terça-feira, janeiro 24, 2017
Passeios
Abri a porta e saí de casa para comprar leite. O céu cinzentão, metálico mas com a fluidez do vapor de nuvens tapava-me e num conselho sinalizado a todas as luzes que se sentem com o instinto, indicava-me que era má ideia; saí na mesma, farto de estar entre quatro paredes e de apenas encontrar como réplica o silêncio sólido de um tecto. Não sei se acontece convosco, se o pensamento é como um cavalo dentro de um redil que, quando salta a borda, não se cansa tanto e consegue até esticar-se, alongar-se, perpetuar-se em movimento, mas há alturas em que sinto essa inclinação de libertar essas corridas infindáveis que a minha mente proclama em mim. Não há tempo mais nebuloso senão o do espírito revolto, nenhuma tempestade mais arrasadora do que a ruminação de uma suspeita, da certeza de um prognóstico que se senta no nosso colo sem nunca demover o seu peso. A passada larga debaixo da chuva miúda era uma fuga, mas também uma divagação maior: o meu corpo e a minha cabeça colavam-se num reflexo, e algures nas minhas pernas, prolongamentos de mim coladas ao solo, o que pensava movia-me.
A minha morada é numa cidade pequena, macilenta, construída de ocasião. Não tem mais de duzentos anos, acho, aqui há uns meses, quando aqui cheguei para trabalhar num banco, dirigi-me ao museu municipal, uma pobre desculpa para dar trabalho a uma tipografia local e a alguns amigos do presidente da câmara, embora alguns sejam de facto competentes e interessados e vejam no seu local, na sua cidade, uma razão para se excederem. Aí, aprendi que a cidade surgira porque o comboio precisava de uma estação a meio caminho entre duas maiores vizinhas e aquele era o meio caminho. A cidade não era ponto de chegada ou de partira e sinceramente, nem o sentia como ponto de passagem. Era apenas um ponto, mesmo e tantas vezes sentia-o final, reticente que estivesse em admiti-lo a quem me rodeava. Passear por entre prédios sem identidade apenas me fazia pensar no quanto queria ser como eles e apagar-me e quando virei a esquina para a praça principal, onde passei simplesmente para ver outra gente que não eu, quis encontrar-me, mas tive a certeza de me ter perdido alguns metros atrás, quando deixei de pensar em mim e passei simplesmente a não ser. Um obelisco no meio da praça dava datas e factos, letras que não fixei; num café com esplanada, um empregado de mesa fechava os grandes guarda-sol inadequados para a sua função: não chovia, mas molhava e em mim, uma torrente maior podia desabar, levar tudo. Estaquei e contei pela primeira vez tudo o que via: ao lado do café, uma loja de meias, de todas as cores e tamanhos, mas o feito invariável; uma caixa multibanco apagada e seca e velha; comércio antigo, chamam-lhe tradicional, mas pelas montras via gente de todo o tipo, velhos e novos, alguns com brio, outros simplesmente à espera do tempo que chega e nem se dá ao trabalho de saudar; e num canto, meio perdida no meio de tudo, uma pequena mercearia. A minha ideia era ir ao supermercado, mas estava ali, talvez porque o obelisco me obrigasse a render ao local, e porque não aviar-me num pequeno espaço onde me sentiria menos pequeno, menos multidão?
À entrada, caixotes de frutas e legumes apresentavam-se com preços em pedaços de caixotes de cartão, rabiscados a lápis de carvão, mas puxando em ânsia pela nossa atenção. As maçãs, vermelhas e brilhantes, chamaram-me a atenção, mas apenas queria leite. fui recebido por uma senhora quase tão velha quanto a preocupação dos Homens, desenvolta e cheia de genica, com uma cara que desfila o novelo das histórias sem precisar sequer de sorrir. Esteve a reparar a mim todo o tempo e segurava já uma saca de plástico para as maçãs. "Já não leva?" e só acenei que não, que não levava, não estava para isso, mas insistiu e disse "Muita vitamina, não se arrepende e são bem boas, daqui de perto, garanto-lhe que sem um químico ou bicho, comi uma ao lanche e veja se não estou de pé!", e pensei no quanto aquela velha sofrera ou penara na vida e ela notou o meu ar e riscou-me logo uma linha cá dentro, quando disse "Veja lá se precisa também de um copinho, que está com cara de quem se vai enfiar pela boca dentro e sumir!". Estaria eu a ser tão óbvio? Seria ela uma daquelas videntes de que falam os nossos próprios velhos quando nos queiram assustar em crianças. "Mas diga lá o que quer; não esteja mudo e quedo!". Pedi dois pacotes de leite e ela fez um compasso de espera de alguns segundos, insistente, com um anzol bem colocado e eu acrescentei mais meio quilo de maças, das vermelhas. "Sim senhora, o Inverno está aí e a maçãzinha tem muita vitamina, torna uma pessoa rija e saudável. Olhe bem para mim!" E se calhar era isso, comer uma maçã resolvia problemas, e nem tive a coragem de me armar em pretensioso e sacar de uma piada sobre Adão e Eva, até porque não me largava uma impressão marcada de que aquela velha era mais velho do que a própria velhice e podia mesmo apresentar-se como testemunha desses factos.
Saco na minha mão, dinheiro na palma dela e estava para sair quando ela me abordou num passo miudinho. "Tome lá, não anda com boa cara" e era um punhado de rebuçados do Dr. Bayard, "O doutor que mais cura pode ajudá-lo" e com um sorriso, enviou-me de regresso à chuva miudinha, àquela largo sem identidade, àquela cidade que me embalava na morrinha do torpor. Não me senti a pessoa mais solitária do mundo, no entanto; quando trinquei uma das maçãs, ácida e consistente, julguei ver em mim algo mais do que simplesmente pensamentos que correm como cavalos ou um céu cinzento que fustiga e se abate. Vi vermelho, cor de sangue, mas cor acima de tudo. Imaginei como aquela maçã desceria em mim, me alimentaria, enviaria tudo o mais às minhas células e que o espírito, acima da matéria, prende-se dentro de um corpo e com ele luta e que o meu espírito não devia estar fora da cidade, mas ali. Quando fiz voltá-lo, a maçã estava toda comida e a mensagem enviada. Já em casa, não olhei a parede: televisão ligada e o "Casablanca" estava a dar na televisão. O início de uma bela amizade comigo mesmo.
terça-feira, janeiro 10, 2017
Cronistão 21: O fim último das coisas
Aterrei em Agosto, mas escrevo em Janeiro. O tempo é igual à distância, aqui e daqui até um país sobre o qual leram durante meses, acerca de uma viagem que foi de semana e meia. É fazer contas simples, não é? Saí dia 19 e voltei a 31 e tudo somado, sem jet lags ou escalas da matemática, perfaz 11. Mas se o tempo é a medida derradeira da acção, há algo que nem o tempo dobra e isso é a emoção, a sensibilidade, aquela gancho que nos senta num mundo que desaba em nosso redor e nos prende ao que vivemos numa eternidade que pode ter demorado segundos. Não há muito que contar sobre o meu último dia no Quirguistão: dormi uma hora e acordei de madrugada para sair de Bishkek às cinco e pouco. Longas rectas no escuro rumo ao aeroporto, um taxista bem desperto e que, por uma vez, conduzia com segurança, comentando connosco a economia do país. No aeroporto, a segurança expectável de um país que sofrera um atentado Antes que posa tirar a mochila para ser revistada, duas metralhadoras quase me fazem cócegas nas bochechas e isto acontece nuns dois ou três checkpoints diferentes. O aeroporto está à pinha, russos principalmente - é o fim do mês e os eslavos não devem diferir muito do Ocidente nos seus períodos de férias. O lounge parece o hall de entrada de um grande hotel, ou seja, anão no grande esquema dos aeroportos e enquanto esperamos e matamos tempo, entendo como os miúdos são irritantes por igual de uma ponta à outra da Eurásia. Há grupos numerosos de turistas germânicos, jovens, caminhantes e não existe assim a impressão de deslocamento que tive quando aqui aterrei pela primeira vez; ou então, a minha percepção já fez da Ásia Central uma espécie de sofá para o mundo Talvez. Sei que quando o avião levanta voo e vejo lá em baixo o planalto, a capital, a terra que os meus pés seguraram pelas pontas da pertença à maneira de passos, a saudade veste-me, e não é de t-shirt: é mesmo de pijama, pois apetece-me adormecer e acordar de novo lá em baixo.
Mas isso não acontece. Nem adormecer, sequer, tenho este problema de que já vos falei de não conseguir dormir sentado, nem em aviões ou comboios ou carros, mas para além disso, ganhei um cérebro extra, como um disco externo, que acumulou memórias e visões, recorda palavras escritas num língua que não compreendo, surge em rápidos trovões de cores e paisagens fixas numa tela que só pode ser a permanência das coisas - coisas que são mais do que a mera palavra "coisa", são mesmo tudo para o qual não há nome e transformou a palavra "coisa" na mais útil, e preguiçosa, do nosso idioma. O avião queima países e eu só consigo aquecer na ideia de estar parado e num mesmo local. No fundo de mim, a pergunta óbvia: será que o meu desejo é não regressar ou simplesmente não chegar? Porque são dois conceitos diferentes: não regressar é ficar; não chegar é não querer ser de novo. Gosto deste eu do Quirguistão, um "eu" fabricado por outras pessoas que só me conheceram durante oito dias, que riem do que digo e procuram saber mais do que penso, que me olham de baixo para cima e se comovem com coisas simples que faço, como aconteceu com alguém que descobriu algo que não conto a muita gente e posso partilhar convosco - nas viagens que faço ao estrangeiro levo sempre uma foto de paisagem com o meu pai de costas a ver o mar (devem reconhecê-la daqui) e aproveito para colocá-la em pontos de grande beleza e levar o meu pai a fazer aquilo que ele evitava: o desconforto da novidade. É simples na minha cabeça - geneticamente, sou o prolongamento do que ele foi, faz sentido que construa as memórias que a morte lhe roubou. Mas houve quem se comovesse, chorasse, brotasse lágrimas e eu tento ser humano e também apresentar à mesa comoção, mas não sou assim, entendo a dor dos outros, não a consigo partilhar do nada porque para mim, vivo e faço e as coisas são muitas vezes o que são. Mas esse é o Bruno para o qual estou a regressar. O do Quirguistão é uma alma sensível - e por partilhar isso com de Portugal, mas em níveis diferentes. As saudades, no fundo, não são do passado, mas de um futuro onde me encontrarei daqui a umas horas e onde voltarei a ser o que sempre foi: um tremor quase adulto, quase criança, quase adolescente, mas nunca completamente algo. Voltarei às dúvidas e aos assaltos, ou seja, aterro no aeroporto de mim.
Mas quando saio de Istambul, à medida que me sinto mais ocidental, já não tenho bem a certeza se esta viagem foi apenas fugir de mim. Uma pequena percentagem foi a oportunidade de brincar ao outro eu, de abandonar as minhas certezas do que me constrói para desaparecer na paisagem; mas uma grande parte, a maior e mais extensa planície de motivos, é mais prazer do que fuga e do que dúvida. É a simples ligação entre o desejo e a concretização numa possibilidade que surge e que ao invés de ser pensada e afastada, é colocada numa mesa de banquete onde me sentei e sorvi feito alarve. O Quirguistão era um conjunto de imagens e suspiros e boatos num desafio que tomei para mim e fiz real. Ainda hoje, meses depois da chegada, não consigo concretizar o que me levou a fazer algo tão contrário a mim, mas pode ter sido um motivo tão fino e ténue como o apetite. Sabem, o que nos leva a fazer tudo, a mover e a mexer, a amar e a remar pela vida, a não deitar quando a bomba cai, e não erguer quando o chão nos abraça, a pequenina partícula do bem querer e do mal fazer, o bosão de Higgs de todos os projectos, um foguetão rumo à Lua que aproveita e parando no espaço, passa também por Vénus só porque fica ali ao lado. Gostava de ser sempre assim nada vida, ou talvez seja e ande a fugir disso, talvez a fuga para o Quirguistão tenha sido apanhar-me por fim em flagrante delito de incumbência. Talvez não haja dois Brunos, mas apenas um que se estica entre duas dimensões: na primeira existe como um otário cheio de dúvidas e caruncho nas ideias; na segunda parte para o que cobiça e toma os castelos e as fortalezas.
Ou talvez nada. Talvez semana e meia no lá longe não seja uma luta existencial, como tudo o que me rodeia o é na minha mente. O Quirguistão é Bishkek, Karakol, Skazka e o Song KOl com neve e sem neve, é Naryn e Osh, com Kasarman pelo meio e é também o lago Tulpar e um mercaod tão grande quanto as possibilidades de culturas diferentes, são montanhas com mais de 3000 metros e bichos que não mais acabam, é respirar pesadamente mas ser mais leve do que o ar, são pessoas genuínas e ogres tão verdadeiros quanto elas, é a hospitalidade e também coisas que levam ao hospital, são termas de brincadeira e brincar num tanque à essência do voo, é ouvir Einaudi num lago e também na presença de divinos montes. É assumir que tudo isto se vive e se tem e se traz e que passaremos quatro meses a contá-lo só para que outros se sintam connosco, mas sem nunca terem vindo de facto. É agarrar quem queremos pela mão e abraçar e dizer "Fui lá, voltei e não ficava lá porque te tenho" e repetir isso tantas vezes que quase é real, pelo menos tão verdadeiro quanto tudo o que escrevi e quanto letras alinhadas num ecrã de computador podem ser.
E quando acabam este ponto e o vosso coração sumir um bocadinho durante segundos, dão por vós com uma vontade de virem à Ásia Central e saberem se podem se outros. Claro que podem. Afinal, é a rota da Seda, produzida por lagartas que viram borboletas. Querem melhor sítio para uma metamorfose?
sexta-feira, janeiro 06, 2017
Cronistão 20: Capital importância
Deixem-me avançar desde já que Bishkek é capaz de ser a capital menos interessante onde estive até hoje Não foram assim tantas, o que torna a afirmação bem menos destruidora, mas se um dia por lá passarem, assim como quem anda pela Ásia Central e tem tempo para tomar um café, dar-me-ão razão, ainda que tenham mais carimbos no passaporte do que o Bruno de Carvalho tem desculpas. É aquilo que imaginam que uma cidade soviética seja, em esplendor: edifícios presos na década de 70, uma praça central enorme, estátuas memoriais, um Lenine de bronze apontando o caminho para a revolução mais perto e, claro, confusão no trânsito, porque aparentemente é boa ideia ter no meio da cidade avenidas com 4 faixas. Há semáforos, sim, mas todo o trânsito é domado por polícias sinaleiros, imaginem, Um deles passou ao lado de uma carreira no Cirque du Soleil - apita com ritmo e melodia e os malabarismos a que dedica o cacetete impressionariam qualquer peão ou acelera. É um artista, está claro, e como em todas as cidades por onde passarem, metade da sua consistência vem da personalidade de quem nela habita. Em Bishkek, por exemplo, mora a justiça popular, que quase conheço de perto quando, depois de tirar fotos a uns cartazes numa escola, sou perseguido por uma furiosa mãe, a directora do estabelecimento e dois seguranças. Agora sou pedófilo, e lembrem-se, lidei e fotografei crianças durante semana e meia noutros pontos do país, coisa que nem sonham. A figura materna orgulharia Putin: não existem provas, mas ela quer-me preso, retido em calabouços e sem hipóteses de saída. Não sabe falar inglês, mas invade-a uma temeridade quase certeza de que a minha obrigação era falar Russo para me poder descompor. Felizmente, a directora da escola percebe a língua saxónica e muito calmamente, mostro-lhe que não carrego nas mãos uma edição especial Nikon assinada por Carlos Cruz. Apago as fotos dos cartazes e pronto. A mãe ursa ainda não está convencida e sinceramente, se ela me viesse às trombas, tenho a impressão de que não teria hipótese.
Depois de uma experiência que me fez sentir criminoso, um acaso faz-me regressar ao prestígio internacional, quando passamos à porta do único cinema da cidade. Uma fila de jovens de smoking orienta-se à entrada e sou curioso o suficiente para perguntar o motivo do aparato. Informam-me que o maior nome do cinema quirguiz cumpre 50 anos de carreira. Um Manuel de Oliveira por aqui? Que excitação! O Zé Luís apresenta-me como jornalista - sendo que só escrevo para uma webzine de cinema. De repente, as portas abrem-se: pedem-me que entre, fotografe, tire nota,s entreviste, informe. A minha imagem é a de um maltrapilho, com calças de fato de treino, barba por fazer, roupa perfeitamente informal, mas a palavra mágica torna-me numa espécie de enviado superior. As estrelas de cinema do Quirguistão, e dizem-me que vieram todas, são menos interessantes do que as pessoas da minha terra, mas bato umas chapas e meto conversa com algumas, sem nunca pedir autógrafos. Quando me cruzo com a eminência parda da 7ª arte, que dá pelo nome de Bolot Shamshiev, noto semelhanças com um tipo que vejo sempre na Baixa de Coimbra, rondando o café Montanha. Sei que não são a mesma pessoa, mas por momentos sinto-me tentado a oferecer-lhe uma ideia para um filme, sobre alguém que vive duas vidas. No entanto, contam-me que este Tarkovski de olhos em bico não fez filmes desde a queda da URSS. Coincidência, se calhar.
Por toda a cidade, o ambiente é de festa. No dia seguinte comemoram-se os 25 anos de independência do país e é mesmo bom saber isso, porque no grupo todos vimos o quanto o Quirguistão deixou a influência russa. Há uma grande azáfama na praça Ala-Too, central da capital, com enormes bandeiras vermelhas e amarelas, um palco a ser montado, militares vigiando: já não veremos o que se passará, mas será grande de certeza. No dia a seguir, e nesta altura ainda não sabemos, um terrorista achará por bem pegar num carro armadilhado e enfaixar-se contra a embaixada chinesa. Não é passatempo local, acho, e se for é menos popular do que os Jogos Nómadas, as Olímpiadas da Ásia Central anunciadas por toda a cidade. O destemido suicida é uigur, uma etnia meio mongol meio chinesa que tem um assunto mal tratado com a China a propósito de um pequeno território. Ninguém morre, dizem as notícias oficiais, mas as fotos mostrarão destruição capaz de ter ceifado duas ou três pessoas. Veremos na rua presença militar mais intensa, metralhadoras em punho, trânsito desviado; e tudo decorrerá como o normal. Mas hoje não, passeia-se na rua sorrindo, as pessoas são simpáticas, um velhote até conhece Renato Sanches! Visitamos a estação de caminho de ferro, soviética em decoração e na vigilância que fazem das nossas máquinas fotográficas, não porque roubem a alma às paredes, mas porque mostrarão lá fora o que está para lá da muralha.
Estou na cidade, mas nem estou mesmo. Já penso no regresso, em voltar ao que é meu e em mim cresce uma vontade de partir para longe da própria partida. Cheguei aqui com medo e agora o meu medo maior é ir embora sem ter visto tudo, uma impossibilidade certa, mas a voracidade de mais e do absoluto despertou em mim quando decidi dar este passo tão maior do que as minhas pernas. Esta cidade diz-me pouco e quero voltar aos grandes espaços, às montanhas, ao fim de tudo no princípio da minha natureza curiosa e lambona do olhar, do toque e dos contornos do mundo. A minha família existe em Portugal, tal como os poucos amigos que ainda me recebem no seu pequeno mundo, como um ser cheio de falhas, e a minha cabeça navega num mundo em forma de L e sei que me esperam e querem que conte de viva voz o que fui escrevendo, querem ver-me e rir com aquela maneira como conto as histórias como reparo nas pequeninas coisas, como sou um idiota aceitável e funcional e a mim só apetece ser egoísta ao ponto de ficar. Viajar é também regressar, e só nos lembramos disso quando mais custa, quando o nosso ser se habituou a um local estranho para retornar de novo à raiz de si próprio e estranhar.
Ir de viagem é muito mais complicado do que simplesmente partir, e começo a achar que este verbo é bem adequado: é como se vários pedacinhos de nós estivessem num saco com os contornos de corpo e, à vez, se mascarassem de todos os locais onde estivemos; e Bishkek é muito mais do que Bishkek: é tudo o que vivi aqui, e são tantos os pedaços que só me consigo comparar a um ferro-velho.
segunda-feira, janeiro 02, 2017
Cronistão 19: A epifania
Não sei se alguma vez acordaram com a vaga sensação de que o anterior é uma névoa difusa, onde se reconhecem as formas mas não os conteúdos. Há uma memória esfarrapada de algo mas nem conseguimos localizar ou identificar bem o que é. Quando acordei no meu antepenúltimo dia por terras do Quirguistão, só me consegui colocar, de corpo, na capital do país. Regressáramos a Bishkek, lembro-me disso, apenas na capital poderia ter imagens do caos nocturnos do trânsito, faróis, farolins e letreiros luminosos, o alcatrão como arena de egos, o desenrascanço motor como forma de vida. O que acontecera até lá chegar era um vapor. A cama foi votada ao abandono, enquanto admirei o pequeno, mas moderno quarto que nos destinaram. Foi debaixo do chuveiro que, ao invés de descobrir a minha sexualidade, como num livro de erotismo barato acerca da adolescência de uma jovem e núbil loura de Frankfurt, me retornaram aos olhos as imagens do absolutamente desmiolado dia anterior.
Como uma máquina de slides, no brilho histérico da luz dos neurónios, entrevejo as imagens e os momentos, enquanto a carne do meu corpo adormece na lengalenga da água quente: o reencontro com o trio de americanas que conjurámos no Suleiman Too, em Osh, numa estranha coincidência e descobrir como à luz da manhã, cada uma delas fica ainda mais bonita, principalmente a Caroline, que parece querer defender Hillary Clinton até à morte; a saudável ignorância da Martine e do Umar, dois garotos que vivem junto ao lago Tulpar com a família e que nem nunca devem ter visto brinquedos ocidentais, nem o mar, nem a vergonha - enquanto tomo o meu pequeno almoço dentro de um contentor, Martine é uma anãzinha cor-de rosa agachada, urinando e destilando um sorriso inocente para mim; passar por várias tendas de refugiados da ONU à beira da estrada, na conclusão de que apesar de terem originado a milhares de quilómetros de distância, estão aqui a servir de armazéns de forragem para o gado, um Honda Civic à beira da estrada, onde duas ovelhas vivas e esperneantes são atada, balindo a sua revolta em vão; uma garagem artesanal montada em plano leito de um rio, sem estrada aparente, sem caminho evidente; regressar a Osh, depois de uma noite na cúpula do céu e sentir na pele uma dor física de quem regressa ao sururu da vida depois de ter dormido num colchão de ideal; enfrentar uma viagem de 14 horas de Osh aaté Bishkek como quem respira fundo e se entrega completamente a um dia torto num assento de carro; conhecer uma alemã chamada Franziska que desconhece por completo quem são Werner Herzog ou Wim Wenders, apesar de ter um curso universitário tirado há dois anos, mas que revela surpreendente sentido de humor no conhecimento de que a cadeira de rodas de Wolfgang Schauble lhe traria uma vida difícil na paisagem montanhosa quirguiz; um camião de combustível capotado numa estrada de montanha, com público fumando cigarro perante o inflamável líquido que verte e inunda a estrada e ao invés de ajudarem o condutor, a multidão plateia agacha-se sem nunca tocar com o rabo no chão; o espelho de céu que é o lago Toktogul, onde parecem existir duas abóbadas celestes e que se mergulhasse na água, se ao menos caísse nessa tentação, estou certo de que aterraria numa nuvel e podia respirar pó das estrelas sem medo de sufocar.
A água cessa sob meu comando, o que não impede um banho final de memórias. Enquanto a aspereza da toalha me enxuga a pele, a sensação de me levarem um pouco de mim retorna o momento em que estive mais próximo de morrer na minha estadia por estas bandas. Depois de passar um longo túnel de montanha em modo corrida, a descida de uma comprida e sinuosa estrada em noite cerrada, chuva que espalha secura na garganta e dois condutores de veículos numa louca competição acerca de qual deles poderá ganhar asas se sair dos limites do caminho num voo de centenas de metros a pique. São dezenas de carros uns ao lados dos outros, procurando orientar-se na noite mas por outro lado pisando o pedal também, é como perder os travões deixar-nos ir à confiança; eu, que sou ateu, confio pouco, mas não tenho muito a fazer senão sentar-me, confiar que o melhor acontece e abdicar de querer o controlo. É tudo o que mais detesto, tudo contrário à minha natureza e atitude. Eu, que creio sempre no pior dos cenários, eu que detesto, abomino ostensivamente condições de aleatório e de voraz vórtice que me arrasta para a insegurança das situações, estou trancado numa caixa de metal de origem japonesa, levado por um alucinado de origem quirguiz, com outros aterrorizados de origem portuguesa. Enquanto todos eles, lívidos, vociferam impropérios, empalidecem como serafins, eu acalmo-me e numa epifania concluo que esta é a minha vida, este delírio quase mortal é aquilo que tem sido tudo o que vivi nos últimos anos, a onda gigante que simplesmente me sufocou e arrastou centenas de metros por terra, atirando-me um destroço e outro na obrigação de carregá-los até nem me poder levantar.- Esta viagem é o meu tempo, sem relógio e minutos e ponteiros e quando acaba e ainda me apalpo intacto, percebo que há vida para além da morte que nos impomos, que se sobrevive às hipóteses e à estatística, que se sai inteiro do outro lado da escuridão.
Visto-me no tempo actual e ligando o telemóvel à wi-fi do hotel, o mundo volta a saudar-me. Estou de regresso e na página de Facebook, no canto direito, mais de 50 pessoas leram e gostaram do relato que acabei de aqui escrever. São palavras que condensam tudo o que é indizível, nenhuma destas pessoas esteve sentada naquele carro em permanente diálogo com a Ceifeira, mas gostaram, apreciaram que eu estivesse. O meu companheiro de quarto ocupa agora o seu turno de banho e sozinho no espaço, sem ninguém por quem me envergonhar, faço uma vénia bastante teatral a todo o público que ao longe, com curiosidade. se banha no meu chuveiro da memória. Espero que, no final, se sentiam tão revigorados como eu, agora que estou refrescado e vou comer panquecas com chocolate ao pequeno-almoço.
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