terça-feira, setembro 20, 2016

Cronistão 4: Dar de beber aos cavalos



Nunca vira um lago com linha do horizonte, mas é primeira vez de muitas primeiras desta viagem. A estrada que liga Bishkek a Karakol estende-se pela margem norte do Issyk-Kul, um mastodonte aquático que impressiona pelo tamanho e também por ser a referência mais próxima que este país trancado na Ásia Central possui como mar. Cheguei a perguntar, posteriormente, a quirguizes se alguma vez os seus olhos lhes tinham revelado a benesse do oceano. Não, disseram-me todos, mas temos o grande Issyk-Kul; e lá enorme é ele: 182 km de comprimento, 60 km de lago, o segundo maior lago em altitude do mundo (a seguir ao Titicaca) e também vice-campeão em lagos salinos em volume (apenas ultrapassado pelo Cáspio, esse intrujão que se faz passar por mar, mas que, por ser uma massa de água sem qualquer contacto com outras, é de verdade um lago). Situado aos 1500 metros de altitude e rodeado pelas montanhas da cordilheira mágica do Tien-Shan, que me fará companhia nos próximos dias, nunca congela. Desde os tempos soviéticos que se estabeleceu como um dos destinos balneares de eleição do grande império russo imaginário e pelo caminho, vemos algumas datchas e bungalows para turista frequentar. O que muitos desconhecem é que terá sido aqui, pelo papel fulcral no percurso da Rota da Seda, que surgiu a Peste Negra, levada pelos mercadores orientais até à Europa, para espalhar mortandade.

Hoje em dia, o maior perigo de morte que se reflecte nas águas azuis, profundas e aparentemente frias do lago não é a hipotermia (algo que parece não afectar os Quirguizes, que se banham aqui como quem está em Aljezur): é a peste motora. A rede viária do país foi desenhada a régua e esquadro, com rectas intermináveis e curvas bastante subtis. Quase todas as estradas contornam as montanhas, e as modalidades de piso são três: alcatrão nas vias que ligam cidades importantes; macadame e pedra em estradas secundárias; e nos caminhos do fim do mundo, existe gravilha, terra batida e qualquer tipo de pedra que caia das montanhas que habitualmente são atravessadas por estes caminhos de cabras, pois a elas pertencem, mas também de vacas e cavalos. Ocasionalmente, encontramos pedaços de caminho "em obras", que significam simplesmente que nos espera um lençol de flanela onde um grupo de traças decidiu fazer uma despedida de solteiro. 

O condutor da nossa Sprinter  desvia-se dos obstáculos ocasionais como quem faz uma gincana e cedo nos apercebemos que as regras da ultrapassagem são bem diferentes: a carrinha mete o nariz, enche-se o peito, passa-se à rasa. Três veículos ultrapassando-se em simultâneo rumando em sentidos opostos é um costume e cinco serão record olímpico e algo a que assistirei ainda por estas terras. A existência de uma mente comum quirguiz é postulada, até porque nunca se vêem choques frontais onde as leis da Física tornam obrigatório que existam. Acontece um desvio de última hora e o trânsito desenrola-se como se nada fosse. Todos brincam a isto, camiões incluídos, grandes inimigos da velocidade, e ao fim de quatro dias, apercebo-me que ainda não vi uma única mota a circular. Sabem que mais? Verei zero em toda a minha estadia. A Polícia vigia tudo isto com o mesmo ar plácido das águas do lago. De vez em quando manda parar algum veículo: se tiveres sorte, és um amigo de longa data; se não tiveres, é provável que fiques sem algum dinheiro para poderes seguir viagem. Ninguém se queixa ou desentende, é a lei aplicada à escala local e afinal estás a centenas de quilómetros de qualquer civilização, que não podes chamar a aldeias de madeira e zinco espraiando-se ao logo de uma rota essa palavra tão cara a um europeu.

Até Karakol, vamos recolhendo também outros passageiros. Isto é, afinal, a RBL cá do sítio. Basta estar à beira da estrada, esticares o dedinho e o condutor pára. Dizes ao que vais e ele dir-te-á como é. Se todos se encolherem, cabem mais; e assim apertados, vemos desfilar numa passerelle de quatro paredes crianças, senhoras idosas e um ou outro pintas que só quer visitar alguns amigos no café da localidade seguinte. A viagem comprida prolonga-se ainda mais e as minhas costas não estão apenas quadradas: já são um cubo onde mal consigo encontrar posição. As poucas paragens que fazemos são para comer e seguir, naquilo que se pode Não durmo há mais de 24 horas, mas as guinadas e quase colisões que se seguem com a regularidade de um metrónomo não me deixam dormir. Consigo manter a sanidade e alguma certeza de que sou eu, e que tudo é real. A imensa extensão do Issyk-Kul coloca em tudo um ar de miragem mirabolante, como se as estradas com bichos e bichos na estrada rugindo com pedais e rodas nem ali estivessem,. As altas montanhas, a terra vermelha e amarela que rodeia as margens, uma estrada que só parece existir na mente descabelada de um autor russo miserabilista conjuram-se na minha cabeça para nem ter a certeza de estar ou existir e quando, onze horas depois de abandonar o aeroporto, damos por nós no nosso objectivo, desço e pergunto-me se é agora que encontro repouso para os restos mortais do meu corpo. 

Não, ainda há aventuras para viver; e julgo de imediato que uma delas será fugir com os meus pertences. Mal a Sprinter estaciona junto ao nosso hotel, o portão de entrada está ocupado por dois homens, jovens, óculos escuros nas trombas num dia em que nuvens cinzentas dão o tom, que cavaqueiam. Podia ser uma cena normal, mas um deles, entre as costas e as calças, mostra uma pistola Colt, que calculo não esteja lá para um disfarce de Walker, o ranger do Texas. Bem vindos a Karakol, cidade entre os mundos russo e chinês, mas que pertence em toda a totalidade à Quinta Dimensão.

Sem comentários: