quinta-feira, setembro 08, 2016

Cronistão 1: a desistência da memória



Regressar de uma viagem é trazer um mundo escrito em braille. Não chegam os olhos, é preciso mesmo tocar-lhe e o pior é traduzi-lo. Um cartão de fotos, um caderninho de notas ou até palavras com que se tenta reconstruir um edifício de dias feito, ancorado apenas em trapos que deles ficaram num mar em permanente movimento algures na nossa cabeça, são apenas uma cadência ferrugenta e opaca de toda a vertigem do que deixámos lá longe, mas que se faz perto apenas no exercício da memória. Viajar é recordar e recordar é apenas falsear o que de autêntico nos tomou e surge, qual filme, nos vidros da janela, quando olhamos ao longe uma fuga ao tédio e pedimos ajuda a nós mesmos, acumuladores de factos e feitos, fabricantes dos modos de fuga. Foge-se e finge-se, e aos outros arma-se algo de parecido com a realidade, mas que são apenas traços de um quadro maior que se viveu. É o drama maior do viajante magnânimo, querer levar outros connosco e saber que se chegou já atrasado, e que chegar é antónimo de partir: quem nos escuta, quem queremos connosco na aventura ficou em terra e nós ainda no ar desejamos apenas ser o veículo certo das experiências que ficam. Mas é apenas o que lhes sucede, ficar, pois de nós não saem.

O que trago do Quirguistão é apenas pálido manto, um teatro de marionetas em forma de pessoas, simples vultos em pano de fundo de paisagem, e nunca encerrarão momentos despojados que contados surgem anémicos, mas que num tempo presente, foram tudo. Estar parado, sentado, rodeado, e mesmo assim correr livre todos os cantos do pensamento e do registo, fotografar montanhas mas nelas ver muito mais do que um registo de milhões de anos remexidos. Em pequenas notas, tentando concentrar largos traços, pretendo deixar-vos as cenas dessa peça que foi uma viagem de semana e meia a terras com séculos de História e uma realidade que apenas se observa sem se explicar bem o que se viu, e é o que vos dou por adquirido: a minha total inabilidade de vos colocar nas estepes da Ásia Central e uma certeza inabalável de vos deixar uma porta aberta para a futilidade destas pequeninas crónicas. Convençam-se de que não vão viajar: são apenas turistas na realidade do acto, no lugar do pendura e vendo a minha realidade em vidros foscos. Entre as sombras e as formas, está um país chamado Quirguistão.

E é isto que tenho para oferecer

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