sábado, outubro 24, 2015

Viagens



Havia uma vida sem ti, antes de tomares nas mãos as minhas arestas para uma vida inteira a poli-las, mas quando surgiste, meio baça, meio apelo irresistível, trazias contigo um sabor a eternidade, que não só se enrolou na ponta da minha língua, mas tomou conta de toda a minha boca ainda antes de nos beijarmos. Gostar de ti tornou-se culinário, festim onde me multipliquei em vários para não te dissipar no mundo. A refeição entrou na sua fase digestiva quando nos contaram que tinhas prazo de validade, eram seis meses, um pouco mais se te condimentasses devidamente, e nem arrefecemos esses meses. apenas deixámos ao lume, sem queimar, sem agarrar ao tacho, mas com as nossas mãos presas a cada um dos teus esgares, quando agulhas se tornaram de súbito uma pele que se enxerta, e as tuas células conheceram a morte, destruidora de mundos, na promessa de que te recriaria para este. Uma segunda vida para mim não era opção, e mesmo com a saudável certeza de não estar sequer nesse buraco, adoeci contigo, porque não tinha sequer outra maneira de me sentar, ou de te tocar, sem que de alguma forma o meu corpo não dançasse na lógica da tua presença. Não te vi morrer, mas sim evaporar-te, e os meus olhos prenderam esse vapor nas noites e nas manhãs em que também morri, na antecâmara lenta do inevitável. Dez anos foram o melhor dos mundos possíveis, mas em menos de um, o impossível chegou. Acordei segundos antes de os teus músculos se apertarem por fim no volante, e antes disso dormia sobre ti, e sonhava com comboios e apeadeiros e linhas férreas, e em ti a galgar tudo isso sem bitola marcada. Quando chegámos, partiste. Foi a única ocasião, desde que me disseste olá pela primeira vez, que te quis agarrar e não pude de facto.

A dor não é um segundo tu, porque assim, serias uma legião. Virias em multidão quando ardeste  num forno, surgirias como um exército justificado no cabo da Roca, quando voaste em muitos menos pedaços do que metros quadrados que em mim habitavas e engolirias todos os dias os meus passos, as minhas deambulações, os momentos em que o meu contorno se sentava à secretária, mas o lampejo  que é eu de facto , e não o desenho de uma caixa com duas pernas, escapava pelas frinchas do visível. Eras toda a gente, até porque eu falava com ninguém e eu não me importava. De certa forma, tornei-me radioactivo, num dia quase literalmente, quando liguei para um daqueles programas de rádio nocturnos, anunciando-me Jorge, quando me chamo Paulo, e num momento de fraqueza embaraçosa, passei um programa curto de discos pedidos sob a égide do luto. Disse tudo aquilo com que gozámos, os lugares comuns, os clichés: que não sabia viver sem ti, que levaste uma parte de mim, que quando morreste morri também, e tudo era verdade, mas mentiras, porque um pecado de ocasião é não querer ser a multidão. A minha dor era única, e é sempre, tu eras diferente de todas, nós éramos o mundo, e como podia haver comparação, páreo de tudo aquilo que fomos e que nos fizemos, de todas as camas e bancos de jardim. todas as árvores e praias, todos os olhares e barulhos, da esplêndida oitava maravilha do mundo moderno que eram as nossas mãos dadas, e chão para percorrer. Talvez tenha chorado, estou mais certo agora, porque quando terminei este monólogo eterno, o locutor eternizou-o ainda mais com o silêncio de quem se procura para encontrar o outro numa frase certeira. Falhou em miséria. "Sabe, a vida é feita disso, de perder e de ganhar", e se eu recebesse dinheiro por cada vez que ouvi uma banalidade depois não te ter conseguido agarrar quando mais importava, poderia forrar a tua campa a ouro.

Seis frases feitas depois, desliguei. Pedi que te dedicassem a faixa um daquele álbum dos Radiohead com miúdo no título, ou algo do género, só para disfarçar, e depois de uma deriva de quase um ano, encalhei no ilhéu de mim. Estendido no sofá, revi-me e de como estavas mais viva do que eu, o que era ridículo e verdadeiro, cada um à sua vez, dependendo do lado para o qual me virava no sofá. Gostava de dizer que a casa cheirava a ti, sempre, mas eu estava tão imerso na dor que já nem te lembrava ao certo, apenas uma pequena fumaça, uma comichão tua no meu peito, amplificada e crescida, maior do que eu, do que a jaula das minhas costelas, até do que o meu coração, julgado elefantino, Na verdade, apesar de eu estar, tudo o mais tinha tirado longas férias da minha presença. Era a minha presença, não havia mais, e depois de ter chorado a tua essência a um parolo da rádio, a um labrego que nem conhecia, um tal que quando pedi Radiohead me sugeriu que te passasse antes Enya, a sentimentalona irlandesa, é que descobri finalmente o rumo: precisava de me reapaixonar , para depois acabar contigo da forma mais desastrosa possível. Era obrigatório conhecer quem me completava, para nos destruir e reconstruir com toda a vontade de não ser um túmulo. A certeza era esta: no dia em que te enterrei, fui contigo, dentro daquele caixão, e estava na altura de reocupar o meu lugar, e o teu deixado vazio, para que não morresses por fim completamente. Pensei que se vivesse, que se te revivesse, te perderia para entender como o mundo fica melhor pela presença de quem, não estando, faz parte da arquitectura táctil do nosso coração, e seria eu de novo, e um eu capaz de dar várias oportunidades a uma vida além da morte, túneis de luz, o Paraíso. A tua memória seria então mais luz do que túnel, mas guardando-te, libertava-me.

Apareceu então na minha mente a nossa primeira viagem, uma travessia alpina a pé, em dez dias. Peguei num caderno e anotei todos os lugares que fizemos nossos e arrumámos em mochilas, um tabuleiro terreno de onde trouxemos pedras para criar um pequeno mundo só nosso, não esférico, mas sim um paralelepípedo. Foram algumas horas a escrever nomes numa lengalenga de persistência da recordação. Lista finda, nova parte do plano: começar um projecto, nessa mesma noite, sem voltar atrás. O destino era Barcelona, onde arquitectámos toda a uma cidade para nosso Gaudio. Roubei a mim mesmo uma foto tua, coloquei-a num envelope e fiz uma promessa, escrita e assinada com o que sobrava do teu perfume, de que te revisitaria, e levava na mochila a caixa que continha o nosso mundo, e devolveria à proveniência todas essas rochas que eram mais tu do que aquela casa, pois foram escolhidas pela evidência do teu entusiasmo. Fotografia, caixa e comigo, uma máquina fotográfica. Quero fixar-me novamente nos cenários e nas paisagens, fazer de conta que volto a existir.

Dois anos depois disso, estou sozinho, mas não só. Ainda tenho umas dez pedras, e as que deixei para trás foram sementes, e deram-me sabores que se enrolaram na ponta da minha língua, nos anéis dos meus cabelos. Protegem-me, cobrem-me, e são tu, embora sejam mais eu. Com o tempo, serei meu, e tu uma propriedade comutativa dos afectos.

Amanhã, vou deixar-te num glaciar islandês. Só amanhã. Hoje, dormes comigo, outra vez.

2 comentários:

Post-It disse...

Inventário sobre os fins de mundo
A saber:


1 - Aquele lugar longínquo onde "Judas perdeu as botas";
2 - Com função referencial, é fisicamente e geograficamente impossível, uma vez que não existe um local que se possa chamar ou identificar como sendo o fim da "estrada do mundo", (isto porque o mundo é redondo, logo sem ponto de partida e/ou de chegada);
3 - Também num sentido figurativo, (mas em termos psicológicos), o "fim do mundo" é tudo aquilo que termina de forma dolorosa, trágica, abrupta ou injusta, (o fim de uma relação, a morte de alguém querido, etc);
4 - A noção de que apesar dos inúmeros recursos naturais do planeta Terra, há acções humanas que sem dúvida nenhuma podem levar à destruição da vida humana e à degradação do planeta;
5 - Teoria astronómica do "Fim do planeta Terra", que prevê que o planeta tenha mais 5 bilhões de anos de vida antes do Sol se tornar uma gigante vermelha inviabilizando a habitabilidade no dito cujo;
6- Tema recorrente dos livros e filmes de ficção científica, mas também de um sem número de perspectivas proféticas.

(Riscar o que não interessa)

Post-It disse...

P.S. Talvez, o grande mistério do Universo seja o mistério da vida e dos inícios e não o da morte e dos finais. (Afinal, a morte, o fim, fazem parte da vida e do amor).
Também desconhecemos as regras do Amor (em sentido lato e restrito) e do desejo, mas eles... acontecem em nós... e ainda bem. São sempre bem vindos, mesmo que um bocadinho dolorosos.