segunda-feira, abril 24, 2017
A vida normal
Quando cheguei a casa na última terça-feira, aí pelas oito da noite, limitei-me a arrastar malas e sacos e tralhas, basicamente, mais leves do que as que habitualmente recheiam o meu sótão em forma de cabeça. A viagem de carro durara três horas e pela proporção de insectos esmagados no meu pára-choques, a velocidade média fora a suficiente para abrir o contínuo espaço-tempo entre Grândola e Alcácer do Sal. A lentidão estava guardada a memória das férias, escoando como uma ampulheta de pedras de xisto: a parte das férias nem é a pior de deixar para trás, trabalho é cíclico e regressa, de certa forma até aceito-o como quem está manco e pede uma embalagem de Voltaren só para aliviar e sim, sei que revela muito do estado mental de alguém quando o trabalho ocupa um lugar na vida correspondente aos analgésicos, mas a verdade é que aqui por baixo, no debate dos dilemas que trago num saco pelos ombros, daqueles que fazem inveja ao Pai Natal, ocupar a cabeça tornar-se primordial. Nessa noite, aqueci jardineira no micro-ondas e enquanto comia ao sofá (sim, mesas são para quem tem classe e já sabemos que o meu reservatório disso acabou algures quando Donald Trump era apenas uma anedota em vez de pesadelo), caí num marasmo cerebal apenas comparável a cair de bicicleta, dar com as trombas num pinheiro e ficar meio azamboado durante uns momentos, suficientes para julgar que estou no Sri Lanka discutindo termo-dinâmica com Sandokan e Margaret Thatcher. É igualmente deprimente. O mal-estar cai como um metrónomo e no meio de tudo isto, perco a fé em todas as minhas capacidades e julgo que na primeira aula do dia seguinte, me dará uma branca tal que os alunos darão eles próprios a aula, só para humilhar. O susto agitou-me da nuca ao tornozelo e dei a mim próprio um trabalho de casa - resmunguei e maldisse-me, claro, os trabalhos de casa são chagas pútridas que os professores entregam aos seus discentes porque os odeiam, odeiam, odeiam - que não se podia contornar: descobrir a pequena beleza na minha rotina. Cheguei aqui há mês e meio e se não consigo fazer isso, é melhor que me encomende à imaturidade com faixas de campeão crónico levado ao colinho. Ou de Colos, pelo menos.
Mas então, que dias são estes que tomo como meus e ofereço aqui aos outros por escrito? Por norma, acordo às 7.40 ao som do tema de John Reese (não sabem quem é, googlem e envergonhem-se de nunca ter visto a série), que injecta adrenalina nas minhas veias e me convence que consigo dobrar aquele aluno que não sabia até ontem quem era D. Afonso Henriques, mas sairá da minha aula capaz de explicar, em detalhe, o que é o mercantilismo. Tomo o pequeno-almoço enquanto escuto música - recentemente, Caravan Palace e não, não tenho vizinhos do lado, nem por cima, nem por baixo, nem emparedados - e depois de levar aos meus den tes a dose de frescura necessária para não me entaramelar com bafo de sacristia, pego na sacola, tranco a porta e de phones nos ouvidos, percorro o caminho para a escola passo a passo, cinco minutos em que não quero saber de ninguém. O momento é meu e às 8.15 da manhã, Colos é ainda mais um deserto, uma estrada nacional que rasga por entre as casas, brancas e mortiças, dormentes,, ainda mal se apercebendo que lá mora alguém. Contorno o campo de jogos e desço pela ladeia que conduz à entrada da escola. Nalguns dias atravesso o magote de alunos que chega de camioneta, noutros não. Quase sempre encontro as mesmas caras na sala de professores e nos corredores da escola o impossível é não me cruzar com algum aluno meu - ensino seis turmas, todas elas de irrequietos imberbes que vão despertando para as reais coisas da vida, namoros e amizades, alguma palhaçada, perguntas ao professor e comentários, "o professor tem Instagram?", "Professor, não se sente doente, não quer ir para casa?", "Oh professor, como se chamava aquela banda que nos mostrou no outro dia na aula?", e dizem mais coisas sem que eu ouça, de certeza, que nas aulas há espaço para rabecadas e entradas a pés juntos, mas no geral transmito conhecimento (ou tento) a miudagem que não se expande para lá dos limites do aceitável e até ri de histórias e piadas, as palavras assentam-lhes na cabeça como post-its de conhecimento e mais tarde repetem verbatim em testes e começo a questionar tudo, se tenho uma voz radiofónica ou simplesmente os esquemas que lhes dou são banais e fumo que se esbate na memória.
Ser professor não é um sonho meu e ainda que trabalhe muito em piloto automático (o meu modus operandi desde que sou aluno, cortesia de um cérebro ágil para as coisas supérfluas e perro para as que mais interessam), sei que não sou mau, pelo menos, que em alturas fascino a audiência, presa pelo encantamento de uma narrativa, que gera perguntas e dedos no ar que não têm a ver com a matéria, mas a vida não é um conteúdo programático, é mais do que isso, é a curiosidade selvagem e a transmissão de valores: eu ensino, mas tento separar o errado do certo - não como professor, mas como alguém que vê o mundo como a acção do amanhã que foi futuro ontem. Fascismo é algo errado e mau; o colonialismo foi prejudicial, mas o tempo não volta atrás e cada um se torna responsável pelas suas falhas, a Ciência é um auxílio e não uma crença; a História não é a preto e branco, mas certos conceitos são-no de imediato. Estive fora da docência durante seis anos e por isso vou atirando aqui e ali, pedindo ajuda, encontrando-a nos meus colegas que felizmente têm pouco de filhos da mãe e sabem que quanto menos asneiras der, menos lhes sobra. Se isto não é espírito comunitário.
Saio da escola e regresso a pé para casa. Saio sempre a meio da tarde e tenho demasiado tempo livre. Ponho-me a par do mundo, leio, escrevo, percorro os meus canais de vídeo habituais. As pessoas ajudam sempre ao engano de que, em quatro paredes sou só um e por vezes o engano leva-me tão longe quanto o esgar de um sorriso. Banho tomado, jantar feito e comido e a noite é preenchida por filmes, séries e uma pequena revisão da aula do dia seguinte. Ciclo que se repete e quando a semana termina, o fim de semana é de pegar no carro e ter liberdade condicional, sendo que à condição pego na máquina e vou descobrir os limites da prisão, em passeio. É assim. Por vezes, permito-me a algo de diferente. Neste sábado, fui até ao café local ver o derby de Lisboa. Uma sala cheia de benfiquistas, mais velhos do que novos, e vejo, pela primeira vez, gente que tem mais de 18 e menos de 35 por estas dunas. Ederson enterra num lance, penalty para o Sporting. Ninguém reclama, apenas com um pobre brasileiro que se estivesse por cá, sambava no desespero de ver garrafas a voar na sua direcção. O jogo passa, o Benfica controla, o golo não aparece. No intervalo, reparo que o estabelecimento é um altar benfiquista com cachecóis, cartazes e posters, e a sala vai resmungando. Na segunda parte, no entanto, um deus nórdico Lindo em on e em Of, envia, à cobrança, um livre directo para a caixa postal de Rui Patrício e o grito colectivo de golo escuta-se por toda a planície e creio ter feito cair duas tíbias na Capela dos Ossos. Salto com quem lá está dentro, chamamos nomes a toda a gente e segundos depois, caindo em mim, lembro-me de que me esqueci que não estava em casa ou no que é familiar, que vibrei e senti uma alegria arrasadora num local que só me tem trazido a corda bamba do humor, que nalguns dias me levo com suavidade e noutros me arrasto de tal forma que só Einaudi e algum totens pessoais me salvam. Aquele grito de "Golo!" foi do Benfica, sim, mas também o encarnado do meu sangue a rugir e rebentar, a encher-me de uma certa certeza de certeira possibilidade de conseguir ser eu mesmo quando o local tem o menos possível de mim. De que posso ser em muitos lados.
Nessa noite, quando cheguei a casa, dormi, pela primeira vez desde que cheguei sem acordar às cinco e meia da manhã - não justifico esta hora, não consigo - e não sei se foi do festejo, da água a 55 cêntimos ou da luz trémula amarelenta na rua da noite anterior, registei no meu bloco de notas os pequenos prazeres do meu eremitério: à cabeça, a redescoberta do que não sou, mas que existe bem em mim; e não precisei da ajuda do Sandokan.
terça-feira, abril 18, 2017
Pausa lectiva
Posso viver num lugar e mesmo assim voltar a casa noutro. O sentimento manteve-me acordado durante estes dias em que, por virtudes das férias da Páscoa da garotada, voltei a Ceira para uns dias que, à falta de uma definição melhor, foram um pouco como quem calça sapatilhas depois de ter feito o caminho de Santiago em chinelos de lona: é possível e uma aventura interessante, no entanto não será a mais desejável das formas de empreender uma longa caminhada. O Alentejo, esse misto de ganha-pão e pão nosso de cada dia, é-me estranho e acho que sempre será. Podem tirar-me do que sempre foi meu, mas a pertença não morre e não foge. O lá em baixo é apenas um estado passageiro e gasoso, pois é como de um vapor que me vejo nas longas horas só numa casa vazia, onde me entretenho a criar condições mínimas para alguma sanidade. Este quarto onde escrevo é onde sou mais eu, para infelicidade da Humanidade, e amanhã, quando as voltas do volante me fizerem regressar ao teatro de operações, a maneira cirúrgica de me remover do que me preenche, estarei de novo na terra quente, na planície que não termina, nos papéis e manuais e apresentações em computador, cálculos de como entreter gandins. As férias, mesmo quando aluno, sempre me pareceram um faz de conta, um pouco como quando Alice se esgueira por um buraco e dá por si do outro lado da realidade. Colos é a realidade, Ceira a ilusão e estranho como há menos de um ano, lá longe da Ásia Central, esta vila onde cresci era a dureza do mundo e agora me soa a um colchão de penas. Platão tinha razão: a realidade é uma percepção, tantas vezes falhada, nunca fora da influência de drogas várias.
Vale-me redescobrir Coimbra mais a sério, o valor do Choupal e de uma caminhada ao sol, por entre o malhadiço da folhagem num dia de Verão entre insectos irritantes e folhas que tombam, pétalas que preenchem o chão debaixo dos meus pés, enquanto escuto entrevistas em rádio acerca de temas cujo bom senso me impede de mencioná-los em abordagens a quem não me conhece, sob pena de aparecer como uma curvatura distorcida da realidade. Pegar no carro e percorrer locais mais santos do que Jerusalém, entre a serra da Lousã e uns penedos em Góis que me viram os pulmões do avesso e do avesso me iluminam o interior. Reencontro amigos e há abraços, conversas de situação e sobre situações, combinar cenas e takes, rir à volta de uma mesa de café, saber o que é companhia e calor humano, a vontade que outros têm de disfrutar da companhia de alguém que tem as paredes de casa por companhia e a uma opinião de si mesmo ao nível das galerias mais baixas das minhas de S. Domingos. Sentir-me no meu quarto, sentar-me na minha cama, sem ter-me por adquirido, coisas banais e pequenas, quotidianas, ver filmes antigos com amigos, rir deles, comentar e achar que é tudo bom, tudo normal, que quando amanhã, por esta hora, já estiver a dormir, será numa casa onde só me tenho por companhia e numa tarefa de redescobrir o equilíbrio do exército funâmbulo de um só homem. As férias da Páscoa são um exercício de alta finança, uma reavaliação da minha bolsa de valores, a ideia de que todos os grandes planos e desejos e ansiedades são um engodo e que nos anões da minúcia diária existe algo de mágico lá dentro, intrínseco e tão complicado de descodificar como um cubo de Rubik, mas simples de gozar, de apreciar, de se tornar importante.
Levo para baixo tudo isso, um bocadinho mais seguro e protegido, como se o que é familiar e quem nos vêm como um bocadinho de família e de mobília nos fizesse sentar na mais segura das cadeiras.Vai também comigo uma semente de novidade, o inesperado em tons de amarelo, a possibilidade de novos capítulos, um pouco mais de coragem para encaixar o desconhecido e desembrulhá-lo, ou até debulhá-lo, à boa maneira do campo. No meio, tento não perder-me de mim próprio, mas perder o que a mim próprio me tenta, Não é tarefa fácil, mas grandes obras humanas vieram de períodos de exílio. De uma certa maneira, o Alentejo acentua o que há em mim de megalómano. A sorte de todos é que, apesar da queda de cabelo, ainda não uso uma peruca dourada. Mas há raposas nos campos do Alentejo. Não tarda, coloco uma em cima da minha cabeça.
segunda-feira, abril 10, 2017
O eterno porquê dos meus sentidos e sentimentos
Onze dias em Coimbra para descansar a cabecinha, respirar um pouco de outros ares, recordar um sítio mais que não seja o deserto. Esta semana não se fala sobre o Alentejo ou sobre a minha vida nova, nem acerca do pitoresco e do engraçado, do curioso e das miscelâneas a Sul que tornaram alguns dos meus dias na habitação de um mundo novo e diferente. O que lerão falará de demónios antigos, do maior deles aliás, de um monstro que domina a minha existência há muitos anos, um ponto fraco que é o mais forte, a verdadeira razão pela qual escrevo este blogue há doze anos e nunca deixei de ter assunto, palavras, frases e gramáticas, caligrafias emocionais de exclamação e interrogação, uma cornucópia invertida de tema que se dilui nuns pontos, se reforça noutros e aparece encapotado nos restantes, estando sempre no centro de tudo o que escrevo, crio e penso: o amor. Também lhe chamo a doença psiquiátrica não diagnosticada, ou o camelo do deserto que te leva a um oásis de areia ou também a ladeira de empedrado à qual chegaste com um arado de madeira, ou uma insónia permanente que me rouba anos de vida em segundos de desespero. É pouco simpático, bem sei, retribui-se aquilo que se recebe.
Torna-se complicado escrever sobre isto sem soar repetitivo. Leitores mais recentes não terão essa sensação, habituados a crónicas de viagem e de emigração, de um olhar sobre o exterior, mas é do interior que os mais fiéis e duradouros frequentadores da ilha deste gajo complexo se recordam e até se fartaram. O que é normal, concedo: eu tenho um hábito, péssimo como muitos, de me queixar e queixar e queixar sobre os meus problemas pessoais, ao ponto de fazer com que o Calimero pareça o Clint Eastwood. É legítima a queixa, mas quem gosta das divagações curiosas deve perceber que sem esta eterna interrogação da minha vida, nada mais existiria. O que escrevo sempre foi a tentativa de responder ao que me atormenta e a minha máxima dor reside não no lado esquerdo do peito (amigos, o coração bombeia sangue, não amor) mas aquela área atrás do estômago e abaixo do cérebro que rebola quando a paixão é alimento. Sou um corpo de 34 anos com muito pouco de adulto no espírito, mais preocupado com a ausência de uma outra pessoa do que com o desemprego longo ou ainda morar com a minha mãe. Sim, esse tipo de indivíduo que parece recusar-se a crescer e transportar durante toda uma vida uma adolescência perpétua. Poderia justificar-me (porque existem justificações, quer percebam ou não), mas nem tento fazê-lo. Sou assim e tento aceitar, se é que isto se torna aceitável com o tempo - que não torna, continuo a sentir-me tão infantil que ainda me olho como incapaz de ser responsável o suficiente para fazer vida comigo, quanto mais com outro alguém - mas acima de tudo compreender a razão e o motivo, se está em mim (que está, só pode) e qual é.
A bem dizer, teoria não faltam. Decerto alguns se reconhecerão como interlocutores neste longo diálogo que mantenho com outros acerca deste assunto. Uns até mais, porque têm sido permanentes ao longo dos anos na pergunta que não quer calar e na resposta que muda e é muda. A minha própria reflexão já passou por várias fases: primeiro quis acreditar que simplesmente não merecia; depois, a tese central defendeu que sou, na verdade, um misto de vómito e caganeira. Quando, algures no meu caminho, algumas coisas começaram a acontecer, claramente essa justificação se esvaziou como um balão colorido a quem desatam o cordel no final da festa e vi-me perdido, pois assentara toda a minha personalidade na verdade insofismável de que era o condensador de estrume de toda a Terra. O passo lógico seguinte era, claro, a ideia de quem ninguém me compreende, de que sou um ser único e especial e fantástico, difícil de contentar, a total inversão dos valores anteriores. A seguir, disse a mim mesmo que não conseguia amar, que era um bloco de basalto arrefecido pelas águas do tempo e pelo sal do pessimismo, um sódio que corrói agreste, mas surgiu, totalmente fora de rota, um asteróide chamado D. para desmentir isso e novamente fiquei baralhado: como é que alguém deixava, sem medo, que me encolhesse na palma da sua mão e assim me tornasse maior do que alguma vez me senti? Como é que uma criatura de aparente amor infindável me aceitava e desejava e puxava para a sua vida com a força de quem morde a terra quando não estamos presentes? Fiquei baralhado, sim, por ela, por ser feliz com ela e por ser feliz de todo. Quando a aventura chegou ao fim, reforcei tudo o que de pior pensava e tal durou apenas o tempo de outro mundo se abater sobre mim e questionar praticamente todas as teorias que defendi a mim e a outros ao longo dos anos, desde a adolescência, desde que a minha personalidade é um cimento por dentro. Também essa aventura acabou e depois de um ou outro desvio mais importante ou não, alguns negros e outros cinzentos e um bem violeta, continuei a perguntar: porquê? E porque é que todas as alegrias da minha vida, porque é que um novo emprego, porque é que regressar a casa de férias, porque é que a oferta da amizade sincera em risos e gestos e convites, porque é que graça de outras pessoas, não me coloca na cara um sorriso, não é uma felicidade tal que me faça esquecer o resto?
Sim, é possível que haja em mim um crónico insatisfeito. Ser infeliz não é, para mim, um gosto ou um objectivo, mas quando me sento e penso, não ter essa pessoa especial para partilhar a vida e as minhas coisas, alguém com quem construir outro mundo, que me tire de uma solidão que ergui quase à medida e com quem aprenda a ser mais do que sou, é demolidor. Opiniões alheias já avançaram que o meu problema é centrar-me demasiado nisto, e é verdade, que devia relaxar, o que não é falso, que acabará por aparecer e neste ponto duvido sempre, lanço uma frase derrotista que quase acaba a conversa, sou contraposto com uma máxima que quer resumir todo o esforço e luta da vida a um conjunto de palavras, um conselho que procure outro tipo de ajuda mais clínica (o que já fiz), que ninguém deve viver sem ter os lábios como uma persiana aberta para o sol e têm razão, ninguém merece, mas eu vivo para perceber a causa das coisas e não só a raiz dos problemas como também o caule, as folhas e os frutos; a falta de confiança não tem charme e o aspecto descuidado não ajuda, também já as ouvi, e devias "dar mais para trás, porque elas gostam de luta", o que me parece logo um motivo para nem me interessar por alguém assim, porque para jogos já basta o Benfica. Tudo é sempre uma lotaria, é o que sinto, que há ondas de sorte e de azar, que o imprevisto reina e nós apenas balizamos o seu efeito, mas ainda nem entendi o meu. Nem o que posso fazer, nem como ser menos um ser deformado aos trambolhões na vida, muito menos impedir-me de tornar numa espécie de estrela morta que se contrai ao ponto de implodir e consigo arrastar toda a luz.
E não é a última vez que me debruçarei nesta varanda, decerto. Gostava de poder descansar-vos e dizer que sim, que não mais vos perturbarei com estas preocupações pueris, mas sei que quando desligar este computador e a minha cabeça pousar sobre a almofada, uns minutos serão gastos a questionar: Bruno, porque é que estás só? Ou melhor, porque é estás só dessa maneira? A resposta não surgirá racional, mas sim na forma de uma gigantesca agressão mental que me tira um pouco do sabor de tudo o resto. É um problema sério, tratado com seriedade, mas do qual me rio de vez em quando e o qual transformo em livros séries, e em doze anos de um blog, e vejam bem como não consegui responder-lhe. Da próxima vez que me perguntarem porque é que não durmo bem e eu der como resposta "Insónias", saibam que o problema não é falta de sono: é excesso de batida, e quem passa a semana da Queima das Fitas perto do recinto sabe bem que com excesso de batida não há sono que resista: olhos bem abertos, o mundo abre e fecha e no dia seguinte, a angústia continua. Talvez esta última comparação seja demasiado dramática, mas lembrem-se que não estão a ler "A Pipoca Mais Doce".
segunda-feira, abril 03, 2017
Fixar-me
Viver no nenhures do Alentejo
exige uma certa disciplina de espírito: estar solitário é um dado adquirido e
nos tempos livres, torna-se essencial dominar duas artes quase milenares: a
vivência connosco mesmos e saber preencher o tempo de forma a não criar raízes
no tédio. Ao longo da minha vida, sou mais artista de uma do que de outra, mas
nunca mestre absoluto em qualquer uma delas. Sabermos estar com a nossa
companhia é um exercício complicado quando o “eu” tem a inquietude mental de um
esquilo rodeado de avelãs e, como é meu apanágio, um dom fulminante de dar ao
chicote sobre o meu próprio lombo mental. Ao contrário de certos mitos que se
espalharam entres os meus conhecimentos, a minha convivência comigo,nunca
pacífica, pauta-se por um respeito pessoal e uma incapacidade de me aborrecer
quando estou sozinho. As minhas ideias são por norma tão idiotas e descabidas
que passo metade do tempo a matutar sobre elas e a outra metade interrogando-me
sobre onde a sua origem. Assim se passam horas que de engraçado têm pouco, mas
de fascinante são camiões TIR em tamanho. A guerra que ocorre de mim para
comigo nunca me impede de reconhecer que o meu cérebro é das melhores coisinhas
que tenho e colocá-lo a trabalhar é ao mesmo tempo perigoso e de enorme
gulodice. Sobrou-me assim cá em baixo arranjar um hobbie para me entreter. A escrita estava fora de questão, pois é
demasiado importante e medular, demasiado essencial e sanguínea para encará-la
de ânimo tão leve. Ainda assim, surgiu há uns anos na minha vida algo que se
desenvolveu e entranhou e tem funcionado melhor do que qualquer meditação
transcendente ou yoga.
Ora, não me recordo quando
comecei a levar a Fotografia mais a sério. Terá sido antes de adquirir a minha
actual máquina, uma Nikon D3200 que embora modesta nas suas ambições, já
permite umas brincadeiras. O prazer que retiro na construção de uma imagem podia
perfeitamente ser imputado à minha paixão pela 7ª Arte, mas reconheço lá na
profundidade dos motivos, quase numa vergonha pública, que o
principal motivo se deve ao facto de ter como mãos um par de tamancos de
madeira e não poder, assim, desenhar ou fazer qualquer coisa de criativo com as
mãos. Como tal, virei-me para a outra forma que conhecia de criar desenhos, mas
da vida real. De pequenas máquinas digitais passou-se a algo mais sério,
tentando convencer-me de que sabia fazer alguma coisa com aquilo e a pouco e
pouco, sem estudar técnica fotográfica ou regras de composição, fotografar
passou a ser algo tão natural e presente que o meu estojo fotográfico vai
sempre comigo em viagem, não vá eu cruzar-me com um daqueles cenários únicos e
fascinantes que ficam bem imóveis num formato digital para dezenas de likes no Facebook. É certo que elogios
nas redes sociais também contribuem para que me convença a continuar, mas acima
de tudo há dois motivos pelos quais fotografar se tornou numa recorrência
regular.
O primeiro é a abstracção que me
causa quando me encontro apenas eu com a paisagem. Invariavelmente é a
paisagens que me dedico: a minha falta de jeito para lidar com pessoas
transferiu-se também para a sua captura no jogo de espelhos da máquina. É aí
que a luz penettra e fixa as imagens e está visto que eu de luz tenho pouco,
sou mais negrume e breu e na verdade a minha fé nas pessoas tem diminuído
recentemente, o que também não ajuda. No entanto, e como na vida, quero muito
acreditar que consigo também apanhar a essência de alguém numa imagem e não
desisto. Olhar o mundo como ele é, no
entanto, é o meu ponto forte: o enquadramento, a composição, jogar à apanhada
com a luz apenas para vê-la esvair-se por entre as minhas mãos transforma o
simples acto de ver a paisagem por um quadradinho pequenino e tolo numa
meditação sobre a vida e num ponto de fuga a mim mesmo. Calculo números, testo
luminosidade e sombra , em pé ou de joelho à profissional, agora a
verticalidade e depois a horizontalidade, tudo isto que se segue à atenção que
os meus olhos dedicam a um pequeno instante do mundo que passou e fica firme,
esperando que na minha paciência me dedique a jogar xadrez com o mundo. Toda a
vida me programei para uma relação visual com montanhas e altitude e tal é algo
de pouco abundante na paisagem alentejana. Sair em safari fotográfico aqui pelo
sul é desprogramar-me e aprender a gozar a planície, apreciar uma luz
diferente e a redescoberta do gozo que a profundidade pode trazer a uma
fotografia. Vai-se do mar ao campo e há razões em todo o lado para dar dedo,
pede-se apenas atenção e uma oportunidade de experienciar novos cenários e
belezas. Não é fácil, mas se me quero distrair aqui por baixo, insisto e já
levo que mostrar.
O segundo é o meu apego ao
espaços abertos e livres, ao convite da estrada à frente de um volante, à acção
de duas pernas que abrem a boca para engolir a terra. A máquina fotográfica é a
maneira de contar a história sem impedimento de gramáticas e pontuações e
embora seja mais fácil trazer o fascínio em frases encadeadas ao ritmo de
quilómetros, uma imagem vale não só mais do que mil palavras, mas também cem
espantos. Soltar um suspiro fotográfico é devolver ao mundo um obrigado egoísta
e se fotografar é, acima de tudo, negociar com a luz, lidar com ela, domá-la
para que nos oferte a imagem que queremos, é acima de tudo uma homenagem ao
mundo, a vénia de reconhecimento que algo é tão esplendoroso e dominador, tão
rei de nós e tudo o mais que queremos levá-lo connosco sem poder. Nas paisagens
do Alentejo, perco a minha mente e vou aprendendo a construir uma ligação a
este novo canto do país onde sou, e serei sempre, um estrangeiro. Sento-me às
vezes no Nada dos chaparros e dos montados, escutando os pássaros e o silêncio,
olhando sem obstáculos uma distância sem fim, sentindo-me regurgitado por um
ambiente que não é meu, mas que pedi emprestado. Quando o fotografo, roubo-o.
Sempre gostei de me sentir transgressor e em calhando, é com a máquina que,
feito rebelde, irei desaparecendo no calor das cores do Alentejo, na clareza do
céu, nas filas de sobreiros que tombam e murcham na sua copa, em protesto
contra o esquecimento que a esta zona foi votada. O meu único trabalho e ajuda
é guardá-los numa câmara escura, para que todos saibam que existem e que também
eu vou vivendo, ocasionalmente, abaixo da linha do Tejo.
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