mal multiplicadas: usando a borracha, desaparece, e ele via na nossa vontade de fazer de uma árvore um cadafalso da preguiça o estertor final de quem não alcançara descanso de forma natural. Nas tardes seguintes, veio ajudar-nos a acabar a obra. A mãe estava um pouco melhor, e à medida que precisou menos da botija, sem que a arrastasse entre solavancos de um mundo desnivelado, ele certificou-se que nem os lobos, nem qualquer outro sinal do mundo que nos cobre vinha para nos buscar. Eu preguei no último prego, e mesmo no dia em que a mãe finalmente conseguiu sentar-se de novo na terra em que chegámos a temer vê-la como decoração de pedra. Com tábuas, fizemos uma escada, e ela pintou os primeiros degraus, ao contrário do que o meu pai queria, temendo que o cheiro a tinta fosse demasiado para os seus mirrados pulmões. Sempre pensei que eu e os meus irmãos éramos uma pequena reserva de oxigénio, e que se ela melhorara fora para nos beijar a testa uma e outra vez, como quem procura na pele de quem mais ama a fotossíntese do corpo. Ela chegou a dormir várias noites naquele chão torto, tão torto quanto o seu sorriso. Não sei se espantámos os fantasmas, mas hoje, olhando para a casa que se sustém, conto para mim a história de quem se aguenta em pé e em pé sustém almas penadas e caídas. Quando subi, tantos anos depois, à casa, aguentava-se, e eu até tinha mais uns quarenta ou cinquenta quilos. As madeiras estalaram, mas nem temi cair. Sentei-me e na palma da mão, um frio agudo encharcou-me os ossos, como se um regato que me banhou em criança jorrasse a partir da madeira em adulto. Sem saber porquê, fechei os olhos, e vi a minha mãe em filme nas minhas pálpebras, e o que fizéramos naquelas férias depois da casa, de como ela e o meu pai, numa floresta amaldiçoada, tinham o condão de tornar três garotos em cavaleiros e feiticeiros, e de como uma casa da árvore pode ser feita de mãos, e de sangue em corrente. Cada canto tinha as nossas assinaturas,e talvez por isso a casa nunca se corrompera. Porque se dos destroços não pudesse sair uma vitória, a matéria era um contínuo desperdício; e nas minhas contas, quatro dependurados perdem para cinco perfeitos sempre em pé.

Ainda que um deles tivesse que passar o Verão a comer com a mão esquerda à conta de três ossos tortos nos dedos da mão direita. Mas isso seria contar a desastrosa relação que um martelo tem com a minha anatomia, e seria uma história bem maior do que esta.

domingo, outubro 18, 2015

Colectâneas I



Da lista de coisas que se escrevem quando não somos nós, ou o somos em excesso:

O meu contorno levita sobre ti, como se o desejo de ser em ti me desse poderes de me desencarnar e surgir em teu redor, como uma lua em órbita num delicioso planeta em com a tua forma. Pouso na tua boca, e faço-me um verbo: ser. Nesse momento, deixo de existir, mas vivo finalmente em ti.

Sonhei ontem que na floresta, nos rumores dos ramos, sopravam palavras que te tentavam apanhar, mas sem nunca sequer criar raízes em ti. Estavas muito acima delas, e eu muito abaixo das raízes, e só te entrevia em frases curtas e sem sentido, e na tua mão, seguravas um livro onde o teu corpo desaparecia, um livro verde e castanho que luzia quando aberto, menos que o teu sorriso, muito menos que os teus olhos, mas mais do que os teus cabelos, que se confundiam com o vento e com a terra. Desapareceste para dentro do livro, e perdi a capacidade de falar. Os ramos calaram-se então, e pediram desculpa deixando cair as folhas sobre mim como se aconchega uma criança que perdeu a inocência. Sem cair, o livro levita e tu voas bem acima do mundo, pois pertences a um espaço do universo onde moram as respostas.

Na bolsa a tiracolo, as palavras vagueiam como medusas. Cada uma delas se prende aos meus dedos, queimando, cheias de veneno, mas também de promessas: juramentos tóxicos. A rubra pele endurecida de tantas frases juntar tira mais um vocábulo, cola com outro, marca o compasso de uma marcha de soldados vagos e inglórios. Batem continência à tua porta, esperam ordens, prontos a ir para a guerra. Quando as bombas caem e se vaporizam, o veneno é para mim, a bolsa um dano colateral. No meu peito, combato uma guerra de trincheiras.

Ontem, perguntaram-me por ti. Não tive resposta, porque desde que te foste que és uma questão. Não lhe satisfiz a sua curiosidade; e assim, o meu coração voltou para debaixo do cobertor, que ainda não era hora de acordar.

Explica-me porque é que a tua cara é a razão pela qual eu desejo que o mundo continue a rodar em torno do seu eixo.


sexta-feira, outubro 09, 2015

A noite



Da teia da memória, pinga a noite na estrada de Unhais. A escuridão chove a partir do olhar, e detrás de um volante, mãos manápulas fixas, o alcatrão é uma cobra traiçoeira. Lembro-me do carro como um mundo, de ti no assento do passageiro a fazer as vezes de Tectónicas de Placas. na verdade, mais de aplacar, o meu coração em destaque. Dormes, e eu, de esperto, faço-me desperto, porque quando deslizas a mecânica do mundo entre curvas, os tremores abanam e estalam. Não quero pensar em mais que não seja ser mais do que o perigo, mas nem consigo alturas há em que quero travar o mundo, e simplesmente deixar que gires assim parada, de me fazer sol em torno de ti e poder encontrar nos teus cabelos a órbita que me traga a Primavera. Não posso parar, é tarde, e quando olho em frente, quando no breu os limites quase fictícios da viagem não surgem, mas evaporam-se mesmo a tempo de reconhecê-los, agarro ainda assim a tua mão. Um certo vento sopra, e na pele desviam-se pálidas imagens do que pode ser. Vão por atalhos, de becos sem saída, e auto-estradas sem fim. Quando param, não têm regresso: o redor sem entrada e sem saída é a única recompensa que conhecem. Como se fosses tão infinita quanto a paisagem, esbatida na ausência de luz.

É como se dormisse e sonhasse, embora não possa sequer fechar os olhos, mas se a tua pele me fizesse sonhar, ali, enquanto divago no que existe e é como se fosse um pensamento que não sonhei, apenas agarrei sem sequer prender, finjo que ontem sonhei. Na floresta, nos rumores dos ramos, sopravam palavras que tentavam apanhar-te, mas sem nunca sequer criar raízes. Estavas muito acima delas, e eu muito abaixo das raízes, e só te entrevia em frases curtas e sem sentido, e na tua mão, seguravas um livro onde o teu corpo desaparecia, um livro verde e castanho que luzia quando aberto, menos que o teu sorriso, muito menos que os teus olhos, mas mais do que os teus cabelos, que se confundiam com o vento e com a terra. Desapareceste para dentro do livro, e perdi a capacidade de falar. Os ramos calaram-se então, e pediram desculpa deixando cair as folhas sobre mim como se aconchega uma criança que perdeu a inocência. Sem cair, o livro levita e tu voas bem acima do mundo, pois pertences a um espaço do universo onde moram as respostas. É impossível prender-nos numa jaula de palavras.

Cheguei a ter medo, de que nem ali estivesses, fosses tão esquiva como aquela noite, e imaginei estar sem ti. Cada dia que passa sem que a tua voz me desfolhe é mais um em que permaneço ilegível, para mim e para as voltas em torno do sol. Não existem palavras, nem sons, nem gramática. Só um borrão em tons de mundo que não posso chamar de dia. Não há tempo, nem razões, nem despertares e muito menos caminhos. Não há desprendimento, nem ressurreição e a existência de outra é miragem numa selva que faz as vezes de deserto. Tudo subtraído, uma constante: só existes tu. O resto é um bocado nem mais, nem menos. Sinto-me um vaso de mal estar, e vem aí a Primavera.

Mas ali, naquela estrada, estamos ambos. Vêem-nos lado a lado, mas de verdade que estamos um no outro. Tu dormes, eu desperto para um mundo onde o teu sono é o meu sonho, e curva e contra-curva, escapo-nos rumo a qualquer lugar menos aquele, de Unhais. Não digas a ninguém, mas ali, estamos além; e mais do que a noite, é na Lua que habitamos.

sexta-feira, outubro 02, 2015

Curto apelo



Não percebo porque é que as pessoas não votam, a sério que não. Aqui há uns tempos, até inventaram que votar dava dinheiro aos partidos, e como tal, chulos da merda, mais valia nem ir. Desconheço até ponto as pessoas sabem que esta é uma pura corrente de manipulação, que a abstenção voluntária favorece os partidos cuja máquina partidária está mais oleada através de caciques e galopins que arregimentam militantes com o único objectivo de colocarem uma cruz num papelinho sem pensarem muito, apenas porque lhe ditam a vontade. O acto de votar é transgressão e um risco, e como risco é bem mais consequente do que fazer surf ou andar de skate. Honestamente, e não o digo de ânimo leve, sinto-me entusiasmado de cada vez que voto, e a perspectiva eventual de não poder fazê-lo por qualquer razão transtorna-me de sobremaneira. È das poucas expressões cívicas que se cumprem, já que existe uma aversão cutânea em muitos a manifestar-se na rua. Vivemos também em tempos onde a simples expressão de uma opinião, se polarizada ou impopular, é vista de lado. Avisam-nos que nos calemos, que nem falemos; votar é um refúgio até desses que teme levantar a voz, pois é dentrod e uma caixa que fica presa essa vontade, trancada e protegida, anónima, mas com a certeza de levar a identidade e expressão de cada um ao mais alto local de poder da Nação.

Por isso, meus leitores e amigos, votem. A sério, votem. Não estejam com tretas ou desculpas, não sejam marrões nem se armem em objectores de consciência. Não se transformem naqueles que fazem do não voto uma justificação para mais tarde proclamarem que nada do que se passa é sua responsabilidade, que não participaram no plebiscito por saberem que não ia dar em nada e tudo ficaria na mesma. É por eles, que não votam, que tudo fica na mesma. Portugal não precisa de vontades caladas: precisa de ti, de mim, de todos os que conhecemos para um simples acto, um mero movimento. Já que estás na cabine de voto, outro pedido: tem imaginação, usa da memória. Lembra-te do que foram estes últimos largos anos, não apenas a legislatura que passou, mm tudo o que te têm tirado e condicionado; e recorda-te principalmente de quatro anos onde usaram e abusaram da desgraça do país para te poderem rebaixar e espezinhar, para colocar taipais na tua vida. Lembra-te dos que emigraram, dos transportes que perdeste, do dinheiro que não mais viste, dos amgos que perderam o emprego, dos teus filhos e sobrinhos que viram a sua escola transformada num laboratório. Se tens memória para as mínimas truculências que levantas com os teus amigos familiares, de certo te recordarás do que suportaste. Pensa fora da caixa, age dentro da caixa.

É só isto.