sexta-feira, setembro 16, 2016

Cronistão 3: A Oriente, tudo de novo



A Kati é uma amiga húngara que conheço há muitos anos. Para lá de tudo, sempre ocupou um lugar exótico na minha existência: veio do Leste e ficara minha amiga. Ainda hoje, quando falo dela, ser húngara destaca-a de outros que me são conhecidos ou amigos, morando num país lá longe que quase ninguém visitara. Sempre achámos isto curioso entre nós e decidimos uma vez, nuns dias que passámos juntos, fotografar os nossos pés virados de frente, como se acabassem de se conhecer. Era o Ocidente conhecendo o Oriente, se bem que fôssemos ambos europeus. No entanto, historicamente, Viena era a fronteira mental de uma Europa que se pensava civilizada. Tudo o que fosse para lá da capital austríaca era barbárie e desconhecido. Na cabeça de meio continente, quase até ao final do século passado, a Kati, nascida e criada em Budapeste, era tão estrangeira e oriental quanto as especiarias e o chá. Pensei várias vezes naquelas fotos quando aterrei no aeroporto Ataturk, em Istambul, e na minha chegada às portas da Ásia pela primeira vez.

Aeroportos são aeroportos, todos no mesmo esquema; mas basta sair do avião e parar na lounge do Ataturk para perceber que assim não é. O outrora vincado laicismo turco tem-se mostrado permeável à influência religiosa e política de grupos estranhos aos valores da República e pelos corredores desta gigantesca cidade internacional montada no lado europeu de Istambul, vêem-se vestimentas árabes que só estava habituado a olhar nos ecrãs próximos dos olhos, mas longe da acção. A burka é mais comum do que esperava aqui, na verdadeira fronteira entre Oriente e Ocidente, e vê-se nos olhos de muitas das mulheres que se cobrem de cima a baixo uma submissão passiva, não necessariamente exercida por violência, mas por hábito. Em muitos casos, não há silêncio e observam-se casais em amena cavaqueira, se bem que o homem tenha a posição dominante. Ao contrário que imaginava, como ocidental doutrinado na visão do árabe mal parecido e ogre, os homens, na generalidade, são cabeças de família como aqui; nota-se, no entanto, algo diferente. Não sei bem se é religioso ou costumeiro, mas um facilita o outro. A enormidade do aeroporto, no entanto, dilui esta diferença Vê-se tanta cabeço com pés que apesar do choque, tudo é esquecido. Há duas horas para matar antes de apanhar o voo de ligação para Bishkek e o Zé Luís, o guia da expedição e meu amigo, sugere uma volta pelo Ataturk. Certificamo-nos da porta do nosso avião e sei que estou num outro tipo de metrópole quando chego a contar mais de setecentas, uma enormidade. Setecentas descolagens possíveis, todas diferentes, num só espaço. A posição de Istambul na arquitectura geográfica do mundo tem aqui outra prova. Estamos noutro mundo. Para celebrar este exotismo muito próprio, comemos um Big Whopper ao jantar e pagamos em euros.

Depois de quase meia hora de caminho, chegamos à nossa porta. Quando, alguns minutos depois, o nosso avião estiver a fugir do Ataturk, suavemente e sem pressa, darei por mim a espreitar o Bósforo de cima. É uma enormidade, um enxame de pirilampos sem ordem, uma procissão de candeias que se espalha por dois continentes cumprimentando-se através de uma ponte, e fazem parte de um mesmo país, de uma mesma cultura, de um cosmopolitismo que não conheço na minha ponta da Europa e que só observei, muito brevemente, como turista de permeio. Na distância de segurança da altitude, tudo me parece fascinante, mas inerte, e quando vejo com distinção dois continentes separados e unidos, a minha percepção mudou. Não consigo dormir, uma noite branca e em branco, os assentos desconfortáveis ou o meu formigueiro e a mudança de cenário não me deixam sossegar e pregar olho. No ecrã de bordo, as milhas vão queimando, uma atrás da outra. Do topo, passo por Arménia, Geórgia e atravessando o Cáspio, a maior massa de água interior do mundo, entro então nos "-istão", dos Cazaques e dos Uzbeques. "-istão" significa "terra de" e acolhe as etnias originais e povos que aqui habitavam  e sobreviveram à passagem de Genghis Khan, dos Otomanos e dos Soviéticos. Lembro de cabeça o mapa da região e à noite, reconheço todas as principais cidades, faróis urbanos que se destacam na escuridão dos espaços desérticos e mal habitados que dominam as estepes imensas da Ásia Central. É então fácil descobrir Bishkek, já com o sol a avisar o horizonte que chegou o seu turno, e o avião vira para a direita. Não demora até aterrar e naquele baque das rodas, onde o avião parece um nadinha rápido demais mas se estaca com assertividade, estou no "istão" dos Quirguizes.

O aeroporto de Manas (um dos três deste país, pasmem-se) tem o nome de um herói nacional, guerreiro pois está claro. Faz o de Lisboa parecer o de Istambul. Os guardas alfandegários, com os seus chapéus verdes medindo o dobro das suas cabeças, pedem-me o passaporte. É o necessário aqui, não se paga visto e olhando em volta, não somos os únicos ocidentais a chegar, embora a população seja maioritariamente asiática. Quase ninguém fala inglês e o guarda comunica comigo por grunhos e gestos bruscos. Quando abre a boca para falar, é em russo e os olhos amendoados confundem-me, porque a minha mente está condicionada a esperar chilrear oriental. Não sei como disfarço a confusão, mas lá me deixam entrar no país. Presumo que aqui os terroristas não tenham barba, ou então estejam já habituados à presença de hipsters. O Quirguistão ainda não é, de facto, um país mainstream, logo é bem possível.

No aeroporto tratamos logo de uma série de coisas: cartões de telemóvel (as chamadas para o estrangeiro são bem mais baratas por cá) e levantamento de dinheiro. Nenhuma das máquinas multibanco funciona, são quatro e todas em cirílico. Quase tudo o é e a coisa só se leva direita porque o Rogério, um portuense, teve umas aulas de russo há uns anos só por diversão. É ele que ajuda o Zé a explicar a um velhote que parece o actor brasileiro Elias Glazer (ou para os menos familiarizados com novelas brasileiras, o pai do Jeff Goldblum no "Independence day") que somos nove e queremos alugar uma carrinha para nos deslocarmos a Karakol, a quarta maior cidade do país, numa viagem de 400 km sobre quatro rodas.  Não entende e um neto que até se safa em inglês serve de intermediário. A coisa fica combinada: 1500 som à cabeça (o que dá, grosso modo, vinte euros... a CP rouba de catano). Com as bagagens todas reunidas, descobrimos que o nosso transporte é uma Mercedes Sprinter branca. Às sete horas da manhã, Bishkek é já uma cidade feita bafo de calor e mesmo sem entrarmos no centro parece-nos confusa, desorganizada, onde tudo se resolve com buzinadelas, gestos bruscos e vozes que se levantam. É o meu primeiro contacto com o Quirguistão

Não tenho presença de espírito ainda para absorver tudo e quando este cai em mim, com a noção quase surreal e irreverente de que não estou no meio, e nem sequer no meu fim, a carrinha arranca, o aeroporto é reduzido pela distância a uma miragem e durante onze dias, estou aqui eu, mas sendo outro, porque como posso eu viver aqui sendo o mesmo que era além? Ficaria bem aquém do que quero viver. Deixo que o choque me apanhe e quando, nos primeiros cinco minutos, a Mercedes tem quase três encontros frontais não planeados, desconfio que este choque pode muito bem ser literal e mais vespertino do que espero.

Sem comentários: