A quarta maior cidade do Quirguistão foi fundada no século XIX, porque no meio de nenhures dava jeito haver um entreposto militar russo. Logo aqui se misturaram os Dungans, chineses de origem muçulmana, com eslavos, tudo para manter um foco de guerra permanente contra a China. Chamaram-lhe Karakol. Apesar de pertencer hoje a outro país, a cidade ainda hoje alberga uma base militar russa, junto ao lago Issyk-Kul, onde se fazem testes com submarinos, diz-se.
A terra merece o nome, pelo menos em português, pois é uma violenta pasmaceira. Vale pelo
kitsch de se encontrar um cinema que passa filmes de Bollywood em 3D e pelas mal-disfarçadas influências soviéticas, dominantes 25 anos depois da independência nacional e visíveis nos edifícios civis. Num deles, que desconfio ser a Câmara Municipal, encontramos expostos retratos de dignatários locais, que pelo aspecto são frutos de um gigantesco bacanal providenciado pelo ET do famoso filme de Steven Spielberg, uma mistura de traços asiáticos e andinos, num estilo gráfico reminiscente dos anos 80. A cidade divide-se entre muçulmanos e ortodoxos e cada um tem os seus locais de culto. A igreja é tão igual como qualquer outra do género, mas ao entrarmos no espaço da mesquita, por um corredor ladeado de hortas após passar um portal de madeira, a curiosidade é mais evidente: é quase como se Miró e Chagall se tivessem convertido ao Islão para destilar, numa obra de arquitectura, a sua religiosidade através de uma explosão de cor. O edifício faz lembrar os templos budistas e não se vêem sequer quartos crescentes ou escrita árabe no exterior. O minarete é uma discreta torre azul de madeira. Como em tudo aqui, o essencial não sobressai e fica ao nosso encargo adivinhar o que se faz, o que se move e o que se pensa. Há cidades sem personalidade, mas Karakol parece ser o tipo de local puramente serviçal, onde até os cidadãos só lá estão porque existem habitações e era chato ficarem vazias.
À tarde, foi-nos prometido que descansaríamos nas termas de Altyn-Arashan. Portugueses que somos, começamos logo a pensar em estruturas de pura dedicação ao relaxamento, com piscinas, fontes e, atreve-te libido, massagistas. Depois de almoço, preparo-me a rigor com calções, toalha e chinelos na mochila, o equipamento oficial do turista luso. Mesmo que não haja praia, o que conta é o estado mental e a época balnear não ocupa peso na bagagem de porão. Porém, leves sinais indicam que se está a pôr algo mais do que um simples passeio. Os veículos alugados são jipes, mas as termas são no cimo da montanha e a coisa até pode ser para o charme. Um deles atrai de imediato a atenção, por parecer mais velho do que eu. No interior, todos os fios estão espalhados, as portas presas por guitas à laia de fechadura e o aspecto convida à pura experiência da Ásia Central. Quando alapo o meu rabo, imagino que sou mesmo um aventureiro: na estepe, sê um dos duros, mas na verdade, e tivesse eu feito a pesquisa em casa, o que me esperava era uma valente estopada. É que, e deve-se dizer, o troço de 12 km que separa Karakol de Altyn Arashan tem uma certa reputação entre as estradas asiáticas, nomeadamente a de serem necessárias uma duas horas e meia para fazê-lo. Desconhecia este pequeno facto e seus motivos, mas nunca mais o esquecerei.
O curto caminho vai subindo a montanha até uns aceitáveis 2600 metros de altitude, um pouco como subir ao Pico, tudo isto num piso que transforma veículos todo o terreno numa orquestra de rumba onde os passageiros são congas. Quando, a certo ponto, se apanham calhaus de dimensão bem considerável, o corpo está tão moído que encolhe os nossos próprios ombros e aceita o que vier, e o que chega são noites em Havana, mojitos de vértebras deslocadas. Sentado no banco traseiro, recebo no colo passageiros à vez e lamento imenso não ter trazido capacete. O movimento é tão intenso que pouco antes da primeira paragem, só mesmo para garantir que os meus dentes não estavam, por essa altura, dentro do meu cérebro, julgo mesmo que ganhei o Euromilhões, pois sinto-me como uma bola na tômbola. Enquanto estamos parados, passa um camião todo o terreno, a
mazurchka, que trata as pedras com a mesma condescendência com que Ricardinho olha os adversários no futsal. Vai carregadinha de turistas japoneses, que nos fazem sentir como extraterrestres na Casa dos Segredos. O condutor chama-nos então à segunda vaga de merengue. É um senhor já com uns sessenta anos que, sinto-me com sorte em apostar, deve ter combatido no Afeganistão e por isso, para ele, o passeio é de domingo. Mais do que uma vez a chave salta da ignição, obrigando a paragens a meio caminho entre o calhau e a terra firme, dando-nos a mesma emoção que é provocada por um
tobogan. Entre uma avaria e outra, e alguém que quase salta do jipe em andamento para tocar xilofone de queixos estrada abaixo, lá chegamos às termas.
Meto os pés no chão e estou desfocado, tanto que julgo alucinar. Vejo apenas três casebres à beira do rio, mais uma hospedaria na outra margem com uma orgulhosa bandeira vermelha com um sol no meio. Preparo-me para uma caminhada de alguns quilómetros para chegar de facto às termas, vai-me fazer mesmo bem descomprimir, mas chamam-me à atenção: não, caro amigo, é mesmo ali, são aquelas casas, onde encontrarei uns tanques de dois metros por dois metros e meio, com água quentinha ao nível da cintura. Deve ser disto que falam quando empregam a expressão "choque de culturas" entre Ocidente e Oriente. Apenas o António Gil molha os pés, não se atrevendo a encharcar mais. A paisagem, no entanto, é uma massagem melhor que a estrada repleta de calhaus: no vale que o gelado rio atravessa, um verde que me recicla de alto a baixo, vê-se ao longe um brutal pico nevado, a cordilheira de Tien Shan exibindo-se gulosamente e confortando os portugueses burlados. O sol ainda brilha por sobre as montanhas, projectando com as nuvens sombras turvas e curvas, e a floresta reminiscente da Europa Central é um bálsamo. A pequena caminhada por trilhos improvisados leva a fotos tipo droga embriagante, e à descoberta de que todos pensam que somos israelitas, porque de facto é a nacionalidade que mais se encontra no espaço. Uma rápida vistoria de um mapa desenhado à mão (literalmente, creiam) indica a presença de uma nascente selvagem não muito longe das termas. Está claro que tenho de lá ir.
Acede-se por um trilho de terra que atravessa as árvores e acompanha o rio murmurante, a água empurrando rochas em ritmo de milhares de anos. As nuvens, no entretanto, roubaram muita da luz que nos acompanhava e as frondosas copas arbóreas criam um ambiente gótico, quebrado apenas por gente que de toalha às costas, se dirige para um algures que viu num croqui. A lógica é seguir caminho aberto e uns dez minutos depois encontramos um cantinho fantástico junto à água. Não existem escadas ou sinalização e do nosso lado direito, elevado a uns metros, apenas um tanque circular claramente feito por alguém, com cimento a assinar mão humana, nos indica que chegámos onde é suposto. Não está calor, o tempo põe-se feio e os meus companheiros entreolham-se, num desafio mudo e surdo, uma resposta que se torna cega à coragem. Ninguém se quer molhar. A excepção, claro, é este vosso amigo, que nem quer pensar que serviu de bateria de escola de samba durante doze quilómetros apenas para voltar mais à seca do que um abstémio no Carnaval do Rio. Vou eu, proclamo, e ao início pensa-se que estou a brincar e só quando me ponho de calções é que se percebe que este tipo é da aldeia e que ser da aldeia é não jogar com o baralho todo. O meu cuidado é todo para não escorregar. O meu corpo cansado desliza apenas para dentro do tanque, a água quente puxa-me com visíveis dedos, unhas cravando-me de prazer em cada pedaço de pele e carne martirizados por horas de viagem de carro e quando me deixo amparar pelas palmas das mãos aquosas, solto um sonoro suspiro de prazer passível de ser confundido com algo mais.
Sou alvo de fotos, todos se sentem atraídos por alucinados e alienados, mas num repouso que nem é sólido, num calor que me envolve como, imagino, uma vez fui acolhido no ventre materno, tenho paz verdadeira pela primeira vez desde que aqui chego. A minha companhia retira-se, eu digo que já lá vou ter, mas o "já" é relativo. Descomprimo na totalidade, tanto que julgo até que o meu corpo perdeu forma e é plasticina, átomos que se misturam com as moléculas daquela água a quem já os Antigos reconheciam saúde. A minha paisagem é a de branco azulado e verde, um branco azulado que desliza por um leito e um verde permanente de exército de madeira e clorofila que guarda o meu descanso. Por fim chove a sério, e eu, cozinhando em banho macia o meu próprio sabor, assisto a tudo como um afortunado idiota, alguém que conseguiu estar num momento certo, no local perfeito e tão longe de tudo o que é seu. A casa é onde o coração está e penso em quem me dá tecto, enquanto as minhas pernas são serpentes debaixo da superfície do espelho onde reflicto o meu prazer. Por um instante, entre todas as voltas que estes últimos anos me deram num fandango de dor e da maior alegria que me atinge o coração, o ruído confuso desaparece e numa caverna, vejo luz entre pingos de chuva. Brilha muito, sim, mas apenas porque sai dos meus olhos.