sexta-feira, outubro 14, 2016
Cronistão 10: Banquetes
Fiz 20 anos de escutismo, grosso modo, e já dormi em várias modalidades de barbárie controlada. Tendas pequeninas e grandes, igloos e canadianas, o relento verdadeiro com cúpula pintada pela noite e casinhas grandes e pequenas onde só dormem os bichos, e até tenho para contar coretos e bancas do peixe. Já dormi em quase todo o género de locais que possam pensar, até camas. No entanto, foi a primeira vez que chamei refúgio a um Yurt, circular e branco, uma fortaleza de lona que parece querer sumir ao primeiro sopro ventoso, mas resiste sólido e protector, prometeu a quem o ergueu que não me ia deixar mal e assim é. Por fora impera o pálido monocromático, mas desvenda-se o panal que tapa a entrada e há um festival de cores, espalhadas em múltiplos tons, retalhos irmãos que formam cobertores por debaixo de mim, posteriormente por cima de mim e até em meu redor. A tenda é para 5 e mais tarde dormiremos encostadinhos, principalmente quando chegarmos de uma sessão de fotografia nocturna às estrelas que nos deixará cones de gelado. Mas agora o sol acabou de se pôr e estou no umbigo deste pequeno mundo interior, com toda a gente arrumando e desarrumando e eu simplesmente abstraio-me. Apenas regresso a mim quando chamam para jantar, e o o restaurante é igualzinho, branco por fora e espirro colorido por dentro. Variedades de comida espalham-se por uma mesa horizontal e corrida, frutos secos, pão compotas, biscoitos, rebuçados, salgados e carne seca, até que chega o prato principal que é um peixe enigma, pergunto-lhe como foi preparado e não me sabe responder. Na minha boca, segreda-me água doce e sei desde logo que veio do mesmo lago que fotografei anteriormente, O que deliciou os meus olhos consola agora o meu estômago e confunde-me a boca. O pão é também grande amigos para alguém como eu que sempre viu na comida um alçapão de incómodo.
A noite de sono que se segue é interrompida por um metrónomo sonoro, batuques de dedos no tecto do Yurt. No meu estremunho, identifico chuva e o meu corpo simplesmente se estira, relaxa, goza o prazer de estar tão longe de tudo com um prazer que me faz regressar a casa. Sinto isto sem pensar, e virando-me para outro lado como que apago e quando regresso a mim consciente, já são seis e meia da manhã. Sou chamado pelo despertador do telemóvel para fotografar. Vestido a rigor para um baile de baixa temperatura, sinto que o Yurt foi afinal nave voadora e aterrei noutro lugar. O cenário rochoso que me rodeava no dia anterior está agora aconchegado por um grosso lençol de neve, como se o meu sono fosse de hibernação e despertasse num Inverno permanente. Receio até caminhar, com medo de que esta viagem esteja ainda a decorrer, mas uso a máquina para fixar isto, ninguém acreditaria se contasse a diferença que seis ou sete horas podem fazer num local. As nuvens cinzentas quase me despenteiam com dedos e o lago reflecte a sua cor e murcha o verde dos pastos. Cavalos aproximam-se da água e param, ruminando a verdura, dispondo-se em contas geométricas, cada um a sua própria manada. São arcos defronte da escuridão das águas, contra-luz da brancura das neves e funcionam como uma demarcação entre terra, lago e céu, garantindo que são reais, mas em simultâneo aumentando a irrealidade desta visão. Enquanto caminho fotografo e vejo, ao longe, a luz solar furando de quando em vez, procurando aquecer-nos. O frio é uma capa que me desconforta, mas afirma vida em mim. Clico tantas vezes que a máquina corre o risco de se partir e quando sou insignificante aos olhos de uma montanha tão invencível que esmaga sem tocar, sento-me na terra aveludada, acolhedora e choro sem ninguém ver, porque não consigo suportar tanta beleza sem ter uma reacção física que me trema de alicerce a telhado, o mundo como uma casa tão inatingível que só consigo lá viver abdicando da minha armadura. Cada lágrima é uma benção e um agradecimento, uma alegria por estar vivo neste momento, longe de tudo o que não vale a pena e ser prisioneiro voluntário de um carcereiro chamado mundo. São coisas do mundo, que não se podem ver ao longe, como dizia a canção... e com a voz que me resta, não vou saber contar. Restam-me imagens, fotos e este sal que salta de mim porque sou demasiado imperfeito. Corre para o esplendor que o arrancou e é seu.
Subitamente, levo dezenas de calduços em simultâneo, pequeninos, Bolas de gelo brancas caem sobre mim e estou debaixo de uma tempestade de granizo em Agosto. O Yurt é a salvação e protegendo a máquina debaixo do meu blusão, com pouca dedicação ao meu próprio bem-estar, enceto rápido sprint para me proteger. O abrigo afasta-se a 300 metros e a minha corrida interrompe-se aos 50 quando me apercebo de que o ar se tornou mais denso e respirar um acto de coragem quando feita em esforço. Aos 3000 metros, viver custa um pouco mais, diz o teu corpo, como se lamentasse que para seres verdadeiramente feliz e mereceres o sorriso que tens estampado na cara tivesses de sofrer. Dar valor ao que consegues através de uma dor que é travão. Em passo acelerado, acabo por chegar à tenda. A mochila recebe a máquina, limpa e intacta, e nos cobertores, recubro-me ainda a sorrir. A dor passou e ser feliz é também deixar que o que dói corra para longe de nós, para uma altitude onde não tem outro remédio senão estacar e morrer à fome. O resto são montes nevados soprando feitiços que nos aumentam 100 vezes mais do que somos, sem que seja preciso entoá-los. Basta pensar neles e agora mesmo, enquanto escrevo isto, as nuvens rodeiam minha cabeça e estou certo que aquelas luzes que se dirigem para mim são de um avião. Daqueles que voa bem alto.
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
1 comentário:
Quem escreve assim, saboreia a vida profundamente.
Enviar um comentário