sexta-feira, setembro 30, 2016

Cronistão 7: Fadado para morrer



Desde o primeiro dia que nesta terra distante a morte me tem passado pelos olhos. Não vestida de negro, foice a tiracolo, mas a maneira que nós, humanos por natureza e inclinação, arranjámos para mantê-la presente como fantasma: campas alinhadas em cemitério, últimas moradas de gente no momento em que expira ficou mais sem-abrigo do que abrigada. Se por cá reina a opressão do branco, campas como filas de almas penadas a ocupar os cemitérios, aqui as necrópoles são quase literais cidades de morte. A semelhança de alguns túmulos com casinhas de brincar é por demais evidente e as lápides fazem-se acompanhar de zero representação. Há diferenças substanciais em relação ao Ocidente e a primeira é a localização. Habitualmente, estão fora das povoações, e por fora quero dizer uns dois ou três quilómetros, pelo menos. Encontramo-las à beira das estradas, raras vezes delimitadas, apenas ajuntamentos de memória. As cores da paisagem dominam e aqui, nesta ligação que fazemos entre Karakol e a nossa próxima dormida, são de vermelho arenito. Por fim, não se usam fotos: há retratos esboçados do ente falecido, tentando talvez apanhar-lhe mais o espírito do que a forma. Quando olhamos fixamente, as faces esfumam-se um pouco, tremem e as pessoas voltam à vida em arremedos. É irresistível parar e tirar fotos. Do nosso lado direito, a margem sul do Issyk-Kul contrasta com a oposição de brutais montanhas, guardiãs dos mortos, respirando a paz da última morada. Noto que todos têm aqui lugar: há campas muçulmanas, ortodoxas e até comunistas, presumindo eu que o ateísmo também alapa morada. Muito ecuménico, este espaço, e quanto mais o fotografo, mais em paz me sinto entre pilares de pedra que se erguem dos restos mortais de alguém. Inunda-me uma ideia em expansão, nesta cultura diferente, de que faço parte da algo maior, seja isso o que for, sem símbolos ou marcas.


O encantamento continua uns quilómetros mais à frente, quando sinto a carrinha virar para uma estrada de terra batida. Uma placa indica "Skazka" e não entendo Quirguiz, como sabem. Pergunto o que quer dizer e respondem-me que vamos entrar no desfiladeiro das fadas. Não estou na Irlanda, mas aceito que existirão também tais criaturas na terra dos cavalos, porventura unicórnios. Cinco quilómetros depois, lidamos com dois garotos que são reis de uma cancela. Se queremos passar, cada um paga 50 som. Baratinho, por isso sacam-nos o dinheiro e avançamos então até um estacionamento improvisado na base de um barreiro. Mal saio, o sol oprime-me de imediato contra o solo e quando os meus olhos se ajustam ao enigma, contemplo obras de arte esculpidas por mitos com duas mãos. Numa larga extensão de forte vermelho acre, onde consigo escutar o tinir de milhões de anos de planeta, ergue-se uma cidade que não existe porque não é cidade. Seguem-se casebres, avistam-se pináculos de palácios que jamais existirão. O vale é um desfile de ilusões de óptica oferecidas com desprezo pela água da chuva e um vento caprichoso, mas sensível. Um torreão anilhado, assente no dorso esburacado e arenoso de um lobo de rocha, é o panóptico que a todos controla, invasores de um espaço privado desse senhor feudal inclemente que é a Natureza. Fotografar tudo isto é mais missão do que desejo. O meu dedo anseia por ganhar calos e tendinite, capturando esta aldeia das fadas onde a luz do sol é uma dança sem fim. Quirguistão e Magonia não rimam sequer na magia da presença, mas os seus domínios, onde elfos e duendes e gnomos têm também o seu bairro próprio, estão agora no digital de um cartão de plástico, mera sombra do que vimos, mas uma poderosa alegoria da caverna dos nosso olhares.


Subo até à base do torreão e sento o rabo em pó de fadas, desiludido por não ser LSD. Recolho areia, atiro-a e estupidamente, mas de propósito, tomo um banho, mas sinto--me outro, telúrico, pronto para me embrenhar no labirinto das fadas. Saio não pelo fio de Ariadne, mas puxado pelo mistério e pela vontade de descobrir mais. Sem querer, sinto-me preso numa teia de memória, o calor que me banha é superior ao do sol e penso em alguém que faz da magia das fadas a banalidade de um sorriso e num beijo , prende-me a um encanto onde sou simplesmente mosquinha, nem morta nem viva, só presa e encantada nesta polis de faz de conta, vermelha, mágica e ilusória.


segunda-feira, setembro 26, 2016

Cronistão 6: Relaxamento termal



A quarta maior cidade do Quirguistão foi fundada no século XIX, porque no meio de nenhures dava jeito haver um entreposto militar russo. Logo aqui se misturaram  os Dungans, chineses de origem muçulmana, com eslavos, tudo para manter um foco de guerra permanente contra a China. Chamaram-lhe Karakol. Apesar de pertencer hoje a outro país, a cidade ainda hoje alberga uma base militar russa, junto ao lago Issyk-Kul, onde se fazem testes com submarinos, diz-se.


A terra merece o nome, pelo menos em português, pois é uma violenta pasmaceira. Vale pelo kitsch de se encontrar um cinema que passa filmes de Bollywood em 3D e pelas mal-disfarçadas influências soviéticas, dominantes 25 anos depois da independência nacional e visíveis nos edifícios civis. Num deles, que desconfio ser a Câmara Municipal, encontramos expostos retratos de dignatários locais, que pelo aspecto são frutos de um gigantesco bacanal providenciado pelo ET do famoso filme de Steven Spielberg, uma mistura de traços asiáticos e andinos, num estilo gráfico reminiscente dos anos 80. A cidade divide-se entre muçulmanos e ortodoxos e cada um tem os seus locais de culto. A igreja é tão igual como qualquer outra do género, mas ao entrarmos no espaço da mesquita, por um corredor ladeado de hortas após passar um portal de madeira, a curiosidade é mais evidente: é quase como se Miró e Chagall se tivessem convertido ao Islão para destilar, numa obra de arquitectura, a sua religiosidade através de uma explosão de cor. O edifício faz lembrar os templos budistas e não se vêem sequer quartos crescentes ou escrita árabe no exterior. O minarete é uma discreta torre azul de madeira. Como em tudo aqui, o essencial não sobressai e fica ao nosso encargo adivinhar o que se faz, o que se move e o que se pensa. Há cidades sem personalidade, mas Karakol parece ser o tipo de local puramente serviçal, onde até os cidadãos só lá estão porque existem habitações e era chato ficarem vazias.


À tarde, foi-nos prometido que descansaríamos nas termas de Altyn-Arashan. Portugueses que somos, começamos logo a pensar em estruturas de pura dedicação ao relaxamento, com piscinas, fontes e, atreve-te libido, massagistas. Depois de almoço, preparo-me a rigor com calções, toalha e chinelos na mochila, o equipamento oficial do turista luso. Mesmo que não haja praia, o que conta é o estado mental e a época balnear não ocupa peso na bagagem de porão. Porém, leves sinais indicam que se está a pôr algo mais do que um simples passeio. Os veículos alugados são jipes, mas as termas são no cimo da montanha e a coisa até pode ser para o charme. Um deles atrai de imediato a atenção, por parecer mais velho do que eu. No interior, todos os fios estão espalhados, as portas presas por guitas à laia de fechadura e o aspecto convida à pura experiência da Ásia Central. Quando alapo o meu rabo, imagino que sou mesmo um aventureiro: na estepe, sê um dos duros, mas na verdade, e tivesse eu feito a pesquisa em casa, o que me esperava era uma valente estopada. É que, e deve-se dizer, o troço de 12 km que separa Karakol de Altyn Arashan tem uma certa reputação entre as estradas asiáticas, nomeadamente a de serem necessárias uma duas horas e meia para fazê-lo. Desconhecia este pequeno facto e seus motivos, mas nunca mais o esquecerei.


O curto caminho vai subindo a montanha até uns aceitáveis 2600 metros de altitude, um pouco como subir ao Pico, tudo isto num piso que transforma veículos todo o terreno numa orquestra de rumba onde os passageiros são congas. Quando, a certo ponto, se apanham calhaus de dimensão bem considerável, o corpo está tão moído que encolhe os nossos próprios ombros e aceita o que vier, e o que chega são noites em Havana, mojitos de vértebras deslocadas. Sentado no banco traseiro, recebo no colo passageiros à vez e lamento imenso não ter trazido capacete. O movimento é tão intenso que pouco antes da primeira paragem, só mesmo para garantir que os meus dentes não estavam, por essa altura, dentro do meu cérebro, julgo mesmo que ganhei o Euromilhões, pois sinto-me como uma bola na tômbola. Enquanto estamos parados, passa um camião todo o terreno, a mazurchka, que trata as pedras com a mesma condescendência com que Ricardinho olha os adversários no futsal. Vai carregadinha de turistas japoneses, que nos fazem sentir como extraterrestres na Casa dos Segredos. O condutor chama-nos então à segunda vaga de merengue. É um senhor já com uns sessenta anos que, sinto-me com sorte em apostar, deve ter combatido no Afeganistão e por isso, para ele, o passeio é de domingo. Mais do que uma vez a chave salta da ignição, obrigando a paragens a meio caminho entre o calhau e a terra firme, dando-nos a mesma emoção que é provocada por um tobogan. Entre uma avaria e outra, e alguém que quase salta do jipe em andamento para tocar xilofone de queixos estrada abaixo, lá chegamos às termas.


Meto os pés no chão e estou desfocado, tanto que julgo alucinar. Vejo apenas três casebres à beira do rio, mais uma hospedaria na outra margem com uma orgulhosa bandeira vermelha com um sol no meio. Preparo-me para uma caminhada de alguns quilómetros para chegar de facto às termas, vai-me fazer mesmo bem descomprimir, mas chamam-me à atenção: não, caro amigo, é mesmo ali, são aquelas casas, onde encontrarei uns tanques de dois metros por dois metros e meio, com água quentinha ao nível da cintura. Deve ser disto que falam quando empregam a expressão "choque de culturas" entre Ocidente e Oriente. Apenas o António Gil molha os pés, não se atrevendo a encharcar mais. A paisagem, no entanto, é uma massagem melhor que a estrada repleta de calhaus: no vale que o gelado rio atravessa, um verde que me recicla de alto a baixo, vê-se ao longe um brutal pico nevado, a cordilheira de Tien Shan exibindo-se gulosamente e confortando os portugueses burlados. O sol ainda brilha por sobre as montanhas, projectando com as nuvens sombras turvas e curvas, e a floresta reminiscente da Europa Central é um bálsamo. A pequena caminhada por trilhos improvisados leva a fotos tipo droga embriagante, e à descoberta de que todos pensam que somos israelitas, porque de facto é a nacionalidade que mais se encontra no espaço. Uma rápida vistoria de um mapa desenhado à mão (literalmente, creiam) indica a presença de uma nascente selvagem não muito longe das termas. Está claro que tenho de lá ir.


Acede-se por um trilho de terra que atravessa as árvores e acompanha o rio murmurante, a água empurrando rochas em ritmo de milhares de anos. As nuvens, no entretanto, roubaram muita da luz que nos acompanhava e as frondosas copas arbóreas criam um ambiente gótico, quebrado apenas por gente que de toalha às costas, se dirige para um algures que viu num croqui. A lógica é seguir caminho aberto e uns dez minutos depois encontramos um cantinho fantástico junto à água. Não existem escadas ou sinalização e do nosso lado direito, elevado a uns metros, apenas um tanque circular claramente feito por alguém, com cimento a assinar mão humana, nos indica que chegámos onde é suposto. Não está calor, o tempo põe-se feio e os meus companheiros entreolham-se, num desafio mudo e surdo, uma resposta que se torna cega à coragem. Ninguém se quer molhar. A excepção, claro, é este vosso amigo, que nem quer pensar que serviu de bateria de escola de samba durante doze quilómetros apenas para voltar mais à seca do que um abstémio no Carnaval do Rio. Vou eu, proclamo, e ao início pensa-se que estou a brincar e só quando me ponho de calções é que se percebe que este tipo é da aldeia e que ser da aldeia é não jogar com o baralho todo. O meu cuidado é todo para não escorregar. O meu corpo cansado desliza apenas  para dentro do tanque, a água quente puxa-me com visíveis dedos, unhas cravando-me de prazer em cada pedaço de pele e carne martirizados por horas de viagem de carro e quando me deixo amparar pelas palmas das mãos aquosas, solto um sonoro suspiro de prazer passível de ser confundido com algo mais.


Sou alvo de fotos, todos se sentem atraídos por alucinados e alienados, mas num repouso que nem é sólido, num calor que me envolve como, imagino, uma vez fui acolhido no ventre materno, tenho paz verdadeira pela primeira vez desde que aqui chego. A minha companhia retira-se, eu digo que já lá vou ter, mas o "já" é relativo. Descomprimo na totalidade, tanto que julgo até que o meu corpo perdeu forma e é plasticina, átomos que se misturam com as moléculas daquela água a quem já os Antigos reconheciam saúde. A minha paisagem é a de branco azulado e verde, um branco azulado que desliza por um leito e um verde permanente de exército de madeira e clorofila que guarda o meu descanso. Por fim chove a sério, e eu, cozinhando em banho macia o meu próprio sabor, assisto a tudo como um afortunado idiota, alguém que conseguiu estar num momento certo, no local perfeito e tão longe de tudo o que é seu. A casa é onde o coração está e penso em quem me dá tecto, enquanto as minhas pernas são serpentes debaixo da superfície do espelho onde reflicto o meu prazer. Por um instante, entre todas as voltas que estes últimos anos me deram num fandango de dor e da maior alegria que me atinge o coração, o ruído confuso desaparece e numa caverna, vejo luz entre pingos de chuva. Brilha muito, sim, mas apenas porque sai dos meus olhos.

sexta-feira, setembro 23, 2016

Cronistão 5: O mundo animal



O aspecto é de salão paroquial em Medellín, ainda para mais quando nos deparamos com um jardineiro caprino de quatro patas, mas o Park Hotel revelou-se um local agradável para repousar a nossa coluna nos dias que passámos em Karakol. A dona, uma senhora com os seus sessenta anos cujo nome a minha memória deixou fugir, não fala inglês, mas revela-se prolixa em russo, como qualquer bom quirguiz. Sabe que Portugal é na Europa, mas perde-se um pouco nos pormenores e também não é importante. Traça o limite, no entanto, na presença de calçado no interior do seu espaço: o hóspede ou entra de chinelos ou descalço e nem há contra-argumento! Existe um pequeno móvel com prateleiras para sapatilhas e sapatos e botas. Pisem as carpetes da simpática senhora com algo mais do que uma tira de plástico a proteger-vos as palmas dos pés e serão brindados com um olhar mais fulminante do que uma pistola. E por falar nisto: lembram-se dos Clint Eastwoods de que vos falei na crónica anterior? São tipos que por acaso têm uma arma em casa e, em ocasiões especiais (como, por exemplo, quando um grupo de ocidentais chega de malas aviadas a uma hospedaria de Karakol) surgem com a intenção de garantir que tudo está bem, que estamos em segurança.Talvez lhes escape a noção de que observarmos, assim do nada, uma arma de fogo nos deixe poucos seguros, mas tirando isso... bom trabalho! Ocasionalmente vemo-los na "lounge" do hotel, sempre a relaxar na Internet, porque, afinal, existe um código internacional de laxismo, acima de qualquer cultura, entre seguranças do Ocidente e do Oriente.



A tarde desse primeiro dia em Karakol fez-nos rumar aos Sete Bois de Vermelho, rochedos enormes em manada a poucos quilómetros da cidade. À noite, saimos para jantar e foi logo na primeira casa que nos pareceu aceitável. O nome está em cirílico e soa a algo como Micmasa, e infelizmente, quando abrimos os menus, apercebemo-nos de duas coisas: que tudo está em grafia russa e também que a dona do Park Hotel não é a única pessoa do Quirguistão ligada ao sector de hotelaria e restauração que desconhece uma língua que é falada por mais de metade do mundo conhecido. Somos convidados por uma prestável, e muito aflita, empregada de mesa, mais nova que eu e até do que o meu irmão, vestida de seda azul, lenço amarelo na cabeça e o sorriso de um veado que ficou encadeado pelos faróis de um jipe. Em atrapalhação, leva-nos a observar no exterior um painel publicitário de lona, onde figuram imagens bem convidativas dos principais petiscos da casa. A olho, e sem saber bem ao que vamos, escolhemos. Eu arrisco cobleti, que é algo parecido com panado de vaca. Come-se, embora não fique com vontade de abusar. No final, deixamos uma gorjeta de 100 som à simpática garota. Ela julga que é erro, tenta devolver e gentilmente fazemo-nos entender que é uma dádiva que lhe damos pela atenção e esforço que nos deu. Ri primeiro, quase chora depois, segurando a nota como se capturara o mais importante bicho do Pokemon Go. Para ela, é talvez uma fortuna; para nós, portugueses que se começam a sentir alemães nesta terra de moeda desvalorizada, é simplesmente euro e meio. Que no outro lado do mundo, longe dos nossos problemas e da nossa classe média de 500 mil euros, são o suficiente para colocar luzes de Natal em pleno Agosto no dia de uma miúda. Há maneiras piores de me sentir turista.



Caio na cama às dez da noite e apago-me de imediato. Finalmente convenço-me de que tudo é real e o meu cérebro bebe todas as horas de sono que consegue, porque na manhã seguinte temos alvorada às sete. Nem me custa acordar. Desço descalço e tomo o pequeno-almoço de duas opções: omelete de queijo ou crepes. Sejam crepes então e conversamos o que nos espera como programa da manhã: uma visita ao mercado de gado local. Uma coisa é falar; outra coisa é dar por mim numa coisa que faz a Ovibeja parecer a Expo 98. O chão mais limpo é de terra, porque no momento em que entramos num espaço com o tamanho do Queimódromo de Coimbra, lavrado de gente com os seus animais, rapidamente o gesto reflexo de não pisar bosta se digere: tudo acaba por ser bosta. Cheiro mais com os olhos do que com o nariz, pois tantos estímulos transformam o meu corpo numa sinestesia permanente e mal consigo apreender tudo o que me cerca. Vacas, cabras, ovelhas, cavalos, bichos humanos, todos em caminhos que nem se marcam mas se sabem, os de quatro patas puxados pelos de duas patas em cordas ou guitas, olhares perdidos, ignorantes e por várias vezes, pessoas que engelham pânico na presença de uma máquina fotográfica, como se um "clic" fosse possessão, alguns fazem sinal da cruz na minha direcção e sinto-me um exorcismo forma humana, o que se acentua mais quando cabras se acariciam nas minhas calças para abrir caminho.


Há gente que vende ferraduras, que soam forte mesmo sem fazer barulho, principalmente nas mãos de uma menina que domina o ferro e ainda olha para mim com vista dura, prática, esperando a foto mas prosseguindo. Um tipo empina o cavalo à minha frente e sinto-me num western asiático, ilusão quebrada quando puxa do telemóvel e conversa assim montado, porque quando se dirige um equídeo não se paga multa. O barulho é galopante, uma mistura de sirenes, bramidos, o reino animal manifestando-se sem grande desespero, mas exasperando-se. É a missa de Karakol, toda a gente vem, mesmo sem nada para vender, porque pouco mais há que passe por entretenimento nesta terra. Conversa-se no meio dos bichos, alegremente, livremente, mesmo que a Polícia passe de vez em quando, talvez também porque neste fim de mundo, onde um homem é segurança só porque possui uma arma em casa, não tem nada para fazer. Cumprimentos e abraços, um fã de Cristiano Ronaldo sabe que sou português e insiste que lhe tire uma foto, e depois aos amigos, e depois à família e acabo por traçar um retrato oficial com bichos e tudo. Sinto o que nunca senti na vida: o homem civilizado no meio da aldeia, uma aldeia que já só me lembro de quando mal tinha pernas para trepar limoeiros e laranjeiras; quando o mugir das vacas e o relinchar dos cavalos dança no meu pavilhão auditivo, obliterando tudo o mais, sou recordado que venho de algo um pouco mais moderno do que aquele recinto, mas pouco, que vi e ajudei na matança do porco e na vindima, que não tratei de amimais mas vi tratar e ajudei a minha avó a matar cobras à pedrada. Eu não sou dali, mas parte daquele pequeno circo ressoa em mim e leva-me a outras memórias. Enquanto fixo tudo em fotos, e vejo um cavaleiro que foge para longe quando me vê apontar a máquina, sei que apesar de dar gorjetas, não sou muito mais do que aquela gente simples e não simplória, que teme que a sua alma fique presa dentro de uma caixa negra, que se mistura com a bicharada porque lhe está ligada.



No final, arruma-se o que não se vendeu, e alguns homens têm de puxar bodes e cabras à viva força. Em contentores que parecem saídos da Lisnave, há lojinhas que vendem tudo ao copo, água inclusive, e outras coisas. Quando se viaja, não se deve procurar o que se tem, ou então acha-se o repetido; no entanto, por mais longe que caminhemos e voemos, haverá sempre um ponto em que nos encontramos, seja nas ramagens das florestas, no murmúrio das ondas, nas curvas empedernidas das ruas fechadas de velhas urbes; ou então simplesmente num tempo que foi meu, em que todos os sentidos se misturam para me devolver o que sou de verdade e não muda com as minhas rugas, os meus erros, as minhas intensidades da idade. Num mercado de gado, reencontrei-me pessoa; e isso, amigos, é o fungaga da bicharada.


terça-feira, setembro 20, 2016

Cronistão 4: Dar de beber aos cavalos



Nunca vira um lago com linha do horizonte, mas é primeira vez de muitas primeiras desta viagem. A estrada que liga Bishkek a Karakol estende-se pela margem norte do Issyk-Kul, um mastodonte aquático que impressiona pelo tamanho e também por ser a referência mais próxima que este país trancado na Ásia Central possui como mar. Cheguei a perguntar, posteriormente, a quirguizes se alguma vez os seus olhos lhes tinham revelado a benesse do oceano. Não, disseram-me todos, mas temos o grande Issyk-Kul; e lá enorme é ele: 182 km de comprimento, 60 km de lago, o segundo maior lago em altitude do mundo (a seguir ao Titicaca) e também vice-campeão em lagos salinos em volume (apenas ultrapassado pelo Cáspio, esse intrujão que se faz passar por mar, mas que, por ser uma massa de água sem qualquer contacto com outras, é de verdade um lago). Situado aos 1500 metros de altitude e rodeado pelas montanhas da cordilheira mágica do Tien-Shan, que me fará companhia nos próximos dias, nunca congela. Desde os tempos soviéticos que se estabeleceu como um dos destinos balneares de eleição do grande império russo imaginário e pelo caminho, vemos algumas datchas e bungalows para turista frequentar. O que muitos desconhecem é que terá sido aqui, pelo papel fulcral no percurso da Rota da Seda, que surgiu a Peste Negra, levada pelos mercadores orientais até à Europa, para espalhar mortandade.

Hoje em dia, o maior perigo de morte que se reflecte nas águas azuis, profundas e aparentemente frias do lago não é a hipotermia (algo que parece não afectar os Quirguizes, que se banham aqui como quem está em Aljezur): é a peste motora. A rede viária do país foi desenhada a régua e esquadro, com rectas intermináveis e curvas bastante subtis. Quase todas as estradas contornam as montanhas, e as modalidades de piso são três: alcatrão nas vias que ligam cidades importantes; macadame e pedra em estradas secundárias; e nos caminhos do fim do mundo, existe gravilha, terra batida e qualquer tipo de pedra que caia das montanhas que habitualmente são atravessadas por estes caminhos de cabras, pois a elas pertencem, mas também de vacas e cavalos. Ocasionalmente, encontramos pedaços de caminho "em obras", que significam simplesmente que nos espera um lençol de flanela onde um grupo de traças decidiu fazer uma despedida de solteiro. 

O condutor da nossa Sprinter  desvia-se dos obstáculos ocasionais como quem faz uma gincana e cedo nos apercebemos que as regras da ultrapassagem são bem diferentes: a carrinha mete o nariz, enche-se o peito, passa-se à rasa. Três veículos ultrapassando-se em simultâneo rumando em sentidos opostos é um costume e cinco serão record olímpico e algo a que assistirei ainda por estas terras. A existência de uma mente comum quirguiz é postulada, até porque nunca se vêem choques frontais onde as leis da Física tornam obrigatório que existam. Acontece um desvio de última hora e o trânsito desenrola-se como se nada fosse. Todos brincam a isto, camiões incluídos, grandes inimigos da velocidade, e ao fim de quatro dias, apercebo-me que ainda não vi uma única mota a circular. Sabem que mais? Verei zero em toda a minha estadia. A Polícia vigia tudo isto com o mesmo ar plácido das águas do lago. De vez em quando manda parar algum veículo: se tiveres sorte, és um amigo de longa data; se não tiveres, é provável que fiques sem algum dinheiro para poderes seguir viagem. Ninguém se queixa ou desentende, é a lei aplicada à escala local e afinal estás a centenas de quilómetros de qualquer civilização, que não podes chamar a aldeias de madeira e zinco espraiando-se ao logo de uma rota essa palavra tão cara a um europeu.

Até Karakol, vamos recolhendo também outros passageiros. Isto é, afinal, a RBL cá do sítio. Basta estar à beira da estrada, esticares o dedinho e o condutor pára. Dizes ao que vais e ele dir-te-á como é. Se todos se encolherem, cabem mais; e assim apertados, vemos desfilar numa passerelle de quatro paredes crianças, senhoras idosas e um ou outro pintas que só quer visitar alguns amigos no café da localidade seguinte. A viagem comprida prolonga-se ainda mais e as minhas costas não estão apenas quadradas: já são um cubo onde mal consigo encontrar posição. As poucas paragens que fazemos são para comer e seguir, naquilo que se pode Não durmo há mais de 24 horas, mas as guinadas e quase colisões que se seguem com a regularidade de um metrónomo não me deixam dormir. Consigo manter a sanidade e alguma certeza de que sou eu, e que tudo é real. A imensa extensão do Issyk-Kul coloca em tudo um ar de miragem mirabolante, como se as estradas com bichos e bichos na estrada rugindo com pedais e rodas nem ali estivessem,. As altas montanhas, a terra vermelha e amarela que rodeia as margens, uma estrada que só parece existir na mente descabelada de um autor russo miserabilista conjuram-se na minha cabeça para nem ter a certeza de estar ou existir e quando, onze horas depois de abandonar o aeroporto, damos por nós no nosso objectivo, desço e pergunto-me se é agora que encontro repouso para os restos mortais do meu corpo. 

Não, ainda há aventuras para viver; e julgo de imediato que uma delas será fugir com os meus pertences. Mal a Sprinter estaciona junto ao nosso hotel, o portão de entrada está ocupado por dois homens, jovens, óculos escuros nas trombas num dia em que nuvens cinzentas dão o tom, que cavaqueiam. Podia ser uma cena normal, mas um deles, entre as costas e as calças, mostra uma pistola Colt, que calculo não esteja lá para um disfarce de Walker, o ranger do Texas. Bem vindos a Karakol, cidade entre os mundos russo e chinês, mas que pertence em toda a totalidade à Quinta Dimensão.

sexta-feira, setembro 16, 2016

Cronistão 3: A Oriente, tudo de novo



A Kati é uma amiga húngara que conheço há muitos anos. Para lá de tudo, sempre ocupou um lugar exótico na minha existência: veio do Leste e ficara minha amiga. Ainda hoje, quando falo dela, ser húngara destaca-a de outros que me são conhecidos ou amigos, morando num país lá longe que quase ninguém visitara. Sempre achámos isto curioso entre nós e decidimos uma vez, nuns dias que passámos juntos, fotografar os nossos pés virados de frente, como se acabassem de se conhecer. Era o Ocidente conhecendo o Oriente, se bem que fôssemos ambos europeus. No entanto, historicamente, Viena era a fronteira mental de uma Europa que se pensava civilizada. Tudo o que fosse para lá da capital austríaca era barbárie e desconhecido. Na cabeça de meio continente, quase até ao final do século passado, a Kati, nascida e criada em Budapeste, era tão estrangeira e oriental quanto as especiarias e o chá. Pensei várias vezes naquelas fotos quando aterrei no aeroporto Ataturk, em Istambul, e na minha chegada às portas da Ásia pela primeira vez.

Aeroportos são aeroportos, todos no mesmo esquema; mas basta sair do avião e parar na lounge do Ataturk para perceber que assim não é. O outrora vincado laicismo turco tem-se mostrado permeável à influência religiosa e política de grupos estranhos aos valores da República e pelos corredores desta gigantesca cidade internacional montada no lado europeu de Istambul, vêem-se vestimentas árabes que só estava habituado a olhar nos ecrãs próximos dos olhos, mas longe da acção. A burka é mais comum do que esperava aqui, na verdadeira fronteira entre Oriente e Ocidente, e vê-se nos olhos de muitas das mulheres que se cobrem de cima a baixo uma submissão passiva, não necessariamente exercida por violência, mas por hábito. Em muitos casos, não há silêncio e observam-se casais em amena cavaqueira, se bem que o homem tenha a posição dominante. Ao contrário que imaginava, como ocidental doutrinado na visão do árabe mal parecido e ogre, os homens, na generalidade, são cabeças de família como aqui; nota-se, no entanto, algo diferente. Não sei bem se é religioso ou costumeiro, mas um facilita o outro. A enormidade do aeroporto, no entanto, dilui esta diferença Vê-se tanta cabeço com pés que apesar do choque, tudo é esquecido. Há duas horas para matar antes de apanhar o voo de ligação para Bishkek e o Zé Luís, o guia da expedição e meu amigo, sugere uma volta pelo Ataturk. Certificamo-nos da porta do nosso avião e sei que estou num outro tipo de metrópole quando chego a contar mais de setecentas, uma enormidade. Setecentas descolagens possíveis, todas diferentes, num só espaço. A posição de Istambul na arquitectura geográfica do mundo tem aqui outra prova. Estamos noutro mundo. Para celebrar este exotismo muito próprio, comemos um Big Whopper ao jantar e pagamos em euros.

Depois de quase meia hora de caminho, chegamos à nossa porta. Quando, alguns minutos depois, o nosso avião estiver a fugir do Ataturk, suavemente e sem pressa, darei por mim a espreitar o Bósforo de cima. É uma enormidade, um enxame de pirilampos sem ordem, uma procissão de candeias que se espalha por dois continentes cumprimentando-se através de uma ponte, e fazem parte de um mesmo país, de uma mesma cultura, de um cosmopolitismo que não conheço na minha ponta da Europa e que só observei, muito brevemente, como turista de permeio. Na distância de segurança da altitude, tudo me parece fascinante, mas inerte, e quando vejo com distinção dois continentes separados e unidos, a minha percepção mudou. Não consigo dormir, uma noite branca e em branco, os assentos desconfortáveis ou o meu formigueiro e a mudança de cenário não me deixam sossegar e pregar olho. No ecrã de bordo, as milhas vão queimando, uma atrás da outra. Do topo, passo por Arménia, Geórgia e atravessando o Cáspio, a maior massa de água interior do mundo, entro então nos "-istão", dos Cazaques e dos Uzbeques. "-istão" significa "terra de" e acolhe as etnias originais e povos que aqui habitavam  e sobreviveram à passagem de Genghis Khan, dos Otomanos e dos Soviéticos. Lembro de cabeça o mapa da região e à noite, reconheço todas as principais cidades, faróis urbanos que se destacam na escuridão dos espaços desérticos e mal habitados que dominam as estepes imensas da Ásia Central. É então fácil descobrir Bishkek, já com o sol a avisar o horizonte que chegou o seu turno, e o avião vira para a direita. Não demora até aterrar e naquele baque das rodas, onde o avião parece um nadinha rápido demais mas se estaca com assertividade, estou no "istão" dos Quirguizes.

O aeroporto de Manas (um dos três deste país, pasmem-se) tem o nome de um herói nacional, guerreiro pois está claro. Faz o de Lisboa parecer o de Istambul. Os guardas alfandegários, com os seus chapéus verdes medindo o dobro das suas cabeças, pedem-me o passaporte. É o necessário aqui, não se paga visto e olhando em volta, não somos os únicos ocidentais a chegar, embora a população seja maioritariamente asiática. Quase ninguém fala inglês e o guarda comunica comigo por grunhos e gestos bruscos. Quando abre a boca para falar, é em russo e os olhos amendoados confundem-me, porque a minha mente está condicionada a esperar chilrear oriental. Não sei como disfarço a confusão, mas lá me deixam entrar no país. Presumo que aqui os terroristas não tenham barba, ou então estejam já habituados à presença de hipsters. O Quirguistão ainda não é, de facto, um país mainstream, logo é bem possível.

No aeroporto tratamos logo de uma série de coisas: cartões de telemóvel (as chamadas para o estrangeiro são bem mais baratas por cá) e levantamento de dinheiro. Nenhuma das máquinas multibanco funciona, são quatro e todas em cirílico. Quase tudo o é e a coisa só se leva direita porque o Rogério, um portuense, teve umas aulas de russo há uns anos só por diversão. É ele que ajuda o Zé a explicar a um velhote que parece o actor brasileiro Elias Glazer (ou para os menos familiarizados com novelas brasileiras, o pai do Jeff Goldblum no "Independence day") que somos nove e queremos alugar uma carrinha para nos deslocarmos a Karakol, a quarta maior cidade do país, numa viagem de 400 km sobre quatro rodas.  Não entende e um neto que até se safa em inglês serve de intermediário. A coisa fica combinada: 1500 som à cabeça (o que dá, grosso modo, vinte euros... a CP rouba de catano). Com as bagagens todas reunidas, descobrimos que o nosso transporte é uma Mercedes Sprinter branca. Às sete horas da manhã, Bishkek é já uma cidade feita bafo de calor e mesmo sem entrarmos no centro parece-nos confusa, desorganizada, onde tudo se resolve com buzinadelas, gestos bruscos e vozes que se levantam. É o meu primeiro contacto com o Quirguistão

Não tenho presença de espírito ainda para absorver tudo e quando este cai em mim, com a noção quase surreal e irreverente de que não estou no meio, e nem sequer no meu fim, a carrinha arranca, o aeroporto é reduzido pela distância a uma miragem e durante onze dias, estou aqui eu, mas sendo outro, porque como posso eu viver aqui sendo o mesmo que era além? Ficaria bem aquém do que quero viver. Deixo que o choque me apanhe e quando, nos primeiros cinco minutos, a Mercedes tem quase três encontros frontais não planeados, desconfio que este choque pode muito bem ser literal e mais vespertino do que espero.

quarta-feira, setembro 14, 2016

Cronistão 2: Um estado em espírito



Dizes às pessoas que vais ao Quirguistão e parece que voltam a ser crianças. As perguntas atropelam-se na boca, a língua não se liberta rápido o suficiente para deixar passar as dúvidas que me apontarão num raio, e a primeira não tem sequer seguimento: "O quê?", como se o nome de um país pudesse despertar em alguém tanta incredulidade que faz até duvidar da sua existência. Tal confirma-se pela questão que se costuma seguir: "Isso existe?". Existe pois; "Fica onde?", e num exercício de memória, consigo explicar que assentou acampamento algures na Ásia Central, acho que junto da China, talvez perto da Rússia, pois até pertenceu à União Soviética;

"É perigoso?", desconheço, sabes, mas acho que não. Percebo o teu medo, acaba em "-istão", e nesses países rebenta muita coisa. Este é dos mais calmos, mas não admito assim à cara podre que temo. Pesquisei sobre o mistério deste ponto Q e ouvi falar que se raptam noivas (sorte a minha que tenho pila), há estradas muito manhosas (e sei que numas delas passo de certeza) e em 2013 se registou um caso de peste bubónica. Claro que me apavoro, mas se fugisse de tudo o que pavor me sopra, não me teria partilhado com a D., nem girado em redor de um mundo em forma de L. O medo está lá, mas nós também e muito antes que o temor tomasse tomos de forma; " E porque vais?", ora, porque é bonito. Um amigo meu mostrou-me fotos e eu adoro montanha, encontram-se paisagens daquelas que toma o oxigénio como refém. Para mais, fartei-me de ser conas, e isto não digo alto nem por estas palavras. O código que uso é o de fazer algo que me deixe desconfortável em bom, mas na verdade, há um cansaço do normal, do aceite, do conhecido, do confortável. Quero sofrer a atracção pelo imprevisto e pela pele que não é nossa mas aos poucos, com engelho, vestimos e não se mostra tão estranha e estrangeira assim; "Mas isso tem praia?", Não e qual é o problema?; "Estavas melhor no Algarve", o que interpreto como um auto-recado que o interlocutor dá a si mesmo, assustado com alguém que toma nas mãos decisões incomuns. Seguem-se mais vinte perguntas sobre comidas e bebidas, sobre as pessoas e a religião, sobre o acto de alienação que é pôr os pés no outro lado do mundo quando existe outro tanto de permeio.

Não revelo, claro, mas há uma pontinha de irreverência, uma arrogância aveludado de poder dizer que se esteve em locais em que ninguém conhecido ousa sequer pensar ou sonhar, de trazer até ao amigo e conhecido um pedaço daquilo que se entrevê e se ouve falar. Enquanto arrumava as mochilas, roupa para um lado e escolhia livros para a viagem, pegar na máquina fotográfica conduzia-me a essa ideia de postar fotos do catano, receber elogios, gabarem-me a coragem quando estava a ser egocêntrico nas horas, pelo menos de início. Queria ler e ouvir pessoas gabando o quão diferente era, como sempre quis desde criança, de me tornar menos igual e menos comum. Queria ser especial e na noite antes de partir, entre pernas a tremer e saudades tidas como certas, vi-me aquele intratável adolescente que queria ser diferente a todo o custo só para não ser como os outros. No entanto, sem sabê-lo, o amigo que me deu dormida nessa noite tornou tudo muito mais simples. O Google Maps levou-me ao Quirguistão ainda antes de encontrá-lo, e vimos por alto o que me esperava. Recolhemos informações, gabámos as conquistas de Genghis Khan e o J.P, que me conhece de tempos em que ainda não era tão idiota, sabia que a comida é sempre aquele problema que me torna mais picuinhas do que um recém-nascido e também quis saber o que se comia e, sendo ele quem é, o que se bebia. Na conversa, reconciliei-me com a noção de que sou afinal tantos outros que transformam a curiosidade num desafio e a descoberta do mundo numa pausa da vida, de sair para ali porque o aqui está visto e é casa. Ninguém quer ficar para sempre e é por isso também que saímos do ventre materno: cansamo-nos do mesmo e o ar limpo do exterior arranca-nos com mais força do que o obstetra. Percebi naquela conversa o meu universal dom de ser intrometido na simpatia do alheiro que me é externo.

Acordei bem cedo na manhã seguinte, inspirei mais fundo do que o Poço Negro e sabia que me esperava uma longa viagem, uma noite mais branca que as de Doistoievski e só para dar o tom, encontrámos um par de cuecas no pátio exterior, como se algo me impelisse a preparar para tudo. Quando saí do apartamento, quando entrei no Metro, quando cheguei ao aeroporto e conheci os meus colegas de viagem, apenas o meu corpo ia passar no check-in: o meu espírito pairava a uma altitude superior a qualquer avião e estava já no Quirguistão inquirindo, procurando e na preparação da chegada do que não pode violar as Leis da Física. Não fez sequer escala, voou directo. Estava com energia mais do que suficiente para nem sequer dizer adeus aos pássaros e quando, por volta das onze da manhã, senti aquela transição nos ouvidos, a palmadinha interna que anuncia que passámos a ser aéreos, um pequeno formigueiro eléctrico era mais do que medo ou curiosidade ou mania de ser bom: era uma esperança muito secreta, muito escondida e só minha, de que algures no lá longe encontraria outras versões de mim e que num diálogo entre nós, sairia uma versão muito melhor do Bruno que de Portugal brotava.

quinta-feira, setembro 08, 2016

Cronistão 1: a desistência da memória



Regressar de uma viagem é trazer um mundo escrito em braille. Não chegam os olhos, é preciso mesmo tocar-lhe e o pior é traduzi-lo. Um cartão de fotos, um caderninho de notas ou até palavras com que se tenta reconstruir um edifício de dias feito, ancorado apenas em trapos que deles ficaram num mar em permanente movimento algures na nossa cabeça, são apenas uma cadência ferrugenta e opaca de toda a vertigem do que deixámos lá longe, mas que se faz perto apenas no exercício da memória. Viajar é recordar e recordar é apenas falsear o que de autêntico nos tomou e surge, qual filme, nos vidros da janela, quando olhamos ao longe uma fuga ao tédio e pedimos ajuda a nós mesmos, acumuladores de factos e feitos, fabricantes dos modos de fuga. Foge-se e finge-se, e aos outros arma-se algo de parecido com a realidade, mas que são apenas traços de um quadro maior que se viveu. É o drama maior do viajante magnânimo, querer levar outros connosco e saber que se chegou já atrasado, e que chegar é antónimo de partir: quem nos escuta, quem queremos connosco na aventura ficou em terra e nós ainda no ar desejamos apenas ser o veículo certo das experiências que ficam. Mas é apenas o que lhes sucede, ficar, pois de nós não saem.

O que trago do Quirguistão é apenas pálido manto, um teatro de marionetas em forma de pessoas, simples vultos em pano de fundo de paisagem, e nunca encerrarão momentos despojados que contados surgem anémicos, mas que num tempo presente, foram tudo. Estar parado, sentado, rodeado, e mesmo assim correr livre todos os cantos do pensamento e do registo, fotografar montanhas mas nelas ver muito mais do que um registo de milhões de anos remexidos. Em pequenas notas, tentando concentrar largos traços, pretendo deixar-vos as cenas dessa peça que foi uma viagem de semana e meia a terras com séculos de História e uma realidade que apenas se observa sem se explicar bem o que se viu, e é o que vos dou por adquirido: a minha total inabilidade de vos colocar nas estepes da Ásia Central e uma certeza inabalável de vos deixar uma porta aberta para a futilidade destas pequeninas crónicas. Convençam-se de que não vão viajar: são apenas turistas na realidade do acto, no lugar do pendura e vendo a minha realidade em vidros foscos. Entre as sombras e as formas, está um país chamado Quirguistão.

E é isto que tenho para oferecer