Curioso que, poucos dias depois
de ter aqui escrito uma ode à casa onde passei quase todos os 34 anos desfiados
na vida que me vai cabendo, me apanhe na incidência de habitar num local tão
completamente diferente, longe do meu habitat, longe dessas quatro paredes que
tanto gabei e cuja relação emocional não consigo esconder. Mudar de casa é
também alterar o nosso código postal e só quando o fazemos se descobre que o
nosso sangue e a nossa vida é muito também o que nos rodeia de mais próximo. A
arquitectura de uma casa, a sua geografia condicionam as nossas rotinas, claro,
mas também as nossas reacções e a nossa personalidade, o nosso humor e as
histórias que temos para contar. A escolha de morar em Colos e neste número 6
específico fez-se sem grande orientação prévia, mas um olhar bastou para
escolhê-la entre várias que vi, porque me conheço e sei como funciono, porque
em nenhuma outra me revi. Esta não é, de todo a minha casa; mas habito nela
como quem passa por aqui e não se quer deixar também na planície.
Ora, existem 3 quartos (um deles
meu, outros dois vagantes para quem quiser visitar) e uma cozinha laterais ao
único corredor do espaço, que da porta da entrada conduz a uma sala. Num canto,
à esquerda, uma casa de banho; no canto seguinte uma despensa e se continuarmos
no sentido dos ponteiros do relógio apanha-se uma salamandra, mais quente do
que anfíbia e ideal para invernos alentejanos que já passaram. Nota-se que a
casa é fria, mais do que esperava, estar de cobertor tapado não é apenas um
gesto de conforto, mas uma necessidade.
Abrindo uma porta de metal ao fundo da sala, dá-se para um quintal onde
uma laranjeira já deu os seus frutos e o ar enche-se de cacarejar das galinhas
que passeiam nos terrenos contíguos de duas vizinhas. Não é o som mais
agradável de ouvir, mas torna-se ruído de fundo quando subo para o meu pequeno
terraço de onde consigo ver todo o casario de Colos, branco e empilhado, a
torre da igreja destacando-se no topo e em contra-luz da planície verde,
chaparros ocasionais, o cliché visual repetitivo da aldeia alentejana. É aqui
que como fruta depois do almoço, quando sol me espreita e quando as nuvens
ameaçam sem chover, onde gosto de estar comigo e de observar visões
apocalípticas, como quando as ditas galinhas decidem empoleirar-se no ramo
destacado de uma árvore, em fila, como se o Hitchcock português tivesse deitado
para longe cabos de electricidade e pombos. Imagino que no Verão, as noites
aqui passadas sejam agradáveis, mas ainda faltam uns meses para descobrir.
Regressando ao interior, o branco das paredes cegava-me um pouco ao início, mas
já me habituei. Recordo que da segunda vez que quis entrar neste número 6, dei
por mim perdido na rua, uma marcha de habitações pálidas com a mesma risca
amarela passada como se fosse igual a cada alentejano que a sua casa tenha
personalidade ou não. Hoje já sei distinguir, tiro a pinta pelas orelhas
envidraçadas da casa e se quiser fazer figurinhas de urso, devo recorrer a
outro esquema.
Certas coisas são aqui
comichosas: em primeiro, a rede de telemóvel é uma mentira – na sala rasa o
aceitável, no quarto onde durmo nem existe; o sinal de internet assume-se uma
utopia que só se atinge em períodos de gozo. A decoração é kitsch em esplendor
com calendários chineses, um símbolo budista pintado a dourado na barra da
minha cama (conflito diplomático à espreita), vários pechisbeques judaicos como
se estivesse em Belmonte e um gosto estético na escolha dos têxteis apenas
ultrapassada pelo bom gosto de humor de Badaró e do Agildo. A pressão do
chuveiro quando se liga a água quente é tal que faço festinhas a mim mesmo com
o objecto (não, meninas: não vibra, lamento a desilusão) e volto aos tempos em
que uso botijas de gás butano pequenas, que servem o fogão também,
controlando-me.
No choque da mudança, ainda não
me habituei a ter de ser outro, em parte. Tento refugiar-me em objectos
sagrados pessoais para fazer de um lugar estranho uma forma de vida pouco
estranha: livros empilhados em cantos e cartas escritas em amor e afecto
guardadas na gaveta e em modo SOS quando me sentir mesmo em baixo foram
obrigatórios de trazer e numa das divisões, um postal com um Darth Vader
desenhado é menos negro do que a sensação de eremita perdido a Sul. O silêncio
da casa não me incomoda e apenas torna mais sacra a companhia de imagens que
trouxe, como ícones, emoldurados sobre os móveis. São faces que me trazem o
sossego devido, amigos que são mais casa do que as paredes, como se em Colos
pudesse ter o meu mundo, são outras pessoas especiais cuja presença seria capaz
de transformar as minhas pequenas divisões num universo de brilho constante,
cheio de galáxias em mim, como se uma casa pudesse ser eu em plenitude, em permanência,
como se ao mudarmos de poiso e lugar não me sentisse tão deslocado e fora de
tudo, como se a simples recordação de uma pessoa habitasse de finca pé, como se
a menção de certos nomes me trouxesse de volta a Ceira, como se a arquitectura
de certas faces fosse um local onde, precisamente, nunca deixo de me sentir
confortável e eu mesmo e qualquer divisão deste número 6 nunca tivesse deixado
de ser casa e minha desde que me conheço.
E sim, há alturas em que
desespero por não me sentir em casa, encasinado, por ter saudades e por ser
fraco e pouco adulto, por não me assumir na minha vida; é aí que paro e penso
em pessoas e locais, em longitudes e latitudes do coração, nos meridianos de
lágrimas, nos trópicos dos sorrisos verdadeiros e tento interiorizar que uma
casa sou eu, que dou vida e isso é um poder, um super poder aliás, que posso
ser um herói e que em quaisquer quatro paredes nunca serei estrangeiro se me
abraçar a mim mesmo e me der uma oportunidade. Deitado num sofá, na sala que
não é minha mas agora me pertence, escrevo-o e faço muita força para me
convencer de que isto é verdade e que posso acreditar e que na morada de agora,
namoro esta ideia de estar e ser de outra maneira. De mudar, mas no mesmo
local. Na mesma casa.
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