terça-feira, janeiro 24, 2017
Passeios
Abri a porta e saí de casa para comprar leite. O céu cinzentão, metálico mas com a fluidez do vapor de nuvens tapava-me e num conselho sinalizado a todas as luzes que se sentem com o instinto, indicava-me que era má ideia; saí na mesma, farto de estar entre quatro paredes e de apenas encontrar como réplica o silêncio sólido de um tecto. Não sei se acontece convosco, se o pensamento é como um cavalo dentro de um redil que, quando salta a borda, não se cansa tanto e consegue até esticar-se, alongar-se, perpetuar-se em movimento, mas há alturas em que sinto essa inclinação de libertar essas corridas infindáveis que a minha mente proclama em mim. Não há tempo mais nebuloso senão o do espírito revolto, nenhuma tempestade mais arrasadora do que a ruminação de uma suspeita, da certeza de um prognóstico que se senta no nosso colo sem nunca demover o seu peso. A passada larga debaixo da chuva miúda era uma fuga, mas também uma divagação maior: o meu corpo e a minha cabeça colavam-se num reflexo, e algures nas minhas pernas, prolongamentos de mim coladas ao solo, o que pensava movia-me.
A minha morada é numa cidade pequena, macilenta, construída de ocasião. Não tem mais de duzentos anos, acho, aqui há uns meses, quando aqui cheguei para trabalhar num banco, dirigi-me ao museu municipal, uma pobre desculpa para dar trabalho a uma tipografia local e a alguns amigos do presidente da câmara, embora alguns sejam de facto competentes e interessados e vejam no seu local, na sua cidade, uma razão para se excederem. Aí, aprendi que a cidade surgira porque o comboio precisava de uma estação a meio caminho entre duas maiores vizinhas e aquele era o meio caminho. A cidade não era ponto de chegada ou de partira e sinceramente, nem o sentia como ponto de passagem. Era apenas um ponto, mesmo e tantas vezes sentia-o final, reticente que estivesse em admiti-lo a quem me rodeava. Passear por entre prédios sem identidade apenas me fazia pensar no quanto queria ser como eles e apagar-me e quando virei a esquina para a praça principal, onde passei simplesmente para ver outra gente que não eu, quis encontrar-me, mas tive a certeza de me ter perdido alguns metros atrás, quando deixei de pensar em mim e passei simplesmente a não ser. Um obelisco no meio da praça dava datas e factos, letras que não fixei; num café com esplanada, um empregado de mesa fechava os grandes guarda-sol inadequados para a sua função: não chovia, mas molhava e em mim, uma torrente maior podia desabar, levar tudo. Estaquei e contei pela primeira vez tudo o que via: ao lado do café, uma loja de meias, de todas as cores e tamanhos, mas o feito invariável; uma caixa multibanco apagada e seca e velha; comércio antigo, chamam-lhe tradicional, mas pelas montras via gente de todo o tipo, velhos e novos, alguns com brio, outros simplesmente à espera do tempo que chega e nem se dá ao trabalho de saudar; e num canto, meio perdida no meio de tudo, uma pequena mercearia. A minha ideia era ir ao supermercado, mas estava ali, talvez porque o obelisco me obrigasse a render ao local, e porque não aviar-me num pequeno espaço onde me sentiria menos pequeno, menos multidão?
À entrada, caixotes de frutas e legumes apresentavam-se com preços em pedaços de caixotes de cartão, rabiscados a lápis de carvão, mas puxando em ânsia pela nossa atenção. As maçãs, vermelhas e brilhantes, chamaram-me a atenção, mas apenas queria leite. fui recebido por uma senhora quase tão velha quanto a preocupação dos Homens, desenvolta e cheia de genica, com uma cara que desfila o novelo das histórias sem precisar sequer de sorrir. Esteve a reparar a mim todo o tempo e segurava já uma saca de plástico para as maçãs. "Já não leva?" e só acenei que não, que não levava, não estava para isso, mas insistiu e disse "Muita vitamina, não se arrepende e são bem boas, daqui de perto, garanto-lhe que sem um químico ou bicho, comi uma ao lanche e veja se não estou de pé!", e pensei no quanto aquela velha sofrera ou penara na vida e ela notou o meu ar e riscou-me logo uma linha cá dentro, quando disse "Veja lá se precisa também de um copinho, que está com cara de quem se vai enfiar pela boca dentro e sumir!". Estaria eu a ser tão óbvio? Seria ela uma daquelas videntes de que falam os nossos próprios velhos quando nos queiram assustar em crianças. "Mas diga lá o que quer; não esteja mudo e quedo!". Pedi dois pacotes de leite e ela fez um compasso de espera de alguns segundos, insistente, com um anzol bem colocado e eu acrescentei mais meio quilo de maças, das vermelhas. "Sim senhora, o Inverno está aí e a maçãzinha tem muita vitamina, torna uma pessoa rija e saudável. Olhe bem para mim!" E se calhar era isso, comer uma maçã resolvia problemas, e nem tive a coragem de me armar em pretensioso e sacar de uma piada sobre Adão e Eva, até porque não me largava uma impressão marcada de que aquela velha era mais velho do que a própria velhice e podia mesmo apresentar-se como testemunha desses factos.
Saco na minha mão, dinheiro na palma dela e estava para sair quando ela me abordou num passo miudinho. "Tome lá, não anda com boa cara" e era um punhado de rebuçados do Dr. Bayard, "O doutor que mais cura pode ajudá-lo" e com um sorriso, enviou-me de regresso à chuva miudinha, àquela largo sem identidade, àquela cidade que me embalava na morrinha do torpor. Não me senti a pessoa mais solitária do mundo, no entanto; quando trinquei uma das maçãs, ácida e consistente, julguei ver em mim algo mais do que simplesmente pensamentos que correm como cavalos ou um céu cinzento que fustiga e se abate. Vi vermelho, cor de sangue, mas cor acima de tudo. Imaginei como aquela maçã desceria em mim, me alimentaria, enviaria tudo o mais às minhas células e que o espírito, acima da matéria, prende-se dentro de um corpo e com ele luta e que o meu espírito não devia estar fora da cidade, mas ali. Quando fiz voltá-lo, a maçã estava toda comida e a mensagem enviada. Já em casa, não olhei a parede: televisão ligada e o "Casablanca" estava a dar na televisão. O início de uma bela amizade comigo mesmo.
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