terça-feira, janeiro 10, 2017

Cronistão 21: O fim último das coisas


Aterrei em Agosto, mas escrevo em Janeiro. O tempo é igual à distância, aqui e daqui até um país sobre o qual leram durante meses, acerca de uma viagem que foi de semana e meia. É fazer contas simples, não é? Saí dia 19 e voltei a 31 e tudo somado, sem jet lags ou escalas da matemática, perfaz 11. Mas se o tempo é a medida derradeira da acção, há algo que nem o tempo dobra e isso é a emoção, a sensibilidade, aquela gancho que nos senta num mundo que desaba em nosso redor e nos prende ao que vivemos numa eternidade que pode ter demorado segundos. Não há muito que contar sobre o meu último dia no Quirguistão: dormi  uma hora e acordei de madrugada para sair de Bishkek às cinco e pouco. Longas rectas no escuro rumo ao aeroporto, um taxista bem desperto e que, por uma vez, conduzia com segurança, comentando connosco a economia do país. No aeroporto, a segurança expectável de um país que sofrera um atentado Antes que posa tirar a mochila para ser revistada, duas metralhadoras quase me fazem cócegas nas bochechas e isto acontece nuns dois ou três checkpoints diferentes. O aeroporto está à pinha, russos principalmente - é o fim do mês e os eslavos não devem diferir muito do Ocidente nos seus períodos de férias. O lounge parece o hall de entrada de um grande hotel, ou seja, anão no grande esquema dos aeroportos e enquanto esperamos e matamos tempo, entendo como os miúdos são irritantes por igual de uma ponta à outra da Eurásia. Há grupos numerosos de turistas germânicos, jovens, caminhantes e não existe assim a impressão de deslocamento que tive quando aqui aterrei pela primeira vez; ou então, a minha percepção já fez da Ásia Central uma espécie de sofá para o mundo Talvez. Sei que quando o avião levanta voo e vejo lá em baixo o planalto, a capital, a terra que os meus pés seguraram pelas pontas da pertença à maneira de passos, a saudade veste-me, e não é de t-shirt: é mesmo de pijama, pois apetece-me adormecer e acordar de novo lá em baixo.


Mas isso não acontece. Nem adormecer, sequer, tenho este problema de que já vos falei de não conseguir dormir sentado, nem em aviões ou comboios ou carros, mas para além disso, ganhei um cérebro extra, como um disco externo, que acumulou memórias e visões, recorda palavras escritas num língua que não compreendo, surge em rápidos trovões de cores e paisagens fixas numa tela que só pode ser a permanência das coisas - coisas que são mais do que a mera palavra "coisa", são mesmo tudo para o qual não há nome e transformou a palavra "coisa" na mais útil, e preguiçosa, do nosso idioma. O avião queima países e eu só consigo aquecer na ideia de estar parado e num mesmo local. No fundo de mim, a pergunta óbvia: será que o meu desejo é não regressar ou simplesmente não chegar? Porque são dois conceitos diferentes: não regressar é ficar; não chegar é não querer ser de novo. Gosto deste eu do Quirguistão, um "eu" fabricado por outras pessoas que só me conheceram durante oito dias, que riem do que digo e procuram saber mais do que penso, que me olham de baixo para cima e se comovem com coisas simples que faço, como aconteceu com alguém que descobriu algo que não conto a muita gente e posso partilhar convosco - nas viagens que faço ao estrangeiro levo sempre uma foto de paisagem com o meu pai de costas a ver o mar (devem reconhecê-la daqui) e aproveito para colocá-la em pontos de grande beleza e levar o meu pai a fazer aquilo que ele evitava: o desconforto da novidade. É simples na minha cabeça - geneticamente, sou o prolongamento do que ele foi, faz sentido que construa as memórias que a morte lhe roubou. Mas houve quem se comovesse, chorasse, brotasse lágrimas e eu tento ser humano e também apresentar à mesa comoção, mas não sou assim, entendo a dor dos outros, não a consigo partilhar do nada porque para mim, vivo e faço e as coisas são muitas vezes o que são. Mas esse é o Bruno para o qual estou a regressar. O do Quirguistão é uma alma sensível - e por partilhar isso com de Portugal, mas em níveis diferentes. As saudades, no fundo, não são do passado, mas de um futuro onde me encontrarei daqui a umas horas e onde voltarei a ser o que sempre foi: um tremor quase adulto, quase criança, quase adolescente, mas nunca completamente algo. Voltarei às dúvidas e aos assaltos, ou seja, aterro no aeroporto de mim.


Mas quando saio de Istambul, à medida que me sinto mais ocidental, já não tenho bem a certeza se esta viagem foi apenas fugir de mim. Uma pequena percentagem foi a oportunidade de brincar ao outro eu, de abandonar as minhas certezas do que me constrói para desaparecer na paisagem; mas uma grande parte, a maior e mais extensa planície de motivos, é mais prazer do que fuga e do que dúvida. É a simples ligação entre o desejo e a concretização numa possibilidade que surge e que ao invés de ser pensada e afastada, é colocada numa mesa de banquete onde me sentei e sorvi feito alarve. O Quirguistão era um conjunto de imagens e suspiros e boatos num desafio que tomei para mim e fiz real. Ainda hoje, meses depois da chegada, não consigo concretizar o que me levou a fazer algo tão contrário a mim, mas pode ter sido um motivo tão fino e ténue como o apetite. Sabem, o que nos leva a fazer tudo, a mover e a mexer, a amar e a remar pela vida, a não deitar quando a bomba cai, e não erguer quando o chão nos abraça, a pequenina partícula do bem querer e do mal fazer, o bosão de Higgs de todos os projectos, um foguetão rumo à Lua que aproveita e parando no espaço, passa também por Vénus só porque fica ali ao lado. Gostava de ser sempre assim nada vida, ou talvez seja e ande a fugir disso, talvez a fuga para o Quirguistão tenha sido apanhar-me por fim em flagrante delito de incumbência. Talvez não haja dois Brunos, mas apenas um que se estica entre duas dimensões: na primeira existe como um otário cheio de dúvidas e caruncho nas ideias; na segunda parte para o que cobiça e toma os castelos e as fortalezas.


Ou talvez nada. Talvez semana e meia no lá longe não seja uma luta existencial, como tudo o que me rodeia o é na minha mente. O Quirguistão é Bishkek, Karakol, Skazka e o Song KOl com neve e sem neve, é Naryn e Osh, com Kasarman pelo meio e é também o lago Tulpar e um mercaod tão grande quanto as possibilidades de culturas diferentes, são montanhas com mais de 3000 metros e bichos que não mais acabam, é respirar pesadamente mas ser mais leve do que o ar,  são pessoas genuínas e ogres tão verdadeiros quanto elas, é a hospitalidade e também coisas que levam ao hospital, são termas de brincadeira e brincar num tanque à essência do voo, é ouvir Einaudi num lago e também na presença de divinos montes. É assumir que tudo isto se vive e se tem e se traz e que passaremos quatro meses a contá-lo só para que outros se sintam connosco, mas sem nunca terem vindo de facto. É agarrar quem queremos pela mão e abraçar e dizer "Fui lá, voltei e não ficava lá porque te tenho" e repetir isso tantas vezes que quase é real, pelo menos tão verdadeiro quanto tudo o que escrevi e quanto letras alinhadas num ecrã de computador podem ser.


E quando acabam este ponto e o vosso coração sumir um bocadinho durante segundos, dão por vós com uma vontade de virem à Ásia Central e saberem se podem se outros. Claro que podem. Afinal, é a rota da Seda, produzida por lagartas que viram borboletas. Querem melhor sítio para uma metamorfose?

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