segunda-feira, abril 24, 2017

A vida normal


Quando cheguei a casa na última terça-feira, aí pelas oito da noite, limitei-me a arrastar malas e sacos e tralhas, basicamente, mais leves do que as que habitualmente recheiam o meu sótão em forma de cabeça. A viagem de carro durara três horas e pela proporção de insectos esmagados no meu pára-choques, a velocidade média fora a suficiente para abrir o contínuo espaço-tempo entre Grândola e Alcácer do Sal. A lentidão estava guardada a memória das férias, escoando como uma ampulheta de pedras de xisto: a parte das férias nem é a pior de deixar para trás, trabalho é cíclico e regressa, de certa forma até aceito-o como quem está manco e pede uma embalagem de Voltaren só para aliviar e sim, sei que revela muito do estado mental de alguém quando o trabalho ocupa um lugar na vida correspondente aos analgésicos, mas a verdade é que aqui por baixo, no debate dos dilemas que trago num saco pelos ombros, daqueles que fazem inveja ao Pai Natal, ocupar a cabeça tornar-se primordial. Nessa noite, aqueci jardineira no micro-ondas e enquanto comia ao sofá (sim, mesas são para quem tem classe e já sabemos que o meu reservatório disso acabou algures quando Donald Trump era apenas uma anedota em vez de pesadelo), caí num marasmo cerebal apenas comparável a cair de bicicleta, dar com as trombas num pinheiro e ficar meio azamboado durante uns momentos, suficientes para julgar que estou no Sri Lanka discutindo termo-dinâmica com Sandokan e Margaret Thatcher. É igualmente deprimente. O mal-estar cai como um metrónomo e no meio de tudo isto, perco a fé em todas as minhas capacidades e julgo que na primeira aula do dia seguinte, me dará uma branca tal que os alunos darão eles próprios a aula, só para humilhar. O susto agitou-me da nuca ao tornozelo e dei a mim próprio um trabalho de casa - resmunguei e maldisse-me, claro, os trabalhos de casa são chagas pútridas que os professores entregam aos seus discentes porque os odeiam, odeiam, odeiam - que não se podia contornar: descobrir a pequena beleza na minha rotina. Cheguei aqui há mês e meio e se não consigo fazer isso, é melhor que me encomende à imaturidade com faixas de campeão crónico levado ao colinho. Ou de Colos, pelo menos.

Mas então, que dias são estes que tomo como meus e ofereço aqui aos outros por escrito? Por norma, acordo às 7.40 ao som do tema de John Reese (não sabem quem é, googlem e envergonhem-se de nunca ter visto a série), que injecta adrenalina nas minhas veias e me convence que consigo dobrar aquele aluno que não sabia até ontem quem era D. Afonso Henriques, mas sairá da minha aula capaz de explicar, em detalhe, o que é o mercantilismo. Tomo o pequeno-almoço enquanto escuto música - recentemente, Caravan Palace e não, não tenho vizinhos do lado, nem por cima, nem por baixo, nem emparedados - e depois de levar aos meus den tes a dose de frescura necessária para não me entaramelar com bafo de sacristia, pego na sacola, tranco a porta e de phones nos ouvidos, percorro o caminho para a escola passo a passo, cinco minutos em que não quero saber de ninguém. O momento é meu e às 8.15 da manhã, Colos é ainda mais um deserto, uma estrada nacional que rasga por entre as casas, brancas e mortiças, dormentes,, ainda mal se apercebendo que lá mora alguém. Contorno o campo de jogos e desço pela ladeia que conduz à entrada da escola. Nalguns dias atravesso o magote de alunos que chega de camioneta, noutros não. Quase sempre encontro as mesmas caras na sala de professores e nos corredores da escola o impossível é não me cruzar com algum aluno meu - ensino seis turmas, todas elas de irrequietos imberbes que vão despertando para as reais coisas da vida, namoros e amizades, alguma palhaçada, perguntas ao professor e comentários, "o professor tem Instagram?", "Professor, não se sente doente, não quer ir para casa?", "Oh professor, como se chamava aquela banda que nos mostrou no outro dia na aula?", e dizem mais coisas sem que eu ouça, de certeza, que nas aulas há espaço para rabecadas e entradas a pés juntos, mas no geral transmito conhecimento (ou tento) a miudagem que não se expande para lá dos limites do aceitável e até ri de histórias e piadas, as palavras assentam-lhes na cabeça como post-its de conhecimento e mais tarde repetem verbatim em testes e começo a questionar tudo, se tenho uma voz radiofónica ou simplesmente os esquemas que lhes dou são banais e fumo que se esbate na memória.


Ser professor não é um sonho meu e ainda que trabalhe muito em piloto automático (o meu modus operandi desde que sou aluno, cortesia de um cérebro ágil para as coisas supérfluas e perro para as que mais interessam), sei que não sou mau, pelo menos, que em alturas fascino a audiência, presa pelo encantamento de uma narrativa, que gera perguntas e dedos no ar que não têm a ver com a matéria, mas a vida não é um conteúdo programático, é mais do que isso, é a curiosidade selvagem e a transmissão de valores: eu ensino, mas tento separar o errado do certo - não como professor, mas como alguém que vê o mundo como a acção do amanhã que foi futuro ontem. Fascismo é algo errado e mau; o colonialismo foi prejudicial, mas o tempo não volta atrás e cada um se torna responsável pelas suas falhas, a Ciência é um auxílio e não uma crença; a História não é a preto e branco, mas certos conceitos são-no de imediato. Estive fora da docência durante seis anos e por isso vou atirando aqui e ali, pedindo ajuda, encontrando-a nos meus colegas que felizmente têm pouco de filhos da mãe e sabem que quanto menos asneiras der, menos lhes sobra. Se isto não é espírito comunitário.

Saio da escola e regresso a pé para casa. Saio sempre a meio da tarde e tenho demasiado tempo livre. Ponho-me a par do mundo, leio, escrevo, percorro os meus canais de vídeo habituais. As pessoas ajudam sempre ao engano de que, em quatro paredes sou só um e por vezes o engano leva-me tão longe quanto o esgar de um sorriso. Banho tomado, jantar feito e comido e a noite é preenchida por filmes, séries e uma pequena revisão da aula do dia seguinte. Ciclo que se repete e quando a semana termina, o fim de semana é de pegar no carro e ter liberdade condicional, sendo que à condição pego na máquina e vou descobrir os limites da prisão, em passeio. É assim. Por vezes, permito-me a algo de diferente. Neste sábado, fui até ao café local ver o derby de Lisboa. Uma sala cheia de benfiquistas, mais velhos do que novos, e vejo, pela primeira vez, gente que tem mais de 18 e menos de 35 por estas dunas. Ederson enterra num lance, penalty para o Sporting. Ninguém reclama, apenas com um pobre brasileiro que se estivesse por cá, sambava no desespero de ver garrafas a voar na sua direcção. O jogo passa, o Benfica controla, o golo não aparece. No intervalo, reparo que o estabelecimento é um altar benfiquista com cachecóis, cartazes e posters, e a sala vai resmungando. Na segunda parte, no entanto, um deus nórdico Lindo em on e em Of, envia, à cobrança, um livre directo para a caixa postal de Rui Patrício e o grito colectivo de golo escuta-se por toda a planície e creio ter feito cair duas tíbias na Capela dos Ossos. Salto com quem lá está dentro, chamamos nomes a toda a gente e segundos depois, caindo em mim, lembro-me de que me esqueci que não estava em casa ou no que é familiar, que vibrei e senti uma alegria arrasadora num local que só me tem trazido a corda bamba do humor, que nalguns dias me levo com suavidade e noutros me arrasto de tal forma que só Einaudi e algum totens pessoais me salvam. Aquele grito de "Golo!" foi do Benfica, sim, mas também o encarnado do meu sangue a rugir e rebentar, a encher-me de uma certa certeza de certeira possibilidade de conseguir ser eu mesmo quando o local tem o menos possível de mim. De que posso ser em muitos lados.

Nessa noite, quando cheguei a casa, dormi, pela primeira vez desde que cheguei sem acordar às cinco e meia da manhã - não justifico esta hora, não consigo -  e não sei se foi do festejo, da água a 55 cêntimos ou da luz trémula amarelenta na rua da noite anterior, registei no meu bloco de notas os pequenos prazeres do meu eremitério: à cabeça, a redescoberta do que não sou, mas que existe bem em mim; e não precisei da ajuda do Sandokan.

Sem comentários: