terça-feira, abril 18, 2017

Pausa lectiva


Posso viver num lugar e mesmo assim voltar a casa noutro. O sentimento manteve-me acordado durante estes dias em que, por virtudes das férias da Páscoa da garotada, voltei a Ceira para uns dias que, à falta de uma definição melhor, foram um pouco como quem calça sapatilhas depois de ter feito o caminho de Santiago em chinelos de lona: é possível e uma aventura interessante, no entanto não será a mais desejável das formas de empreender uma longa caminhada. O Alentejo, esse misto de ganha-pão e pão nosso de cada dia, é-me estranho e acho que sempre será. Podem tirar-me do que sempre foi meu, mas a pertença não morre e não foge. O lá em baixo é apenas um estado passageiro e gasoso, pois é como de um vapor que me vejo nas longas horas só numa casa vazia, onde me entretenho a criar condições mínimas para alguma sanidade. Este quarto onde escrevo é onde sou mais eu, para infelicidade da Humanidade, e amanhã, quando as voltas do volante me fizerem regressar ao teatro de operações, a maneira cirúrgica de me remover do que me preenche, estarei de novo na terra quente, na planície que não termina, nos papéis e manuais e apresentações em computador, cálculos de como entreter gandins. As férias, mesmo quando aluno, sempre me pareceram um faz de conta, um pouco como quando Alice se esgueira por um buraco e dá por si do outro lado da realidade. Colos é a  realidade, Ceira a ilusão e estranho como há menos de um ano, lá longe da Ásia Central, esta vila onde cresci era a dureza do mundo e agora me soa a um colchão de penas. Platão tinha razão: a realidade é uma percepção, tantas vezes falhada, nunca fora da influência de drogas várias.

Vale-me redescobrir Coimbra mais a sério, o valor do Choupal e de uma caminhada ao sol, por entre o malhadiço da folhagem num dia de Verão entre insectos irritantes e folhas que tombam, pétalas que preenchem o chão debaixo dos meus pés, enquanto escuto entrevistas em rádio acerca de temas cujo bom senso me impede de mencioná-los em abordagens a quem não me conhece, sob pena de aparecer como uma curvatura distorcida da realidade. Pegar no carro e percorrer locais mais santos do que Jerusalém, entre a serra da Lousã e uns penedos em Góis que me viram os pulmões do avesso e do avesso me iluminam o interior. Reencontro amigos e há abraços, conversas de situação e sobre situações, combinar cenas e takes, rir à volta de uma mesa de café, saber o que é companhia e calor humano, a vontade que outros têm de disfrutar da companhia de alguém que tem as paredes de casa por companhia e a uma opinião de si mesmo ao nível das galerias mais baixas das minhas de S. Domingos. Sentir-me no meu quarto, sentar-me na minha cama, sem ter-me por adquirido, coisas banais e pequenas, quotidianas, ver filmes antigos com amigos, rir deles, comentar e achar que é tudo bom, tudo normal, que quando amanhã, por esta hora, já estiver a dormir, será numa casa onde só me tenho por companhia e numa tarefa de redescobrir o equilíbrio do exército funâmbulo de um só homem. As férias da Páscoa são um exercício de alta finança, uma reavaliação da minha bolsa de valores, a ideia de que todos os grandes planos e desejos e ansiedades são um engodo e que nos anões da minúcia diária existe algo de mágico lá dentro, intrínseco e tão complicado de descodificar como um cubo de Rubik, mas simples de gozar, de apreciar, de se tornar importante.

Levo para baixo tudo isso, um bocadinho mais seguro e protegido, como se o que é familiar e quem nos vêm como um bocadinho de família e de mobília nos fizesse sentar na mais segura das cadeiras.Vai também comigo uma semente de novidade, o inesperado em tons de amarelo, a possibilidade de novos capítulos, um pouco mais de coragem para encaixar o desconhecido e desembrulhá-lo, ou até debulhá-lo, à boa maneira do campo. No meio, tento não perder-me de mim próprio, mas perder o que a mim próprio me tenta, Não é tarefa fácil, mas grandes obras humanas vieram de períodos de exílio. De uma certa maneira, o Alentejo acentua o que há em mim de megalómano. A sorte de todos é que, apesar da queda de cabelo, ainda não uso uma peruca dourada. Mas há raposas nos campos do Alentejo. Não tarda, coloco uma em cima da minha cabeça.

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