segunda-feira, março 06, 2017

Poder local


Curioso que, poucos dias depois de ter aqui escrito uma ode à casa onde passei quase todos os 34 anos desfiados na vida que me vai cabendo, me apanhe na incidência de habitar num local tão completamente diferente, longe do meu habitat, longe dessas quatro paredes que tanto gabei e cuja relação emocional não consigo esconder. Mudar de casa é também alterar o nosso código postal e só quando o fazemos se descobre que o nosso sangue e a nossa vida é muito também o que nos rodeia de mais próximo. A arquitectura de uma casa, a sua geografia condicionam as nossas rotinas, claro, mas também as nossas reacções e a nossa personalidade, o nosso humor e as histórias que temos para contar. A escolha de morar em Colos e neste número 6 específico fez-se sem grande orientação prévia, mas um olhar bastou para escolhê-la entre várias que vi, porque me conheço e sei como funciono, porque em nenhuma outra me revi. Esta não é, de todo a minha casa; mas habito nela como quem passa por aqui e não se quer deixar também na planície.

Ora, existem 3 quartos (um deles meu, outros dois vagantes para quem quiser visitar) e uma cozinha laterais ao único corredor do espaço, que da porta da entrada conduz a uma sala. Num canto, à esquerda, uma casa de banho; no canto seguinte uma despensa e se continuarmos no sentido dos ponteiros do relógio apanha-se uma salamandra, mais quente do que anfíbia e ideal para invernos alentejanos que já passaram. Nota-se que a casa é fria, mais do que esperava, estar de cobertor tapado não é apenas um gesto de conforto, mas uma necessidade.  Abrindo uma porta de metal ao fundo da sala, dá-se para um quintal onde uma laranjeira já deu os seus frutos e o ar enche-se de cacarejar das galinhas que passeiam nos terrenos contíguos de duas vizinhas. Não é o som mais agradável de ouvir, mas torna-se ruído de fundo quando subo para o meu pequeno terraço de onde consigo ver todo o casario de Colos, branco e empilhado, a torre da igreja destacando-se no topo e em contra-luz da planície verde, chaparros ocasionais, o cliché visual repetitivo da aldeia alentejana. É aqui que como fruta depois do almoço, quando sol me espreita e quando as nuvens ameaçam sem chover, onde gosto de estar comigo e de observar visões apocalípticas, como quando as ditas galinhas decidem empoleirar-se no ramo destacado de uma árvore, em fila, como se o Hitchcock português tivesse deitado para longe cabos de electricidade e pombos. Imagino que no Verão, as noites aqui passadas sejam agradáveis, mas ainda faltam uns meses para descobrir. Regressando ao interior, o branco das paredes cegava-me um pouco ao início, mas já me habituei. Recordo que da segunda vez que quis entrar neste número 6, dei por mim perdido na rua, uma marcha de habitações pálidas com a mesma risca amarela passada como se fosse igual a cada alentejano que a sua casa tenha personalidade ou não. Hoje já sei distinguir, tiro a pinta pelas orelhas envidraçadas da casa e se quiser fazer figurinhas de urso, devo recorrer a outro esquema.

Certas coisas são aqui comichosas: em primeiro, a rede de telemóvel é uma mentira – na sala rasa o aceitável, no quarto onde durmo nem existe; o sinal de internet assume-se uma utopia que só se atinge em períodos de gozo. A decoração é kitsch em esplendor com calendários chineses, um símbolo budista pintado a dourado na barra da minha cama (conflito diplomático à espreita), vários pechisbeques judaicos como se estivesse em Belmonte e um gosto estético na escolha dos têxteis apenas ultrapassada pelo bom gosto de humor de Badaró e do Agildo. A pressão do chuveiro quando se liga a água quente é tal que faço festinhas a mim mesmo com o objecto (não, meninas: não vibra, lamento a desilusão) e volto aos tempos em que uso botijas de gás butano pequenas, que servem o fogão também, controlando-me.

No choque da mudança, ainda não me habituei a ter de ser outro, em parte. Tento refugiar-me em objectos sagrados pessoais para fazer de um lugar estranho uma forma de vida pouco estranha: livros empilhados em cantos e cartas escritas em amor e afecto guardadas na gaveta e em modo SOS quando me sentir mesmo em baixo foram obrigatórios de trazer e numa das divisões, um postal com um Darth Vader desenhado é menos negro do que a sensação de eremita perdido a Sul. O silêncio da casa não me incomoda e apenas torna mais sacra a companhia de imagens que trouxe, como ícones, emoldurados sobre os móveis. São faces que me trazem o sossego devido, amigos que são mais casa do que as paredes, como se em Colos pudesse ter o meu mundo, são outras pessoas especiais cuja presença seria capaz de transformar as minhas pequenas divisões num universo de brilho constante, cheio de galáxias em mim, como se uma casa pudesse ser eu em plenitude, em permanência, como se ao mudarmos de poiso e lugar não me sentisse tão deslocado e fora de tudo, como se a simples recordação de uma pessoa habitasse de finca pé, como se a menção de certos nomes me trouxesse de volta a Ceira, como se a arquitectura de certas faces fosse um local onde, precisamente, nunca deixo de me sentir confortável e eu mesmo e qualquer divisão deste número 6 nunca tivesse deixado de ser casa e minha desde que me conheço.


E sim, há alturas em que desespero por não me sentir em casa, encasinado, por ter saudades e por ser fraco e pouco adulto, por não me assumir na minha vida; é aí que paro e penso em pessoas e locais, em longitudes e latitudes do coração, nos meridianos de lágrimas, nos trópicos dos sorrisos verdadeiros e tento interiorizar que uma casa sou eu, que dou vida e isso é um poder, um super poder aliás, que posso ser um herói e que em quaisquer quatro paredes nunca serei estrangeiro se me abraçar a mim mesmo e me der uma oportunidade. Deitado num sofá, na sala que não é minha mas agora me pertence, escrevo-o e faço muita força para me convencer de que isto é verdade e que posso acreditar e que na morada de agora, namoro esta ideia de estar e ser de outra maneira. De mudar, mas no mesmo local. Na mesma casa.

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