sexta-feira, outubro 07, 2016

Cronistão 9: Não ter palavras



Quero que façam um exercício e que na vossa biblioteca de memória encontrem o local mais belo que deram a provar aos vossos olhos.Não se apressem e instalem-se confortavelmente, percorrendo com delícia todo o mundo visual com que foram privilegiados na vida. Escolham devagar, com critério, com gosto. Quando se decidirem, recordem-se de como o vosso corpo se alterou nessa presença, como a respiração simplesmente se transforma, de como a vossa existência, nuns segundos, entrou num local onde a vossa mente jamais pensara subir. Enquanto se entregarem a estas linhas, mantenham no vosso centro essa trepidação do ser e tornem-se em mim no momento em que um Honda preto desceu uma ligeira colina para contemplar uma larga planície à beira de um lago onde pasta gado, principalmente cavalos. Estou a 3000 metros de altitude, a erva de um verde suave e cândido, atravessada por veias de terra onde os veículos podem entregar-se ao masoquismo mecânico. À minha frente, uma boca bem aberta, defronte de montanhas, enche-se de água e recusa-se a engoli-la. Chamam-lhe lago Song-Kol e o seu tamanho é modesto porque antes vimos uma mastondôntica massa aquática sem aparente fim. Saio do carro, tendas brancas chamadas yurts formando a espinha dorsal da vida da comunidade nómada que aqui habita, uma procissão de panos coloridos estendidos em cordas de roupa na pauta musical do vento, lançando-nos melodias que nem se escutam nem são visíveis, mas passam-nos pelas mãos.


Esqueço-os e às pessoas e fico estacado, assim como quem atrai não raios mas o etéreo, e concentro-me em como vou conseguir traduzir mais tarde o indizível. É o centro do meu mundo hoje, sinto-me tão anão  que me entrego ao cenário como um megafone que grita o esplendor. O lago e as montanhas esmagam, mas também são uma casa onde me considero sempre convidado. Tenho medo de chorar porque naquela mistura de cores e de desconhecido, de um domínio do mundo tão extenso e tão inconcebível que sou uma peçazinha sem importância num quadro perfeito, sinto-me fraco demais para suportar algo tão belo e excelso, tão único e especial, tão fora do meu entendimento como pessoa que as juntas que me suportam tremem e quase soçobram, mas agarro-me à máquina, aproveitando um sol que me acaricia com a ponta da língua e passo para o clic os clacs que me abalam. Aguento estóico, finjo apenas maravilhamento comum, mas na verdade tapo-me com um largo cobertor de espanto. Mais tarde, quando tenho alguns minutos estendido e posso percorrer tudo isto por extenso, corro todos os locais que dei a mim mesmo como provas e desafios. Apareço, feito espectro, no Cântaro Magro e atravesso a Nave da Mestra como se nada me importasse; a serra da Lousã abraça-me e nela reencontro tudo que nela me molda em plasticina do mundo e atira-me enrolado para os altos picos da Madeira, as levadas suas, a velha floresta do Fanal em nevoeiro, rolo como um tonto até aos Picos da Europa, a Ruta del Cares, rocha bruta, e noutros locais onde fui tantas vezes mais eu do que me cabia ser. Este local, entalado entre o lago e picos de oxigénio denso, é talvez o mais belo onde estive até hoje e sei de imediato que falharei na altura de transmitir a realidade do que me parece irreal e surreal.


A delícia é muito visual, mas rodeia-me uma cultura nómada que se instalou no espanto como quem já não se admira. Na Ásia Central, este é um modo de vida desde os primórdios e embora veja artefactos menos milenares como jipes, ainda há aqui muito de genuíno. As tendas pálidas, a ordenha das vacas, buscar água ao lago montando num burro, ver crianças com uns dez anos dominando o dorso de cavalos como se tivessem visto na vida selas antes de fraldas... A sensação é a de que esta gente, vivendo em altitude e distante de um traço de civilização a sério, segue o ritmo do sol, seja na duração dos dias ou dos ciclos. Chega uma altura em que recolhem lonas e animais para descer aos vales onde o Inverno não chega em brancura nevada. É um modo de estar e ser mais dependente dos caprichos naturais, mas onde o relógio interior badala com mais vontade; e quando fotografo quatro garotos de idades diferentes que brincam e se metem connosco, alinhando em "macaquinhos do chinês" sem tradução, vejo sorrisos que me lembram, vagamente, a criança que já fui. Não sou um deles, mas de máquina em punho, finjo ser. Aqui, no meio de um ponto que não existe para todos os efeitos da credibilidade, cada um pode ser o que quiser e sem memória.

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