Onze dias em Coimbra para descansar a cabecinha, respirar um pouco de outros ares, recordar um sítio mais que não seja o deserto. Esta semana não se fala sobre o Alentejo ou sobre a minha vida nova, nem acerca do pitoresco e do engraçado, do curioso e das miscelâneas a Sul que tornaram alguns dos meus dias na habitação de um mundo novo e diferente. O que lerão falará de demónios antigos, do maior deles aliás, de um monstro que domina a minha existência há muitos anos, um ponto fraco que é o mais forte, a verdadeira razão pela qual escrevo este blogue há doze anos e nunca deixei de ter assunto, palavras, frases e gramáticas, caligrafias emocionais de exclamação e interrogação, uma cornucópia invertida de tema que se dilui nuns pontos, se reforça noutros e aparece encapotado nos restantes, estando sempre no centro de tudo o que escrevo, crio e penso: o amor. Também lhe chamo a doença psiquiátrica não diagnosticada, ou o camelo do deserto que te leva a um oásis de areia ou também a ladeira de empedrado à qual chegaste com um arado de madeira, ou uma insónia permanente que me rouba anos de vida em segundos de desespero. É pouco simpático, bem sei, retribui-se aquilo que se recebe.
Torna-se complicado escrever sobre isto sem soar repetitivo. Leitores mais recentes não terão essa sensação, habituados a crónicas de viagem e de emigração, de um olhar sobre o exterior, mas é do interior que os mais fiéis e duradouros frequentadores da ilha deste gajo complexo se recordam e até se fartaram. O que é normal, concedo: eu tenho um hábito, péssimo como muitos, de me queixar e queixar e queixar sobre os meus problemas pessoais, ao ponto de fazer com que o Calimero pareça o Clint Eastwood. É legítima a queixa, mas quem gosta das divagações curiosas deve perceber que sem esta eterna interrogação da minha vida, nada mais existiria. O que escrevo sempre foi a tentativa de responder ao que me atormenta e a minha máxima dor reside não no lado esquerdo do peito (amigos, o coração bombeia sangue, não amor) mas aquela área atrás do estômago e abaixo do cérebro que rebola quando a paixão é alimento. Sou um corpo de 34 anos com muito pouco de adulto no espírito, mais preocupado com a ausência de uma outra pessoa do que com o desemprego longo ou ainda morar com a minha mãe. Sim, esse tipo de indivíduo que parece recusar-se a crescer e transportar durante toda uma vida uma adolescência perpétua. Poderia justificar-me (porque existem justificações, quer percebam ou não), mas nem tento fazê-lo. Sou assim e tento aceitar, se é que isto se torna aceitável com o tempo - que não torna, continuo a sentir-me tão infantil que ainda me olho como incapaz de ser responsável o suficiente para fazer vida comigo, quanto mais com outro alguém - mas acima de tudo compreender a razão e o motivo, se está em mim (que está, só pode) e qual é.
A bem dizer, teoria não faltam. Decerto alguns se reconhecerão como interlocutores neste longo diálogo que mantenho com outros acerca deste assunto. Uns até mais, porque têm sido permanentes ao longo dos anos na pergunta que não quer calar e na resposta que muda e é muda. A minha própria reflexão já passou por várias fases: primeiro quis acreditar que simplesmente não merecia; depois, a tese central defendeu que sou, na verdade, um misto de vómito e caganeira. Quando, algures no meu caminho, algumas coisas começaram a acontecer, claramente essa justificação se esvaziou como um balão colorido a quem desatam o cordel no final da festa e vi-me perdido, pois assentara toda a minha personalidade na verdade insofismável de que era o condensador de estrume de toda a Terra. O passo lógico seguinte era, claro, a ideia de quem ninguém me compreende, de que sou um ser único e especial e fantástico, difícil de contentar, a total inversão dos valores anteriores. A seguir, disse a mim mesmo que não conseguia amar, que era um bloco de basalto arrefecido pelas águas do tempo e pelo sal do pessimismo, um sódio que corrói agreste, mas surgiu, totalmente fora de rota, um asteróide chamado D. para desmentir isso e novamente fiquei baralhado: como é que alguém deixava, sem medo, que me encolhesse na palma da sua mão e assim me tornasse maior do que alguma vez me senti? Como é que uma criatura de aparente amor infindável me aceitava e desejava e puxava para a sua vida com a força de quem morde a terra quando não estamos presentes? Fiquei baralhado, sim, por ela, por ser feliz com ela e por ser feliz de todo. Quando a aventura chegou ao fim, reforcei tudo o que de pior pensava e tal durou apenas o tempo de outro mundo se abater sobre mim e questionar praticamente todas as teorias que defendi a mim e a outros ao longo dos anos, desde a adolescência, desde que a minha personalidade é um cimento por dentro. Também essa aventura acabou e depois de um ou outro desvio mais importante ou não, alguns negros e outros cinzentos e um bem violeta, continuei a perguntar: porquê? E porque é que todas as alegrias da minha vida, porque é que um novo emprego, porque é que regressar a casa de férias, porque é que a oferta da amizade sincera em risos e gestos e convites, porque é que graça de outras pessoas, não me coloca na cara um sorriso, não é uma felicidade tal que me faça esquecer o resto?
Sim, é possível que haja em mim um crónico insatisfeito. Ser infeliz não é, para mim, um gosto ou um objectivo, mas quando me sento e penso, não ter essa pessoa especial para partilhar a vida e as minhas coisas, alguém com quem construir outro mundo, que me tire de uma solidão que ergui quase à medida e com quem aprenda a ser mais do que sou, é demolidor. Opiniões alheias já avançaram que o meu problema é centrar-me demasiado nisto, e é verdade, que devia relaxar, o que não é falso, que acabará por aparecer e neste ponto duvido sempre, lanço uma frase derrotista que quase acaba a conversa, sou contraposto com uma máxima que quer resumir todo o esforço e luta da vida a um conjunto de palavras, um conselho que procure outro tipo de ajuda mais clínica (o que já fiz), que ninguém deve viver sem ter os lábios como uma persiana aberta para o sol e têm razão, ninguém merece, mas eu vivo para perceber a causa das coisas e não só a raiz dos problemas como também o caule, as folhas e os frutos; a falta de confiança não tem charme e o aspecto descuidado não ajuda, também já as ouvi, e devias "dar mais para trás, porque elas gostam de luta", o que me parece logo um motivo para nem me interessar por alguém assim, porque para jogos já basta o Benfica. Tudo é sempre uma lotaria, é o que sinto, que há ondas de sorte e de azar, que o imprevisto reina e nós apenas balizamos o seu efeito, mas ainda nem entendi o meu. Nem o que posso fazer, nem como ser menos um ser deformado aos trambolhões na vida, muito menos impedir-me de tornar numa espécie de estrela morta que se contrai ao ponto de implodir e consigo arrastar toda a luz.
E não é a última vez que me debruçarei nesta varanda, decerto. Gostava de poder descansar-vos e dizer que sim, que não mais vos perturbarei com estas preocupações pueris, mas sei que quando desligar este computador e a minha cabeça pousar sobre a almofada, uns minutos serão gastos a questionar: Bruno, porque é que estás só? Ou melhor, porque é estás só dessa maneira? A resposta não surgirá racional, mas sim na forma de uma gigantesca agressão mental que me tira um pouco do sabor de tudo o resto. É um problema sério, tratado com seriedade, mas do qual me rio de vez em quando e o qual transformo em livros séries, e em doze anos de um blog, e vejam bem como não consegui responder-lhe. Da próxima vez que me perguntarem porque é que não durmo bem e eu der como resposta "Insónias", saibam que o problema não é falta de sono: é excesso de batida, e quem passa a semana da Queima das Fitas perto do recinto sabe bem que com excesso de batida não há sono que resista: olhos bem abertos, o mundo abre e fecha e no dia seguinte, a angústia continua. Talvez esta última comparação seja demasiado dramática, mas lembrem-se que não estão a ler "A Pipoca Mais Doce".
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