segunda-feira, outubro 03, 2016

Cronistão 8: o trânsito da paisagem


Em Balkychy, chegamos ao ponto intermédio da ligação entre Karakol e o lago Song-Kol. Como outras cidades quirguizes, o império russo fez surgir no meio de nenhures um entreposto que se tornou cidade, assumindo importância estratégica nos tempos soviéticos. Mas com a queda da URSS, veio uma travessia no deserto que é quase literal, porque em redor é o que praticamente existe. É aqui que mudamos de motoristas e até que cheguem, almoçamos numa coisa que nem tasco é: tem quatro paredes, um tecto e um balcão, mas parece ter sido um improviso repentista de alguém que encontrou um espaço fechado e se apercebeu de que havendo uma estrada ao lado, não se perdia nada em montar um comes e bebes. Não consigo perceber muito bem o que há disponível para comer, entre a ausência de menu, a falta de alguém que fale inglês (tradição local) e o aspecto daquilo que aparenta ser comestível. Assertivo, regresso ao carro e puxo de uma lata de atum e quem chama ao bacalhau fiel amigo, claramente nunca se viu por terras de exotismo para a boca. Sentamo-nos os nove numa mesa redonda, o centro de uma sala perdida nas traseiras e a decoração é tão kitsch que me fere os olhos - fotos panorâmicas das montanhas saídas dos anos 80 e sobre a mesa, duas fitas peganhentas, barradas de mel, servindo de pega-moscas e resultam, pois estão carregadinhas de insectos capturados, à vista próxima de todos. Qualquer coisa neste espaço dá fome.


O Talgat chega e vai conduzir-nos, com o primo, ao destino. Numa refrescante mudança, exprime-se em língua britânica de forma competente e é alguém com quem se consegue ter uma conversa que vá para além dos dedos e dos grunhos. Fala-nos da Turquia, onde estudou e se formou em Relações Internacionais. No entanto, a sua ambição é criar uma empresa de transportes com o primo, para levar turistas a todos os cantos do país. Acredita que o futuro está nesta área. É um rapaz motivado e ambicioso, mas percebe pouco de portugalidade: o seu jogador preferido é o grande maestro Rui Costa, mas apoia o Futebol Clube do Porto, naquilo que é uma heresia que quase consegue separar famílias em Portugal. No entretanto, os quilómetros deslizam o cenário e as areias barrentas dão lugar a paisagens de verdadeira montanha, com pedra sólida e bruta, o cinzento espaçado de verdes rasteiros e altitudes que travam na garganta com o freio do espanto: várias vezes chegamos aos 3000 metros e ao longe, os picos nevados do Tien Shan, a cordilheira mágica que da China entra no Quirguistão sem bater à porta ou pedir licença, alerta-nos que da terra partimos para o céu, terreno proibido. A estrada de alcatrão dá lugar à gravilha, algo que enfrentaremos durante 50 km de um caminho que noutros países seria apenas para jipes, mas que aqui, em espantosa inversão de valores e regras, é perfeitamente aceitável para qualquer veículo ligeiro, no caso um Honda. O carro queixa-se e tosse a certa altura, gemendo o furo no pneu direito traseiro. Felizmente foi num raro pedaço plano. Talgat e o primo procedem à reparação e nós, como bons turistas ocidentais, fartamo-nos de fotografar enquanto eles trabalham. O dia pede-nos isso, oferecendo uma luz solar cujo cortejo de ocasionais nuvens transforma o planalto no couro malhado de uma das muitas vacas que vamos vendo incrustadas na paisagem. Quando a viagem prossegue, sabemos que há tanto para registar, mas não podemos parar a cada motivo. É o grande drama de fazer turismo neste canto do mundo: aqui a Física inverte-se e o espaço é muito maior do que o tempo - Einstein encontra, aqui, a morada da sua loucura.


No topo de uma das montanhas, consigo afastar-me e simplesmente ser absorvido por tudo. Nunca por completo, sou demasiado sujo e complicado para pertencer a esta pureza simples de ser, mas o suficiente para me apagar uns momentos na busca da minha respiração mais cadente, num momento de altitude que me assenta bem. Vejo quilómetros de um vale se abre por entre montanhas, a luz do sol servindo de tapete, cristas rochosas que não ameaçam mas acolhem o olhar para poder ser iludido pela felicidade fugidia do sorriso automático da beleza. Penso que é isto, que tantas vezes é vida completa num pequeno momento estático em que nos deixamos fazer parte do que nos é superior, sem fés ou crenças, superior apenas porque sobreviveu e conseguiu, ainda assim, dominar. É a beleza da montanha e julgo não haver algo de mais belo para ver. A questão é que ainda não chegara ao lago Song-Kol, estando muito longe de imaginar que por uma vez o meu cérebro se iria apagar e as palavras se perderiam entre as estrelas.

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