segunda-feira, março 20, 2017

O decente docente


Às vezes temos jeito para umas coisas que não gostamos muito de fazer e é essa a minha relação com a carreira de professor. Soa gabarolas, mas não é: das poucas coisas que consigo gabar em mim sem ter um ataque de eczema agudo é a minha capacidade de entreter um auditório com três ou quatro histórias. Ser professor é muito isto e se pensarmos que é mais e mais é porque vimos demasiados filmes e séries. Sim, podemos inspirar os alunos e preocuparmo-nos e conduzi-los e essas coisas, mas o importante mesmo é dispô-los na sala de aula e convencê-los de que na próxima hora e meia ouvirão informações não apenas incríveis, mas indispensáveis em absoluto para o seu bem-estar e saúde. No fundo, ensinar é uma long con em que ninguém fica prejudicado: o aluno aprende até mesmo o que não quer e dá por si curioso em relação ao mundo e a assuntos em que nunca pensara; o professor engana-se e acha que é muito mais importante no grande esquema das coisas do que realmente é. A docência é o seu super poder, a sala de aula o trono, aqueles jovens súbditos e enquanto se discerne acerca da matéria ou manda aquela piada que acende a sala em júbilo. é grande por uns momentos. Finda a hora e meia, volta a ser uma roda de engrenagem e regressa ao mundo real.

A escola onde me encontro a trabalhar anuncia-se como agrupamento vertical, uma designação do Ministério da Educação que evoca sempre em mim jogos de Tetris. Existe numa vila com menos de 2000 habitantes e deve a sua existência à inclemência do deserto populacional alentejano: tudo é afastado de tudo e certas referências devem permanecer para servir as populações; é assim que existem seis turmas de 3º ciclo e eu sou o único docente de História da escola. Torna-se complicado passar despercebido por aqui, pois em todo o lado há um aluno, em cada canto um chico esperto que quer dizer bom dia ao professor e sair com vida. Quando aqui cheguei, faz hoje um mês, pouco faltou para me estenderem uma carpete vermelha e lançarem balões jubilantes. Colos estivera sem professor de História durante dois meses e meio e ali aparecia eu, o Desejado. Não me recordava da última vez em que estive nessa posição e por momentos apreciei a sensação; foram segundos de luz que se apagaram quando me recordei de que estive seis anos sem leccionar. Depois chorei por dentro, mas ninguém reparou. Ainda sou "o professor de História", porque antes, cinco mânfios recusaram e este cargo foi um "passa a morte" que chegou até mim. O desprezo de outros torna-me especial e isso é também uma inversão da ordem das coisas.

Esta sensação de que a escola de Colos é uma dimensão à parte de todas influencia o comportamento de todo o pessoal docente: rapidamente orientaram o caçula e fizeram essa coisa linda e que fica sempre bem em avaliações que é "Integrar". Na verdade, sente-se um espírito relaxado na escola. Não de incúria, mas de calma mesmo e a noção de que o nosso trabalho decorre e ninguém morre se houver um ou outro atraso. É preciso cumprir os horários semanais, estar nas reuniões e dar as aulas. Ajuda se, pelo meio, expandirmos os pequenos mundos que estas crianças receberam de herança ao nascerem no interior do concelho de Odemira. Não é obrigação, mas apela a um sentido de caridade e empatia inato, que rasa um pouco aquela sobranceria de gente branca que vai passar um mês num projecto de voluntariado e acha que não só mudou o mundo como sabe o segredo da vida. No dia a seguir, é egoísta como dantes, mas nem interessa. No entanto, agrada-me isto de divulgar e levar coisas novas, logo eu que espalhei a santa palavra de Einaudi como um fogacho em folhas de eucalipto secas por todos os meus amigos. Aulas há em que a divulgação do saber adquire estranhos contornos: quando derem por vós a ter de explicar conceitos religiosos a turmas inteiras que nunca tiveram catequese, perceberão. Diziam os outros que o Alentejo seria novamente seu e pela irreligiosidade dos meus alunos, nunca deixou de sê-lo.

Há certos pormenores neste retiro em Colos que me aborrecem, mas a escolha que me calhou em sorteio de tômbola não é um deles: as turmas são pequenas, o que é sempre bom; os meus colegas não fogem da simpatia e tiveram piedade de um maçarico; as aulas decorrem até às 16.30; e no geral, a pequenada não abusa e o seu conceito de mau comportamento estende-se até ao limite máximo de falar quando não deve. A ausência de toque de entrada e saída ainda me causa confusão, mas é tudo uma questão de decorar as horas e ter um papelinho com o meu horário sempre à mão. Até agora vou conseguindo enganar toda a gente e parece que sou um docente à séria: os alunos vão aprendendo sem grande tédio, as reuniões são feitas e dirigidas e apareço sempre a tempo e horas. Dou mesmo ar de profissional, mas respiro com o coração na ansiedade e só com o tempo, acho, recuperarei o fôlego. Até lá, a vossa presença desse lado é um balão de oxigénio.

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