sexta-feira, outubro 09, 2015
A noite
Da teia da memória, pinga a noite na estrada de Unhais. A escuridão chove a partir do olhar, e detrás de um volante, mãos manápulas fixas, o alcatrão é uma cobra traiçoeira. Lembro-me do carro como um mundo, de ti no assento do passageiro a fazer as vezes de Tectónicas de Placas. na verdade, mais de aplacar, o meu coração em destaque. Dormes, e eu, de esperto, faço-me desperto, porque quando deslizas a mecânica do mundo entre curvas, os tremores abanam e estalam. Não quero pensar em mais que não seja ser mais do que o perigo, mas nem consigo alturas há em que quero travar o mundo, e simplesmente deixar que gires assim parada, de me fazer sol em torno de ti e poder encontrar nos teus cabelos a órbita que me traga a Primavera. Não posso parar, é tarde, e quando olho em frente, quando no breu os limites quase fictícios da viagem não surgem, mas evaporam-se mesmo a tempo de reconhecê-los, agarro ainda assim a tua mão. Um certo vento sopra, e na pele desviam-se pálidas imagens do que pode ser. Vão por atalhos, de becos sem saída, e auto-estradas sem fim. Quando param, não têm regresso: o redor sem entrada e sem saída é a única recompensa que conhecem. Como se fosses tão infinita quanto a paisagem, esbatida na ausência de luz.
É como se dormisse e sonhasse, embora não possa sequer fechar os olhos, mas se a tua pele me fizesse sonhar, ali, enquanto divago no que existe e é como se fosse um pensamento que não sonhei, apenas agarrei sem sequer prender, finjo que ontem sonhei. Na floresta, nos rumores dos ramos, sopravam palavras que tentavam apanhar-te, mas sem nunca sequer criar raízes. Estavas muito acima delas, e eu muito abaixo das raízes, e só te entrevia em frases curtas e sem sentido, e na tua mão, seguravas um livro onde o teu corpo desaparecia, um livro verde e castanho que luzia quando aberto, menos que o teu sorriso, muito menos que os teus olhos, mas mais do que os teus cabelos, que se confundiam com o vento e com a terra. Desapareceste para dentro do livro, e perdi a capacidade de falar. Os ramos calaram-se então, e pediram desculpa deixando cair as folhas sobre mim como se aconchega uma criança que perdeu a inocência. Sem cair, o livro levita e tu voas bem acima do mundo, pois pertences a um espaço do universo onde moram as respostas. É impossível prender-nos numa jaula de palavras.
Cheguei a ter medo, de que nem ali estivesses, fosses tão esquiva como aquela noite, e imaginei estar sem ti. Cada dia que passa sem que a tua voz me desfolhe é mais um em que permaneço ilegível, para mim e para as voltas em torno do sol. Não existem palavras, nem sons, nem gramática. Só um borrão em tons de mundo que não posso chamar de dia. Não há tempo, nem razões, nem despertares e muito menos caminhos. Não há desprendimento, nem ressurreição e a existência de outra é miragem numa selva que faz as vezes de deserto. Tudo subtraído, uma constante: só existes tu. O resto é um bocado nem mais, nem menos. Sinto-me um vaso de mal estar, e vem aí a Primavera.
Mas ali, naquela estrada, estamos ambos. Vêem-nos lado a lado, mas de verdade que estamos um no outro. Tu dormes, eu desperto para um mundo onde o teu sono é o meu sonho, e curva e contra-curva, escapo-nos rumo a qualquer lugar menos aquele, de Unhais. Não digas a ninguém, mas ali, estamos além; e mais do que a noite, é na Lua que habitamos.
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