segunda-feira, janeiro 02, 2017

Cronistão 19: A epifania


Não sei se alguma vez acordaram com a vaga sensação de que o anterior é uma névoa difusa, onde se reconhecem as formas mas não os conteúdos. Há uma memória esfarrapada de algo mas nem conseguimos localizar ou identificar bem o que é. Quando acordei no meu antepenúltimo dia por terras do Quirguistão, só me consegui colocar, de corpo, na capital do país. Regressáramos a Bishkek, lembro-me disso, apenas na capital poderia ter imagens do caos nocturnos do trânsito, faróis, farolins e letreiros luminosos, o alcatrão como arena de egos, o desenrascanço motor como forma de vida. O que acontecera até lá chegar era um vapor. A cama foi votada ao abandono, enquanto admirei o pequeno, mas moderno quarto que nos destinaram. Foi debaixo do chuveiro que, ao invés de descobrir a minha sexualidade, como num livro de erotismo barato acerca da adolescência de uma jovem e núbil loura de Frankfurt, me retornaram aos olhos as imagens do absolutamente desmiolado dia anterior.


Como uma máquina de slides, no brilho histérico da luz dos neurónios, entrevejo as imagens e os momentos, enquanto a carne do meu corpo adormece na lengalenga da água quente: o reencontro com o trio de americanas que conjurámos no Suleiman Too, em Osh, numa estranha coincidência e descobrir como à luz da manhã, cada uma delas fica ainda mais bonita, principalmente a Caroline, que parece querer defender Hillary Clinton até à morte; a saudável ignorância da Martine e do Umar, dois garotos que vivem junto ao lago Tulpar com a família e que nem nunca devem ter visto brinquedos ocidentais, nem o mar, nem a vergonha - enquanto tomo o meu pequeno almoço dentro de um contentor, Martine é uma anãzinha cor-de rosa agachada, urinando e destilando um sorriso inocente para mim; passar por várias tendas de refugiados da ONU à beira da estrada, na conclusão de que apesar de terem originado a milhares de quilómetros de distância, estão aqui a servir de armazéns de forragem para o gado, um Honda Civic à beira da estrada, onde duas ovelhas vivas e esperneantes são atada, balindo a sua revolta em vão; uma garagem artesanal montada em plano leito de um rio, sem estrada aparente, sem caminho evidente; regressar a Osh, depois de uma noite na cúpula do céu e sentir na pele uma dor física de quem regressa ao sururu da vida depois de ter dormido num colchão de ideal; enfrentar uma viagem de 14 horas de Osh aaté Bishkek como quem respira fundo e se entrega completamente a um dia torto num assento de carro; conhecer uma alemã chamada Franziska que desconhece por completo quem são Werner Herzog ou Wim Wenders, apesar de ter um curso universitário tirado há dois anos, mas que revela surpreendente sentido de humor no conhecimento de que a cadeira de rodas de Wolfgang Schauble lhe traria uma vida difícil na paisagem montanhosa quirguiz; um camião de combustível capotado numa estrada de montanha, com público fumando cigarro perante o inflamável líquido que verte e inunda a estrada e ao invés de ajudarem o condutor, a multidão plateia agacha-se sem nunca tocar com o rabo no chão; o espelho de céu que é o lago Toktogul, onde parecem existir duas abóbadas celestes e que se mergulhasse na água, se ao menos caísse nessa tentação, estou certo de que aterraria numa nuvel e podia respirar pó das estrelas sem medo de sufocar.


A água cessa sob meu comando, o que não impede um banho final de memórias. Enquanto a aspereza da toalha me enxuga a pele, a sensação de me levarem um pouco de mim retorna o momento em que estive mais próximo de morrer na minha estadia por estas bandas. Depois de passar um longo túnel de montanha em modo corrida, a descida de uma comprida e sinuosa estrada em noite cerrada, chuva que espalha secura na garganta e dois condutores de veículos numa louca competição acerca de qual deles poderá ganhar asas se sair dos limites do caminho num voo de centenas de metros a pique. São dezenas de carros uns ao lados dos outros, procurando orientar-se na noite mas por outro lado pisando o pedal também, é como perder os travões deixar-nos ir à confiança; eu, que sou ateu, confio pouco, mas não tenho muito a fazer senão sentar-me, confiar que o melhor acontece e abdicar de querer o controlo. É tudo o que mais detesto, tudo contrário à minha natureza e atitude. Eu, que creio sempre no pior dos cenários, eu que detesto, abomino ostensivamente condições de aleatório e de voraz vórtice que me arrasta para a insegurança das situações, estou trancado numa caixa de metal de origem japonesa, levado por um alucinado de origem quirguiz, com outros aterrorizados de origem portuguesa. Enquanto todos eles, lívidos, vociferam impropérios, empalidecem como serafins, eu acalmo-me e numa epifania concluo que esta é a minha vida, este delírio quase mortal é aquilo que tem sido tudo o que vivi nos últimos anos, a onda gigante que simplesmente me sufocou e arrastou centenas de metros por terra, atirando-me um destroço e outro na obrigação de carregá-los até nem me poder levantar.- Esta viagem é o meu tempo, sem relógio e minutos e ponteiros e quando acaba e ainda me apalpo intacto, percebo que há vida para além da morte que nos impomos, que se sobrevive às hipóteses e à estatística, que se sai inteiro do outro lado da escuridão.


Visto-me no tempo actual e ligando o telemóvel à wi-fi do hotel, o mundo volta a saudar-me. Estou de regresso e na página de Facebook, no canto direito, mais de 50 pessoas leram e gostaram do relato que acabei de aqui escrever. São palavras que condensam tudo o que é indizível, nenhuma destas pessoas esteve sentada naquele carro em permanente diálogo com a Ceifeira, mas gostaram, apreciaram que eu estivesse. O meu companheiro de quarto ocupa agora o seu turno de banho e sozinho no espaço, sem ninguém por quem me envergonhar, faço uma vénia bastante teatral a todo o público que ao longe, com curiosidade. se banha no meu chuveiro da memória. Espero que, no final, se sentiam tão revigorados como eu, agora que estou refrescado e vou comer panquecas com chocolate ao pequeno-almoço.

1 comentário:

Rog disse...

Belo texto :) Aceita uma vénia do bedroom mate ;) Cheers!