Hoje em dia, o maior perigo de morte que se reflecte nas águas azuis, profundas e aparentemente frias do lago não é a hipotermia (algo que parece não afectar os Quirguizes, que se banham aqui como quem está em Aljezur): é a peste motora. A rede viária do país foi desenhada a régua e esquadro, com rectas intermináveis e curvas bastante subtis. Quase todas as estradas contornam as montanhas, e as modalidades de piso são três: alcatrão nas vias que ligam cidades importantes; macadame e pedra em estradas secundárias; e nos caminhos do fim do mundo, existe gravilha, terra batida e qualquer tipo de pedra que caia das montanhas que habitualmente são atravessadas por estes caminhos de cabras, pois a elas pertencem, mas também de vacas e cavalos. Ocasionalmente, encontramos pedaços de caminho "em obras", que significam simplesmente que nos espera um lençol de flanela onde um grupo de traças decidiu fazer uma despedida de solteiro.
O condutor da nossa Sprinter desvia-se dos obstáculos ocasionais como quem faz uma gincana e cedo nos apercebemos que as regras da ultrapassagem são bem diferentes: a carrinha mete o nariz, enche-se o peito, passa-se à rasa. Três veículos ultrapassando-se em simultâneo rumando em sentidos opostos é um costume e cinco serão record olímpico e algo a que assistirei ainda por estas terras. A existência de uma mente comum quirguiz é postulada, até porque nunca se vêem choques frontais onde as leis da Física tornam obrigatório que existam. Acontece um desvio de última hora e o trânsito desenrola-se como se nada fosse. Todos brincam a isto, camiões incluídos, grandes inimigos da velocidade, e ao fim de quatro dias, apercebo-me que ainda não vi uma única mota a circular. Sabem que mais? Verei zero em toda a minha estadia. A Polícia vigia tudo isto com o mesmo ar plácido das águas do lago. De vez em quando manda parar algum veículo: se tiveres sorte, és um amigo de longa data; se não tiveres, é provável que fiques sem algum dinheiro para poderes seguir viagem. Ninguém se queixa ou desentende, é a lei aplicada à escala local e afinal estás a centenas de quilómetros de qualquer civilização, que não podes chamar a aldeias de madeira e zinco espraiando-se ao logo de uma rota essa palavra tão cara a um europeu.
Até Karakol, vamos recolhendo também outros passageiros. Isto é, afinal, a RBL cá do sítio. Basta estar à beira da estrada, esticares o dedinho e o condutor pára. Dizes ao que vais e ele dir-te-á como é. Se todos se encolherem, cabem mais; e assim apertados, vemos desfilar numa passerelle de quatro paredes crianças, senhoras idosas e um ou outro pintas que só quer visitar alguns amigos no café da localidade seguinte. A viagem comprida prolonga-se ainda mais e as minhas costas não estão apenas quadradas: já são um cubo onde mal consigo encontrar posição. As poucas paragens que fazemos são para comer e seguir, naquilo que se pode Não durmo há mais de 24 horas, mas as guinadas e quase colisões que se seguem com a regularidade de um metrónomo não me deixam dormir. Consigo manter a sanidade e alguma certeza de que sou eu, e que tudo é real. A imensa extensão do Issyk-Kul coloca em tudo um ar de miragem mirabolante, como se as estradas com bichos e bichos na estrada rugindo com pedais e rodas nem ali estivessem,. As altas montanhas, a terra vermelha e amarela que rodeia as margens, uma estrada que só parece existir na mente descabelada de um autor russo miserabilista conjuram-se na minha cabeça para nem ter a certeza de estar ou existir e quando, onze horas depois de abandonar o aeroporto, damos por nós no nosso objectivo, desço e pergunto-me se é agora que encontro repouso para os restos mortais do meu corpo.
Não, ainda há aventuras para viver; e julgo de imediato que uma delas será fugir com os meus pertences. Mal a Sprinter estaciona junto ao nosso hotel, o portão de entrada está ocupado por dois homens, jovens, óculos escuros nas trombas num dia em que nuvens cinzentas dão o tom, que cavaqueiam. Podia ser uma cena normal, mas um deles, entre as costas e as calças, mostra uma pistola Colt, que calculo não esteja lá para um disfarce de Walker, o ranger do Texas. Bem vindos a Karakol, cidade entre os mundos russo e chinês, mas que pertence em toda a totalidade à Quinta Dimensão.
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