sexta-feira, janeiro 06, 2017

Cronistão 20: Capital importância



Deixem-me avançar desde já que Bishkek é capaz de ser a capital menos interessante onde estive até hoje Não foram assim tantas, o que torna a afirmação bem menos destruidora, mas se um dia por lá passarem, assim como quem anda pela Ásia Central e tem tempo para tomar um café, dar-me-ão razão, ainda que tenham mais carimbos no passaporte do que o Bruno de Carvalho tem desculpas. É aquilo que imaginam que uma cidade soviética seja, em esplendor: edifícios presos na década de 70, uma praça central enorme, estátuas memoriais, um Lenine de bronze apontando o caminho para a revolução mais perto e, claro, confusão no trânsito, porque aparentemente é boa ideia ter no meio da cidade avenidas com 4 faixas. Há semáforos, sim, mas todo o trânsito é domado por polícias sinaleiros, imaginem, Um deles passou ao lado de uma carreira no Cirque du Soleil - apita com ritmo e melodia e os malabarismos a que dedica o cacetete impressionariam qualquer peão ou acelera. É um artista, está claro, e como em todas as cidades por onde passarem, metade da sua consistência vem da personalidade de quem nela habita. Em Bishkek, por exemplo, mora a justiça popular, que quase conheço de perto quando, depois de tirar fotos a uns cartazes numa escola, sou perseguido por uma furiosa mãe, a directora do estabelecimento e dois seguranças. Agora sou pedófilo, e lembrem-se, lidei e fotografei crianças durante semana e meia noutros pontos do país, coisa que nem sonham. A figura materna orgulharia Putin: não existem provas, mas ela quer-me preso, retido em calabouços e sem hipóteses de saída. Não sabe falar inglês, mas invade-a uma temeridade quase certeza de que a minha obrigação era falar Russo para me poder descompor. Felizmente, a directora da escola percebe a língua saxónica e muito calmamente, mostro-lhe que não carrego nas mãos uma edição especial Nikon assinada por Carlos Cruz. Apago as fotos dos cartazes e pronto. A mãe ursa ainda não está convencida e sinceramente, se ela me viesse às trombas, tenho a impressão de que não teria hipótese.


Depois de uma experiência que me fez sentir criminoso, um acaso faz-me regressar ao prestígio internacional, quando passamos à porta do único cinema da cidade. Uma fila de jovens de smoking orienta-se à entrada e sou curioso o suficiente para perguntar o motivo do aparato. Informam-me que o maior nome do cinema quirguiz cumpre 50 anos de carreira. Um Manuel de Oliveira por aqui? Que excitação! O Zé Luís apresenta-me como jornalista - sendo que só escrevo para uma webzine de cinema. De repente, as portas abrem-se: pedem-me que entre, fotografe, tire nota,s entreviste, informe. A minha imagem é a de um maltrapilho, com calças de fato de treino, barba por fazer, roupa perfeitamente informal, mas a palavra mágica torna-me numa espécie de enviado superior. As estrelas de cinema do Quirguistão, e dizem-me que vieram todas, são menos interessantes do que as pessoas da minha terra, mas bato umas chapas e meto conversa com algumas, sem nunca pedir autógrafos. Quando me cruzo com a eminência parda da 7ª arte, que dá pelo nome de Bolot Shamshiev, noto semelhanças com um tipo que vejo sempre na Baixa de Coimbra, rondando o café Montanha. Sei que não são a mesma pessoa, mas por momentos sinto-me tentado a oferecer-lhe uma ideia para um filme, sobre alguém que vive duas vidas. No entanto, contam-me que este Tarkovski de olhos em bico não fez filmes desde a queda da URSS. Coincidência, se calhar.


Por toda a cidade, o ambiente é de festa. No dia seguinte comemoram-se os 25 anos de independência do país e é mesmo bom saber isso, porque no grupo todos vimos o quanto o Quirguistão deixou a influência russa. Há uma grande azáfama na praça Ala-Too, central da capital, com enormes bandeiras vermelhas e amarelas, um palco a ser montado, militares vigiando: já não veremos o que se passará, mas será grande de certeza. No dia a seguir, e nesta altura ainda não sabemos, um terrorista achará por bem pegar num carro armadilhado e enfaixar-se contra a embaixada chinesa. Não é passatempo local, acho, e se for é menos popular do que os Jogos Nómadas, as Olímpiadas da Ásia Central anunciadas por toda a cidade. O destemido suicida é uigur, uma etnia meio mongol meio chinesa que tem um assunto mal tratado com a China a propósito de um pequeno território. Ninguém morre, dizem as notícias oficiais, mas as fotos mostrarão destruição capaz de ter ceifado duas ou três pessoas. Veremos na rua presença militar mais intensa, metralhadoras em punho, trânsito desviado; e tudo decorrerá como o normal. Mas hoje não, passeia-se na rua sorrindo, as pessoas são simpáticas, um velhote até conhece Renato Sanches! Visitamos a estação de caminho de ferro, soviética em decoração e na vigilância que fazem das nossas máquinas fotográficas, não porque roubem a alma às paredes, mas porque mostrarão lá fora o que está para lá da muralha.


Estou na cidade, mas nem estou mesmo. Já penso no regresso, em voltar ao que é meu e em mim cresce uma vontade de partir para longe da própria partida. Cheguei aqui com medo e agora o meu medo maior é ir embora sem ter visto tudo, uma impossibilidade certa, mas a voracidade de mais e do absoluto despertou em mim quando decidi dar este passo tão maior do que as minhas pernas. Esta cidade diz-me pouco e quero voltar aos grandes espaços, às montanhas, ao fim de tudo no princípio da minha natureza curiosa e lambona do olhar, do toque e dos contornos do mundo. A minha família existe em Portugal, tal como os poucos amigos que ainda me recebem no seu pequeno mundo, como um ser cheio de falhas, e a minha cabeça navega num mundo em forma de L e sei que me esperam e querem que conte de viva voz o que fui escrevendo, querem ver-me e rir com aquela maneira como conto as histórias como reparo nas pequeninas coisas, como sou um idiota aceitável e funcional e a mim só apetece ser egoísta ao ponto de ficar. Viajar é também regressar, e só nos lembramos disso quando mais custa, quando o nosso ser se habituou a um local estranho para retornar de novo à raiz de si próprio e estranhar.

Ir de viagem é muito mais complicado do que simplesmente partir, e começo a achar que este verbo é bem adequado: é como se vários pedacinhos de nós estivessem num saco com os contornos de corpo e, à vez, se mascarassem de todos os locais onde estivemos; e Bishkek é muito mais do que Bishkek: é tudo o que vivi aqui, e são tantos os pedaços que só me consigo comparar a um ferro-velho.

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