Reencontraremos o alcatrão uns bons quilómetros à frente, mas só depois de entrar na montanha russa: sobe-se e desce-se, enormes rectas debaixo do sol, 14 cotovelos em curva sob granizo inclemente em Agosto, a luz dançando nas frinchas das montanhas, tapa e descobre das nuvens, fileiras de montes alinhadas geometricamente como pedaços de um lego que ninguém montou e parece ter brotado do chão. A viagem demora umas oito horas e quando damos com as vermelhas elevações que rodeiam Naryn, passando um túnel que as atravessa, sabemos que estamos perto. Esta cidade foi outrora vital na Rota da Seda - estamos a menos de 100 km da China e a maior parte dos turistas que se aventuram por esta região juntam todos estes "istões" num pacote. Naryn é ponto de passagem obrigatório para quem chega e vai, por uma questão prática. Deve o nome a um rio que a atravessa e é atravessada por uma longa avenida chamada Lenin, através da qual descobrimos que o grande papá comunista deixou uma grande impressão neste local: simbologia da época, bustos e estátuas... A Avenida é larga e limpa e apenas quando perdemos algum tempo a percorrê-la a pé nos apercebemos de que a cidade esconde perpendiculares onde domina o entulho. No entanto, vemos crianças a brincar felizes, pessoas vendendo fruta e legumes num mercado espontâneo, mulheres que à janela estendem roupa e nos acenam, um velhote bêbado metendo conversa em russo com gente que só fala a língua de Camões e Chagas Freitas. Acho sempre incrível como estas pessoas passam por cima de dificuldades e obstáculos que me fariam queixar durante minutos a fio e simplesmente vivem e fazem o melhor que podem com isso.
Quando regresso ao hotel, aproveito para visitar a sala de estar, que a há. Uma jovem vê um reality show local com o namorado e não querendo perturbar, sento-me numa poltrona fora da sala, onde converso com quem cá está. Vejo passar várias pessoas, de várias cores e vestimentas e penso como mesmo numa cidade de passagem, sem grandes pontos de aparente interesse, se encontram mundos e imagino as histórias que cada um ofereceria se nos sentássemos a conversar. Penso em como as viagens são mais do que o chão que se pisa e as paisagens que se colam à retina, de como deixamos outro tipo de vestígios que não biológicos e que as pessoas e os olhares também ficam connosco e se explicam ainda menos do que as emoções. Esteve-se e observou-se, contactou mesmo sem falar e quando no fim de um dia o cansaço se esbate e o nosso corpo se entrega à cama, parece que no quarto pairam também essas vozes e experiências e que só dormimos mesmo sozinhos se não pensarmos em outrem, ou não nos recordarmos que nos milhares de distância que nos separam de quem conhecemos, existe uma viagem constante de afectos. Desligo o telemóvel pouco depois de ler o teu beijo e quando adormeço, tenho a certeza prática de tê-lo sentido nos lábios.
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