quarta-feira, setembro 14, 2016

Cronistão 2: Um estado em espírito



Dizes às pessoas que vais ao Quirguistão e parece que voltam a ser crianças. As perguntas atropelam-se na boca, a língua não se liberta rápido o suficiente para deixar passar as dúvidas que me apontarão num raio, e a primeira não tem sequer seguimento: "O quê?", como se o nome de um país pudesse despertar em alguém tanta incredulidade que faz até duvidar da sua existência. Tal confirma-se pela questão que se costuma seguir: "Isso existe?". Existe pois; "Fica onde?", e num exercício de memória, consigo explicar que assentou acampamento algures na Ásia Central, acho que junto da China, talvez perto da Rússia, pois até pertenceu à União Soviética;

"É perigoso?", desconheço, sabes, mas acho que não. Percebo o teu medo, acaba em "-istão", e nesses países rebenta muita coisa. Este é dos mais calmos, mas não admito assim à cara podre que temo. Pesquisei sobre o mistério deste ponto Q e ouvi falar que se raptam noivas (sorte a minha que tenho pila), há estradas muito manhosas (e sei que numas delas passo de certeza) e em 2013 se registou um caso de peste bubónica. Claro que me apavoro, mas se fugisse de tudo o que pavor me sopra, não me teria partilhado com a D., nem girado em redor de um mundo em forma de L. O medo está lá, mas nós também e muito antes que o temor tomasse tomos de forma; " E porque vais?", ora, porque é bonito. Um amigo meu mostrou-me fotos e eu adoro montanha, encontram-se paisagens daquelas que toma o oxigénio como refém. Para mais, fartei-me de ser conas, e isto não digo alto nem por estas palavras. O código que uso é o de fazer algo que me deixe desconfortável em bom, mas na verdade, há um cansaço do normal, do aceite, do conhecido, do confortável. Quero sofrer a atracção pelo imprevisto e pela pele que não é nossa mas aos poucos, com engelho, vestimos e não se mostra tão estranha e estrangeira assim; "Mas isso tem praia?", Não e qual é o problema?; "Estavas melhor no Algarve", o que interpreto como um auto-recado que o interlocutor dá a si mesmo, assustado com alguém que toma nas mãos decisões incomuns. Seguem-se mais vinte perguntas sobre comidas e bebidas, sobre as pessoas e a religião, sobre o acto de alienação que é pôr os pés no outro lado do mundo quando existe outro tanto de permeio.

Não revelo, claro, mas há uma pontinha de irreverência, uma arrogância aveludado de poder dizer que se esteve em locais em que ninguém conhecido ousa sequer pensar ou sonhar, de trazer até ao amigo e conhecido um pedaço daquilo que se entrevê e se ouve falar. Enquanto arrumava as mochilas, roupa para um lado e escolhia livros para a viagem, pegar na máquina fotográfica conduzia-me a essa ideia de postar fotos do catano, receber elogios, gabarem-me a coragem quando estava a ser egocêntrico nas horas, pelo menos de início. Queria ler e ouvir pessoas gabando o quão diferente era, como sempre quis desde criança, de me tornar menos igual e menos comum. Queria ser especial e na noite antes de partir, entre pernas a tremer e saudades tidas como certas, vi-me aquele intratável adolescente que queria ser diferente a todo o custo só para não ser como os outros. No entanto, sem sabê-lo, o amigo que me deu dormida nessa noite tornou tudo muito mais simples. O Google Maps levou-me ao Quirguistão ainda antes de encontrá-lo, e vimos por alto o que me esperava. Recolhemos informações, gabámos as conquistas de Genghis Khan e o J.P, que me conhece de tempos em que ainda não era tão idiota, sabia que a comida é sempre aquele problema que me torna mais picuinhas do que um recém-nascido e também quis saber o que se comia e, sendo ele quem é, o que se bebia. Na conversa, reconciliei-me com a noção de que sou afinal tantos outros que transformam a curiosidade num desafio e a descoberta do mundo numa pausa da vida, de sair para ali porque o aqui está visto e é casa. Ninguém quer ficar para sempre e é por isso também que saímos do ventre materno: cansamo-nos do mesmo e o ar limpo do exterior arranca-nos com mais força do que o obstetra. Percebi naquela conversa o meu universal dom de ser intrometido na simpatia do alheiro que me é externo.

Acordei bem cedo na manhã seguinte, inspirei mais fundo do que o Poço Negro e sabia que me esperava uma longa viagem, uma noite mais branca que as de Doistoievski e só para dar o tom, encontrámos um par de cuecas no pátio exterior, como se algo me impelisse a preparar para tudo. Quando saí do apartamento, quando entrei no Metro, quando cheguei ao aeroporto e conheci os meus colegas de viagem, apenas o meu corpo ia passar no check-in: o meu espírito pairava a uma altitude superior a qualquer avião e estava já no Quirguistão inquirindo, procurando e na preparação da chegada do que não pode violar as Leis da Física. Não fez sequer escala, voou directo. Estava com energia mais do que suficiente para nem sequer dizer adeus aos pássaros e quando, por volta das onze da manhã, senti aquela transição nos ouvidos, a palmadinha interna que anuncia que passámos a ser aéreos, um pequeno formigueiro eléctrico era mais do que medo ou curiosidade ou mania de ser bom: era uma esperança muito secreta, muito escondida e só minha, de que algures no lá longe encontraria outras versões de mim e que num diálogo entre nós, sairia uma versão muito melhor do Bruno que de Portugal brotava.

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