terça-feira, março 14, 2017

Alentejo sem rumo



Sou um beirão, nascido e criado. Cresci rodeado de florestas e montes, habituado a olhar em redor e ver a linha do horizonte entrecortada por outros limites e nunca tão longe que não sentisse a distância a puxá-la para bem longe de mim. Ao contrário do que se possa pensar, é libertador viver assim, absorver o mundo pelas suas formas e muralhas, saber que estão lá sem nos fechar, que são apenas a prova física de que sou humano, de que tenho limitações, mas que de nenhuma forma elas devem limitar-me: vejo a montanha para subi-la, escalá-la, domá-la. O meu mundo sempre foi esse; e dou nestes dias por mim noutro planeta, noutra Terra até, uma onde os montes são meros soluços do solo, quase fictícios, uma miragem ao longo de compridas planícies, tapetes verdes onde se erguem, a espaços, pequenas árvores que tornam o chão num tabuleiro de xadrez onde a estratégia é clara e é baralhar-me à minha mente. O Alentejo é de uma estranheza hipnótica que confunde quem sempre viveu no costume das alturas e a longitude total dos meridianos do tapete alentejano causa sempre a sensação de que o mundo pode não ter fim, ou início sequer. É um mundo em repetição permanente que continua e continua e continua e continua.

As rectas intermináveis que ligam os pontos deste extraterrestre planeta alentejano são monótonas, mas convidam-me a pegar no carro e deixar-me ir. O ocaso do sol é sempre uma boa oportunidade para apanhar as labaredas do céu e ver cegonhas a contra-luz. Sinto sempre que é uma pequena piada de ironia que alguém com tanto medo de ficar só, com tantos problemas em lidar com a solidão e consigo, cuja mudança de condições causa sempre um sobressalto eléctrico que comprime a minha coluna como um acórdeão, tenha sido despachado para o eremitismo do isolamento numa área assim, de nada permanente e renovável, de conhecidas aves migratórias que optam por ir e vir para proteger a família, construindo uma vida que se escapa pelos meus dedos, que procuro e não encontro, em virtude da qual me gasto sem esperar outra recompensa que não seja ser recompensado e poder sentir-me feliz. A partir do meu terraço, contemplo a permanência do espaço sem ponta por onde pegar. A rotina que para mim criei nesta nova vida que tenho é apenas a reflexão dessa permanência morosa: acordar, comer, higiene, caminhar, escola, aulas, colegas, regresso a casa, deitado no sofá ao computador, lanche, algum trabalho, banho, jantar, relaxar e entregar-me em esqueleto na cam(p)a. Chamam-lhe vida e no entanto, porque pareço esmorecer nela? Mirrar como uma cebola presa num armário húmido, com o mofo a morder? Porque levo isto como uma pena de prisão e não uma benção? Porque penso em insistência na vida que não tenho, que procuro e que desejo e não neste milagre de estar empregado, de conseguir ser útil a alguém que seja, porque não acordo com toda a experiência, porque recusa a minha mente abraçá-la e lhe ergue barreiras, porque caminho para a escola como um condenado ao desterro ao invés de aceitar-me como esta figura que de barba entra na sala, fala forte, cativa atenção, aborrece quando força a trabalhar, exulta quando vê nos olhos alheios a curiosidade arrancada por uma pequena história, um pormenor esquivo?

Não sei que feitiço tem o Alentejo, que me relaxa quando me movo e me petrifica quando estando parado, deixo a cabeça voar por sobre o mais alto dos picos, procurando qualquer coisa de familiar, uma semelhança de conforto, a ideia que lá longe podem sentir a minha falta, que também lhes morre um bocadinho quando aqui caio à noite e que a minha alegria pode ser também a sua, quando surge, que a felicidade não é como a planície alentejana ou como a montanha beirã, mas sim um terreno sem definição ou relevo, sem passos trocados ou estradas infinitas, apenas é e vagueia à nossa vontade. Há dias em que para mim olho e pergunto se é meu objectivo ser assim, triste e macambúzio, se não sei ser de outra maneira, se a felicidade me assusta e noutras quero-a e desejo-a, sei bem o que pretendo e o que me elevaria à transcendência da respiração e que se não alcanço é porque algo há de errado, que os sonhos não se cumprem sem que para eles trabalhemos; e juro que estou a escrever isto num caderno, deitado no terraço, que o sol se está a pôr, a luz é outra, laranja e vermelha, que no céu nem há nuvens a reflecti-la e que em mim, esse ocaso é um acaso para despejar num papel a insegurança que não tem geografia nem nome, apenas treme a realidade como o calor torna difusas as rectas do Alentejo em dia de Verão e que se no sul me tento nortear, é apenas porque tento responder a uma pergunta que desde criança me troca os pontos cardeais: quem sou eu e o quero fazer?

É tudo uma açorda, como às vezes aqui ouço; mas no meu caso, sinto-me mais migado do que ensopado e vai daí, talvez me misture em ambas.

1 comentário:

Natália Costa disse...

Gosto muito e subscrevo. Acho que essa é a luta de cada um de nós...