O Marks é um tipo meio franzino, não muito diferente de muitos indivíduos bronzeados que durante o Verão são pescadores e o resto do ano fazem uns biscates: a pele engelhada, o passo gingão, os gestos feitos à laia de comunicação são tão portugueses quanto quirguizes e quando se apresenta vestido como um golfista escocês a pretexto de ser o nosso condutor de uma viagem longuíssima entre Naryn e Osh, nem acredito. Desenvolto, pega nas nossas mochilas e malas para arrumar no carro. São seis e meia da manhã e depois de um pequeno-almoço tomado, é hora de sair. Marks tem colegas, vamos em dois carros, mas é ele quem lidera a pandilha e gosta de enturmar. Quando paramos para apreciar a paisagem, quer tirar-nos fotos; ganha confiança suficiente para nos pedir para aparecer, e depois nem pede. Não é ostensivo, é apenas um tipo muito à vontade com as coisas e meio diferente de todos aqueles locais que não sendo rudes, são distantes. Marks gosta de amigos e sabe apreciar a viagem. Não faz má cara quando lhe dizemos que queremos fotografar e ainda recomenda dois ou três sítios bem catitas para captar as montanhas.
Na sua cabeça, não faz um trabalho: calhou ter um carro e malta estrangeira precisando de boleia. No entanto, fica claro que a viagem não é nossa, mas dele. Numa descida em gravilha, Marks vai com cuidado, mas ao aperceber-se de outra viatura em sentido contrário, parece dirigir-se ao seu encontro. inicialmente, achamos que se está a meter connosco, mas a trajectória não muda um nico, e o outro condutor apresenta a mesma atitude relaxada. Noto que estamos na beirinha da estrada e que mais dois centímetros e a beirinha é um à beira de cair umas boas dezenas de metros. Não falo a sua língua, mas digo o seu nome e Marks só sorri. A colisão é iminente e finalmente o segundo carro guina para a direita, deixando que o nosso passe. Marks trava de súbito. Entre nós, há olhares de terror partilhados, alguma perplexidade e quando o nosso amigo abe a porta com velocidade e sai disparado, preparo a máquina para o modo de movimento: vou assistir com certeza a pancadaria. Falso alarme: Marks abraça o outro condutor e afinal, são amigos. Era uma brincadeira, porque aqui a morte é um passatempo quando o tédio não pode ser opção. Insistem que lhes tiremos fotos, ambos nos dão endereços online e marram no envio das imagens, garantimos que sim, mas posso dizer que meses depois ainda não receberam nada. O amigo de Marks deixa-nos ver o seu Honda verde escuro e lá dentro, uma mulher toma conta de umas sete ou oito crianças, duas delas bebés de colo. Ela tem um ar meio desolado e a visão das máquinas fotográficas esbofeteia-lhe a cara.
Alguns quilómetros depois, após certas montanhas nos terem deixado abananados, Marks desce-nos à terra e envereda por um caminho que conduz a uma aldeia circunspecta. Paramos aqui? Sim, e se ao início a perplexidade nos invade, a constatação de que estamos no local de origem do nosso Marks deixa-nos sorridentes. Somos encaminhados até sua casa, conhecemos a mãe e uns familiares e convida-nos a partilhar mesa e comida. Eu conheço-me e evito um possível incidente diplomático recusando com simpatia a oferta. A maior parte do grupo comunga do momento e pão, queijo e leite fermentado trocam de mãos. Parece que nos conhecemos há algum tempo e no entanto faz seis horas que saímos de Naryn, e nem sabemos bem quanto falta para Osh. Haverá branca pelo meio, com uns carros, e um condutor idoso cuja adrenalina já não funciona enquanto se arma em Mad Max, mas naquele momento não sabemos e naquela casa de tijolo, que vai a maio de uma reconstrução, tudo é agradável e pacífico e nem uma insinuação para que deixemos uma moedinha estrada aquela aparência de comunhão mundial. Penso em como viajar é também isto, estar com quem não se conhece e fingir a plenitude da proximidade, falsa e oca, mas agradável. Cumprimentar velhos amigos de segundos e alapar nos azulejos de alguém com quem nem sequer conseguimos comunicar. Sairmos de nós, mais do que sairmos de algures: é assim que defino viajar.