Viver no nenhures do Alentejo
exige uma certa disciplina de espírito: estar solitário é um dado adquirido e
nos tempos livres, torna-se essencial dominar duas artes quase milenares: a
vivência connosco mesmos e saber preencher o tempo de forma a não criar raízes
no tédio. Ao longo da minha vida, sou mais artista de uma do que de outra, mas
nunca mestre absoluto em qualquer uma delas. Sabermos estar com a nossa
companhia é um exercício complicado quando o “eu” tem a inquietude mental de um
esquilo rodeado de avelãs e, como é meu apanágio, um dom fulminante de dar ao
chicote sobre o meu próprio lombo mental. Ao contrário de certos mitos que se
espalharam entres os meus conhecimentos, a minha convivência comigo,nunca
pacífica, pauta-se por um respeito pessoal e uma incapacidade de me aborrecer
quando estou sozinho. As minhas ideias são por norma tão idiotas e descabidas
que passo metade do tempo a matutar sobre elas e a outra metade interrogando-me
sobre onde a sua origem. Assim se passam horas que de engraçado têm pouco, mas
de fascinante são camiões TIR em tamanho. A guerra que ocorre de mim para
comigo nunca me impede de reconhecer que o meu cérebro é das melhores coisinhas
que tenho e colocá-lo a trabalhar é ao mesmo tempo perigoso e de enorme
gulodice. Sobrou-me assim cá em baixo arranjar um hobbie para me entreter. A escrita estava fora de questão, pois é
demasiado importante e medular, demasiado essencial e sanguínea para encará-la
de ânimo tão leve. Ainda assim, surgiu há uns anos na minha vida algo que se
desenvolveu e entranhou e tem funcionado melhor do que qualquer meditação
transcendente ou yoga.
Ora, não me recordo quando
comecei a levar a Fotografia mais a sério. Terá sido antes de adquirir a minha
actual máquina, uma Nikon D3200 que embora modesta nas suas ambições, já
permite umas brincadeiras. O prazer que retiro na construção de uma imagem podia
perfeitamente ser imputado à minha paixão pela 7ª Arte, mas reconheço lá na
profundidade dos motivos, quase numa vergonha pública, que o
principal motivo se deve ao facto de ter como mãos um par de tamancos de
madeira e não poder, assim, desenhar ou fazer qualquer coisa de criativo com as
mãos. Como tal, virei-me para a outra forma que conhecia de criar desenhos, mas
da vida real. De pequenas máquinas digitais passou-se a algo mais sério,
tentando convencer-me de que sabia fazer alguma coisa com aquilo e a pouco e
pouco, sem estudar técnica fotográfica ou regras de composição, fotografar
passou a ser algo tão natural e presente que o meu estojo fotográfico vai
sempre comigo em viagem, não vá eu cruzar-me com um daqueles cenários únicos e
fascinantes que ficam bem imóveis num formato digital para dezenas de likes no Facebook. É certo que elogios
nas redes sociais também contribuem para que me convença a continuar, mas acima
de tudo há dois motivos pelos quais fotografar se tornou numa recorrência
regular.
O primeiro é a abstracção que me
causa quando me encontro apenas eu com a paisagem. Invariavelmente é a
paisagens que me dedico: a minha falta de jeito para lidar com pessoas
transferiu-se também para a sua captura no jogo de espelhos da máquina. É aí
que a luz penettra e fixa as imagens e está visto que eu de luz tenho pouco,
sou mais negrume e breu e na verdade a minha fé nas pessoas tem diminuído
recentemente, o que também não ajuda. No entanto, e como na vida, quero muito
acreditar que consigo também apanhar a essência de alguém numa imagem e não
desisto. Olhar o mundo como ele é, no
entanto, é o meu ponto forte: o enquadramento, a composição, jogar à apanhada
com a luz apenas para vê-la esvair-se por entre as minhas mãos transforma o
simples acto de ver a paisagem por um quadradinho pequenino e tolo numa
meditação sobre a vida e num ponto de fuga a mim mesmo. Calculo números, testo
luminosidade e sombra , em pé ou de joelho à profissional, agora a
verticalidade e depois a horizontalidade, tudo isto que se segue à atenção que
os meus olhos dedicam a um pequeno instante do mundo que passou e fica firme,
esperando que na minha paciência me dedique a jogar xadrez com o mundo. Toda a
vida me programei para uma relação visual com montanhas e altitude e tal é algo
de pouco abundante na paisagem alentejana. Sair em safari fotográfico aqui pelo
sul é desprogramar-me e aprender a gozar a planície, apreciar uma luz
diferente e a redescoberta do gozo que a profundidade pode trazer a uma
fotografia. Vai-se do mar ao campo e há razões em todo o lado para dar dedo,
pede-se apenas atenção e uma oportunidade de experienciar novos cenários e
belezas. Não é fácil, mas se me quero distrair aqui por baixo, insisto e já
levo que mostrar.
O segundo é o meu apego ao
espaços abertos e livres, ao convite da estrada à frente de um volante, à acção
de duas pernas que abrem a boca para engolir a terra. A máquina fotográfica é a
maneira de contar a história sem impedimento de gramáticas e pontuações e
embora seja mais fácil trazer o fascínio em frases encadeadas ao ritmo de
quilómetros, uma imagem vale não só mais do que mil palavras, mas também cem
espantos. Soltar um suspiro fotográfico é devolver ao mundo um obrigado egoísta
e se fotografar é, acima de tudo, negociar com a luz, lidar com ela, domá-la
para que nos oferte a imagem que queremos, é acima de tudo uma homenagem ao
mundo, a vénia de reconhecimento que algo é tão esplendoroso e dominador, tão
rei de nós e tudo o mais que queremos levá-lo connosco sem poder. Nas paisagens
do Alentejo, perco a minha mente e vou aprendendo a construir uma ligação a
este novo canto do país onde sou, e serei sempre, um estrangeiro. Sento-me às
vezes no Nada dos chaparros e dos montados, escutando os pássaros e o silêncio,
olhando sem obstáculos uma distância sem fim, sentindo-me regurgitado por um
ambiente que não é meu, mas que pedi emprestado. Quando o fotografo, roubo-o.
Sempre gostei de me sentir transgressor e em calhando, é com a máquina que,
feito rebelde, irei desaparecendo no calor das cores do Alentejo, na clareza do
céu, nas filas de sobreiros que tombam e murcham na sua copa, em protesto
contra o esquecimento que a esta zona foi votada. O meu único trabalho e ajuda
é guardá-los numa câmara escura, para que todos saibam que existem e que também
eu vou vivendo, ocasionalmente, abaixo da linha do Tejo.
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