Era o tipo da caixa, nem sequer lhe chamávamos homem, porque a caixa nem parecia séria e ser homem é diferente de ser tipo, tipo é mais galhofeiro, informal e mais macho do que homem. Ele gostava de ser macho, e quando lhe chamávamos "o tipo", até gingava as ancas, mesmo que não trouxesse a caixa. Quando a trazia, não se falava de outro assunto, pois o assunto era mesmo ele nunca querer falar do que ela continha. Apertávamos, insistíamos, mas apesar de termos desfiado vinte anos juntos, em novelos vários de peripécias e recuos avançando no tempo, jamais a caixa se abriu. O respeito de não ceder ao roubo existia, mas de qualquer forma, o Carlos era uma dessas aberrações da sociedade, daqueles que conhecem o universo inteiro da saga "Star wars", mas aprendendo-o nos intervalos dos jogos de rugby da equipa universitária. Cabeça de nerd em corpo de segurança; imaginam então porque é que a única maneira de lhe vermos a caixa era mesmo convencendo-o com palavrinhas melosas, ou piadinhas merdosas. Não dava, nem bêbado, que o Carlos nunca se embebedava, bebia na proporção das marés, e ainda assim sempre em preia-mar. Com caixa ou sem caixa, encaixava as investidas, bloqueava todos aqueles que, passando os dias a pensar fora da caixa, no fundo só queriam saber o que se encontrava dentro da mesma.
Éramos crianças, algures pela quarta classe, e conheci-o no recreio, cada um fingia que era um Transformer. Todos queriam ser o Optimus Prime, mas eu e ele jogámos par ou ímpar pela posse do Moscardo. Ganhou ele, e também ganhei eu. Nem sei se alguma vez nos tratámos por amigos, era algo tão natural quanto indizível, apenas existia e era. Morávamos em cantos diferentes da aldeia, mas à vez, semana minha ou semana
Ontem, recebi uma encomenda que não pedi. O remetente era o irmão do Carlos, e explicava, num papelinho colado à tampa, que o irmão decidira procurar algo mais, cansara-se da vida, mas sem pressa das intermitências da morte, pegou em si e arrumou-se na distância entre o conforto e o risco. Por outras palavras, decidiu alistar-se numa tripulação de pesca do bacalhau e aprender um ofício novo. Não estranhei: o Carlos descontava a satisfação e era o presidente do clube de fãs do inesperado (era mesmo, fez uns cartões e tudo, e eu era o sócio número 2, até deixar de pagar as quotas, não por falta de dinheiro, mas sim de imaginação. Fora mais ou menos por aí que deixáramos de falar tantas vezes). Conhecia bem o Carlos, ainda assim: na prática, se ele se queria perder pelos mares da Terra Nova, era como se tivesse morrido. Ainda que o seu corpo se voltasse a materializar no meu olhar, o homem seria outro, e o outro é quase sempre desconhecido. Isso alegrava-me: ia adorar reconhecê-lo, reaprofundá-lo, se ele ainda quisesse aceitar no seu barco um peixe de águas superficiais como eu. No pacote então, desfeito o cartão, socou-me um objecto: era uma caixa de madeira. Estava riscada e amassada, andara aos rebolões e tombos algures, mas inteira, resistente, olhava-me sem olhos. O irmão explicou na carta que passando a ser alguém que não Carlos, as suas posses passavam a ser passas para uns e para outros. A mim, calhara-me a caixa. tanto perguntara e insistira no mistério que agora fazia parte dele. Nos meus dedos, após uma hesitação, a caixa parecia poder de facto conter tudo lá dentro. Deixei que o momento se instalasse e quando quis abri-la, hesitei. Porquê? Num mundo onde tudo se conhece, ou dizem, eu pelo menos sei tão pouco, à minha frente aparecera um imponderável. As perguntas valem mais do que as respostas, que são como um vento que desfaz torres de sal que abrilhantam o horizonte, lhe dão brilho e os tons irreais do fenómeno. Depois de tantos anos a imaginar vários cenários de descoberta e de resolução, parecia-me demasiado prosaico acabar assim com um encanto que me prendera quando tudo o mais da vida se banaliza, uma simples caixa, um complexo planeta de obscuridades luzidias. Onde sempre houve curiosidade, perguntava agora um medo informações de renda e morada.
O pequeno dilema dramático foi interrompido pelo meu filho de cinco anos. O Tiago, vendo-me com a caixa na mão e uma indecisão franzida, apontou para caixa. "O que é?", e era uma caixa, não estava ele a ver bem? "Papá, sim, uma caixa, mas o que faz? O que tem?", e apanhei-me em flagrante delito carlista, fechando as trancas ao meu próprio segredo, e tornando-me mais mágico do que aqueles olhinhos curiosos, coloquei a caixa na mesma, por detrás de mim, e disse que lá estavam o mundo e as estrelas, e que se arrumássemos tudo como deve ser, talvez coubesse o resto do Universo, mas apenas empilhado. Desconfiou primeiro, riu no gesto seguinte e com o dedinho indicador, deu a sua opinião sobre a minha sanidade mental. Coçando a cabecinha, encolheu os ombros. "Já sei, é o nosso jogo. Se eu ganhar, abres a caixa. Se eu perder, a caixa é tua, mas eu gosto mais de ti." Saiu então a correr, e eu apertei a caixa contra o meu peito, como se aquele momento com uma pequena versão de mim pudesse entrar na caixa sem eu quebrar um projecto do meu grande amigo. Um trabalho de uma vida inteira, feito por alguém com mais vidas dentro de si. Mas os seus mundos cabiam todos nas seis paredes de um cubo de madeira.
Quantas não caberão então numa esfera tão gigante de gás e solo.
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